Artigos Publicados: Uma Fantástica Carta de Liberdade

 

ADAUTO DAMÁSIO

O presente artigo investiga o desenrolar de um processo judicial – um Libelo Cível de Liberdade - em que um escravo, libertado condicionalmente por seu finado senhor, reivindica da justiça de Campinas, em 1835, a sua liberdade incondicional. Busca detalhar todo o desenrolar do processo para analisar o papel da justiça de Campinas na relação entre escravos e senhores, a ação dos curadores e a luta desses escravos pela liberdade no Brasil da primeira metade do século XIX.

 

PALAVRAS-CHAVE: ESCRAVIDÃO – DIREITO – JUSTIÇA

 

Em artigo recente, realizado a partir de uma crítica bibliográfica sobre a escravidão no Brasil, argumentamos que o Estado (e o Direito) mediava as relações entre escravos e senhores no Brasil do século XIX. Porém, relativizamos nosso próprio argumento ao final do citado artigo. Os estudos que demonstraram tal mediação concentraram-se na segunda metade do século XIX, logo após o término do tráfico externo, quando talvez condições conjunturais especiais pudessem ter criado condições também especiais para que os escravos contestassem a política de domínio. Seria possível imaginar a contestação de tal política de domínio na primeira metade do século XIX? Além disso, lembrávamos também que tais estudos concentraram-se na Corte do Rio de Janeiro. Também poder-se-ia objetar de forma bastante procedente: tais questionamentos se aplicam a todo o imenso Brasil no século XIX? Não será mais plausível acreditar que tenha sido a excepcionalidade política da então capital do Império um fator de uma também excepcional mediação do Estado nas relações entre senhores e escravos? Afinal, Carneiro da Cunha afirmou que quanto mais longe dos centros urbanos, menor era a observância das leis.

Como podemos imaginar que o Estado pudesse intervir nas relações entre senhores e escravos nas pequenas vilas, onde os poderosos senhores de engenho, indóceis às leis, eram habituados a fazer justiça com as próprias mãos? Como podemos imaginar que nessas pequenas vilas, repletas de senhores truculentos, houvesse escravos que, além de terem o conhecimento de seus supostos direitos, ainda encontrassem acolhida em juízes? E mais, encontrando curadores letrados que se dispusessem a defendê-los em juízo? Teria sido tudo isso possível?

Grimberg já lembrou que "o conhecimento acerca destas ações de liberdade não é exatamente o que se pode chamar de novidade", pois há alguns estudos que as mencionam e outros que as estudam sistematicamente. Porém, em nenhum desses estudos elegeu-se o processo judicial como principal objeto de investigação. Ou seja, não há nenhuma pesquisa que tenha procurado investigar, minunciosamente, os trâmites de um processo judicial no qual estivesse em questão a liberdade ou a escravidão, algo que poderia ser revelador de aspectos até então negligenciados pela historiografia da escravidão no Brasil. Adiante, narramos uma história em que o escravo Américo recorre à justiça contra seus supostos senhores, na Vila de São Carlos, na primeira metade do século XIX. Na formulação de nossa narrativa, observa-se uma tensão entre a narrativa do processo judicial e a da história social dessas pessoas que se relacionaram no espaço da justiça. Optamos por manter tal tensão no texto, pois consideramos ser impossível investigar o processo judicial sem procurar estabelecer suas relações com a trama dos agentes sociais que o integram.

O leitor está convidado a viajar para a primeira metade do século XIX, numa vila que contava com 6.689 habitantes em 1836, Vila de São Carlos, hoje município de Campinas, interior do estado de São Paulo. Nesse ano, a Vila de São Carlos produziu 158.447 arrobas de açúcar, a maior produção da Província de São Paulo, além de aguardente, café, farinha de mandioca, feijão, milho e fumo. Pelo levantamento do Marechal Müller, a Vila de São Carlos contava com 3.137 porcos, 221 cavalos, 221 bestas, 687 cabeças de gado, 134 ovelhas. A produção de açúcar da Vila de São Carlos correspondia a quase um terço de toda a província de São Paulo. Contava com 4 músicos, 4 marceneiros, 39 carpinteiros, 26 ferreiros, 5 seleiros, 5 ourives, 19 alfaiates, 32 sapateiros, 2 caldeireiros e 1 funileiro. Havia também 2 escolas de primeiras letras com 83 discípulos. Contava com 2.772 pessoas livres e 3.914 cativos, entre os quais também havia 5 sacerdotes, 1 cirurgião e 1 coletor de rendas públicas. Havia também 1 Juiz Municipal, 1 Promotor de Justiça, 1 Juiz de õrfãos, 6 Juízes de Paz, 2 escrivães e 2 advogados.

Em 31 de Agosto de 1835, Américo, ex-escravo do então falecido Reverendo Antonio Joaquim Teixeira, acionava a Justiça de Campinas (então Vila de São Carlos) para conquistar sua definitiva liberdade. Na petição que remetia ao juiz, contava uma complicada história para provar que era livre desde 1824. A petição dizia o seguinte:

"Diz Américo libertando por seu curador que tendo o Reverendo Antonio Joaquim Teixeira libertado ao suplicante sem condição alguma a fim de não sofrer açoites por haver sido preso em um jogo de búzios, aconteceu que o suplicante tendo apenas quinze anos de idade de muito boa fé entregou sua Carta de Liberdade a seu ex-senhor para guardar sem que mandasse registrar primeiro: o qual consumiu e falecendo no dia primeiro de Setembro de 1828 deixava o suplicante livre com a condição de servir a seu testamenteiro, o Capitão Joaquim Teixeira Nogueira por tempo de 12 anos, e igualmente falecendo este ficou testamenteiro tanto do primeiro como do segundo José Teixeira Nogueira..."

Américo tentava provar que era livre desde 1824 não apenas para definitivamente gozar de sua liberdade, mas também para recuperar os jornais que havia pago e a indenização pelos serviços que havia prestado ao longo de todos esses anos. Em seu Libelo Cível de Liberdade, também apresentado em 31 de Agosto de 1835, Américo conta detalhadamente a sua história de escravidão e liberdade.

Sendo escravo do Reverendo, em 1824, foi preso juntamente com outros escravos por ordem do Juiz Ordinário, que era então Luis Bernardo Pinto Ferraz, por terem sido flagrados jogando búzios, sendo por esse motivo sentenciado a sofrer pena de açoites. O Reverendo, que muito o estimava, livremente lhe passou Carta de Liberdade sem condição alguma e a apresentou em Juízo.

De boa fé, Américo entregara a Carta de Liberdade ao Reverendo para que este a guardasse sem que primeiro a mandasse registrar. E mesmo sem o menor motivo de ingratidão, único caso em que poderia a liberdade ser revogada, o Reverendo Antonio Joaquim Teixeira Nogueira a consumiu ou a rasgou. Falecendo no dia 1º de Setembro de 1828, o Reverendo o legou para seu pai, testamenteiro e herdeiro, o Capitão Joaquim Teixeira Nogueira, para servi-lo pelo espaço de doze anos com a condição de este dar à mãe de Américo, Josefa, a quantia de 4 mil réis mensais. Desde o ano de 1824 até 1º de Setembro de 1828 pagava $480 de jornal diário por seu ofício de carpinteiro e dessa época até o momento em que entrava na Justiça para lutar por sua liberdade $640, além dos serviços que prestava em sua casa.

Falecendo o herdeiro e testamenteiro do Reverendo, o capitão Joaquim Teixeira Nogueira, aos 22 de Abril de 1832, deixou como testamenteiro e cumpridor das disposições testamentárias do filho a José Teixeira Nogueira, réu da ação judicial movida pelo curador de Américo, João Manoel de Almeida Barbosa. Américo, por seu curador, lutava não apenas para ser considerado livre desde 1824, mas também para que fosse indenizado pelos jornais pagos indevidamente e pelos serviços prestados.

A história que Américo apresentava à justiça era bastante peculiar. Pela sua narrativa, uma atitude que poderia lhe ser bastante prejudicial (ser pego jogando búzios), a ponto de lhe mandarem para o pelourinho, abria-lhe o caminho para reivindicar a sua liberdade, com a possibilidade de ser reembolsado em quase 2 contos de réis. Américo ficara em companhia do Reverendo desde o acontecimento de 1824 até a sua morte e depois com o pai do Reverendo também até a morte deste e foi somente quando ficou sob o domínio legal de José Teixeira Nogueira é que resolveu acionar a justiça para reivindicar a sua liberdade. É possível que Américo tenha entrado em conflito com o herdeiro do Reverendo, talvez por Teixeira Nogueira não se conformar com o espírito pródigo do falecido padre, aliás seu irmão, e por isso tenha decidido ir à luta pela sua liberdade. Porém, se atentarmos para o fato de que em 1824 ele tinha apenas 15 anos de idade e que continuando com o Reverendo e depois com o pai do Reverendo estaria com sua mãe Josefa, a espera de Américo não parece ser tão incompreensível. O seu curador irá, inclusive, argumentar isso em sua defesa, quando o procurador de José Teixeira Nogueira apontar a demora como um fato que desabonava a ação de Américo.

De qualquer forma, chama a atenção que Américo tenha podido recuperar, onze anos depois, os acontecimentos de 1824 para utilizá-los como argumento de reivindicação de sua liberdade e no momento em que lhe foi possível ou em que considerou conveniente; talvez, também, no momento em que conseguiu articular apoios e solidariedades para seu projeto emancipatório. O libertando também parece querer transparecer a sua ingenuidade ao entregar a carta para o seu suposto ex-senhor. Talvez a sua ingenuidade fosse genuína, mas como veremos, essa história de Américo era a sua versão dos acontecimentos. A transcrição do testamento no processo confirmou parte da história de Américo. O Reverendo havia disposto de Américo em seu testamento na forma que Américo havia relatado em seu Libelo Cível:

"Deixo o meu escravo Américo a meu pai pelo prazo de doze anos contados da data de meu falecimento, com a condição porém do dito meu pai dar todos os meses a quantia de quatro mil réis a mãe do referido Américo / Josefa / para sua sustentação e findo os doze anos será livre."

Além disso, o Reverendo dispunha de Américo, mesmo no caso da morte de seu pai. Caso isso ocorresse antes de findos os doze anos, Américo deveria ser colocado a jornal até completar-se os anos previstos, aplicando para as obras da Matriz de Nossa Senhora do Rosário tudo que excedesse os quatro mil réis destinados a Josefa. Na possibilidade da morte de Josefa, o Reverendo destinava os quatro mil réis mensais para os pobres da Vila, até completar-se os doze anos, findos os quais, Américo não teria mais nenhum ônus, nem com o testamenteiro, nem com sua mãe. Vê-se que o Reverendo desejava muito que Américo trabalhasse 12 anos como liberto condicional, pois previa todas as possibilidades para que tal desejo fosse cumprido. Pelo testamento, está clara a sua disposição de última vontade em relação a Américo. A história de Américo sobre a muita estima que o Reverendo lhe tinha e a Carta de Liberdade passada livremente em 1824 para libertá-lo sem condição alguma não estava tão clara assim.

Além de libertar Américo sob essas condições, o Reverendo também libertava em testamento a escrava Helena e lhe pedia, em compensação desse benefício, que vivesse sempre em companhia de sua irmã, Ana Eufrosina. Libertava também o filho de Helena, Antonio, e recomendava ao padrinho do mesmo que cuidasse de sua boa educação. Deixava o seu escravo Caetano ao seu irmão Domingos Teixeira para servi-lo por doze anos contados a partir do dia de seu falecimento, findos os quais estaria esse escravo também forro. Deixava também duzentos mil réis para uma órfã que vivia com seu pai, Ana Esméria, no caso de que essa se casasse. Parece que a atitude do piedoso Reverendo em relação a Américo era muito coerente com a tomada em relação aos outros escravos.

Ao que parece, a luta judicial de Américo para conquistar a liberdade não seria das mais fáceis. Apesar de todo o poder da família Teixeira Nogueira, parece que o juiz, Reverendo Amaro Antunes da Conceição, acolhera as intenções de Américo de forma imparcial. Porém, observando mais atentamente, não foi isso que avaliou Américo quando teve seu primeiro contato com a justiça de Campinas. Ocorre que a primeira ação de Américo para poder "intentar libelo civil de liberdade contra José Teixeira Nogueira" fora solicitar ao Juízo, em 15 de Julho de 1835, que mandasse

"passar Alvará de Vênia e Mando de Manutenção para poder o suplicante livremente cuidar dessa causa e bem assim nomear ao depositante um depositário citando-se ao suplicado para vir proceder-se ao depósito e intimar-lhe o dito mando de manutenção e também nomear um curador ad litem para requerer e alegar o que for de direito e justiça a favor do suplicante."

Observe-se que a petição e o libelo cível de Américo para intentar sua ação de liberdade foi feita em 31 de Agosto e que fazemos agora um histórico do que ocorreu antes de sua petição desse dia 31. Foi logo nesse início do processo que Américo pode notar que a justiça não lhe seria tão simpática. O primeiro curador nomeado pelo juiz não foi o Reverendo Almeida Barbosa. O juiz, atendendo a solicitação de Américo, nomeou para curador Ad Litem o Bacharel Francisco de Assis Pupo e para depositário de Américo o alferes José de Campos Penteado, que foram devidamente notificados. Porém, Américo, no dia seguinte da nomeação (16 de Julho de 1835) replicou sobre a nomeação de Pupo, "com o devido respeito", nos seguintes termos:

"Apesar de ser boa a nomeação supra do curador ad litem, contudo o suplicante receia dela dois inconvenientes que são demora e despesa; Demora porque além daquele nomeado estar no sítio e não voltará tão cedo e mesmo que venha logo, certamente sendo notificado para prestar juramento, me há de requerer ser demitido pela bem sabida relação de amizade que tem com o testamenteiro; despesa; porque me sendo notificado e livrando-se da (?) seguida notificação ao que for nomeado em seu lugar. A vista do ponderado e parecendo que o suplicante é digno de toda a equidade, atento seu atual estado, a natureza da causa que intenta propor o suplicante se recorre e pede a Vossa Senhoria se digne nomear outro."

Em vista do alegado, o juiz, no mesmo dia, nomeou outro curador, o Bacharel Antonio Joaquim de Sampaio Peixoto e remeteu notificação para que este prestasse juramento. Desta vez, não foi por uma reclamação de Américo que o curador teve de ser substituído. Após receber a citação, no dia 18 de Julho, o Bacharel Peixoto solicitou que outro fosse nomeado com a justificativa de que era "amigo íntimo de Teixeira Nogueira". O juiz então, nomeou o Bacharel Reverendo João Manoel de Almeida Barbosa, que foi notificado, aceitou e apresentou a petição inicial juntamente com o libelo, já narrados.

Há duas questões nesse conflito jurídico sobre a nomeação do curador que nos chamam a atenção. A primeira delas é a ousadia de Américo em repudiar o nome do primeiro indicado pelo juiz. Note-se que, no máximo, Américo contou com a ajuda de um solicitador e sabendo ser o primeiro indicado amigo de seu contendor, soube, de uma forma ágil e eficaz, reverter a situação um dia depois da dita nomeação. É claro que poderia haver alguma outra pessoa colaborando com Américo, mas isso só torna ainda mais plausível a nossa hipótese de que ele tinha plena capacidade de intervenção no processo judicial, mesmo que precisasse arregimentar aliados para conquistar sua liberdade. O tom polido e fino da petição deve ter sido obra do solicitador, além de provavelmente ser uma fórmula comum entre letrados.

Porém, uma segunda questão nos chama a atenção. O fato de o Bacharel Antonio Peixoto não ter aceito o encargo de ser o curador de Américo por ser amigo íntimo de José Teixeira Nogueira pode parecer banal, afinal é de esperar que um amigo íntimo e fiel não seja o advogado de nosso adversário em uma demanda judicial. Mas, para o Bacharel Antonio Peixoto demonstrar realmente toda a sua amizade e apreço por José Teixeira Nogueira não seria muito mais fácil e produtivo, do ponto de vista do interesse deste, que ele aceitasse a nomeação e "providenciasse" uma defesa pouco convincente de Américo? Com certeza sim. Porém, não foi isso que ocorreu e temos certeza absoluta que o Bacharel Antonio Peixoto não deixou de manter laços de amizade com Teixeira Nogueira por não lhe ter "facilitado" a causa, como veremos adiante. O que o episódio demonstra é que a nomeação de um curador não era uma mera formalidade jurídica e que o curador teria que ser, necessariamente, um defensor das pretensões de Américo. A justiça, dessa forma, não era simplesmente um teatro onde os curadores treinavam hipocritamente sua capacidade retórica e sua erudição em direito. Poderia sê-lo também, mas não era só isso.

Em 1º de Agosto, o réu Joaquim Teixeira Nogueira começava a se mover para enfrentar as pretensões de Américo. Remetendo uma petição ao juiz, solicitava a cassação da manutenção e do depósito pois o escravo "fugira há tempos" do local onde estava trabalhando, não dando, nesse tempo, mais jornal, "salvo por ter alguma pessoa que lhe servisse de receptando". Argumentava Teixeira Nogueira que

"nem Américo nem o seu curador haviam dado entrada no processo e que a manutenção do depósito não teve outro fim do que evadir-se por meio sorrateiro às obrigações que lhe são (?) pela (?) do testamento de seu finado senhor."

Como tinha que dar conta do testamento dos dois ex-senhores de Américo, pedia então que ele prestasse fiança aos jornais que se liquidarem até decisão final, "desde o tempo em que Américo não tem trabalhado". O juiz mandou citar Américo, por seu curador, para prestar a dita fiança. Mas até 25 de Agosto, Américo não satisfez a exigência do juiz. Nesse dia Teixeira Nogueira remeteu outra petição ao juiz, desta vez um pouco mais incisivo. Reclamava que Américo o estava incomodando, com trapaçarias e desobediências,

"acontece agora ter mandado citar ao suplicante (Teixeira Nogueira) para vê-lo depositar para tratar de uma ação de uma suposta liberdade pela qual foi manutenido por V. Sª e como (?) Américo depois de manutenido não se importa mais em dar andamento à causa demorando injustamente a sua pretendida ação e mostrando manifestamente o dado de má fé de suas escoras, ou protetores, requer o suplicante que o suplicado garantisse em Juízo com fiança dos jornais e V. Sª delibera que em oito dias garantisse com fiança três por semana desde o depósito sob a pena de lhe ser cassada a manutenção e como até agora não tem satisfeito dita fiança o suplicante requer; Pede a V. Sª seja servido mandar passar mandato de captura contra o dito Américo, havendo por cassada a manutenção e recolher o suplicado às cadeias dessa Vila."

No mesmo dia, o juiz Amaro Antunes da Conceição determinou que Américo prestasse fiança às custas de três dias de jornais da semana e que intentasse sua ação em Juízo no prazo de três dias, sob pena de captura e de ficar sem efeito o mandato de manutenção. No dia seguinte, Américo foi notificado. Através de seu curador, Américo remeteu petição no dia 28 de Agosto, argumentando que o despacho não era possível de ser executado, pois a fiança aos jornais só se dariam nos Autos de Litígio,

"sendo ademais as fianças às custas derrogada pelo artigo da Disposição Provisória, como tão bem sendo a causa da liberdade favorecida em direito, e apenas tendo o suplicante sido depositado não lhe era possível imediatamente intentar sua ação por falta de meios e de haver a si os documentos necessários, por cujo motivo nas causas dessa natureza sempre se dão um prazo razoável que nunca é o de três dias, pois do contrário era necessário se admitir que o suplicante podia se aparelhar no estado de escravidão. Nessas circunstâncias pede o suplicante que Vossa Senhoria lhe conceda ao menos o prazo de vinte dias não só para intentar sua ação como para prestar fiança aos três dias de jornais na semana, visto lhe ser ainda necessário chamar ao suplicado ao Juízo de Paz para se proceder a reconciliação da lei, e assim // Pede a V. Sª..."

Diante da petição, no mesmo dia o juiz então lhe concedeu o prazo de oito dias para o cumprimento do despacho. Lembremos que foi no dia 31 de Agosto que Américo entrou com sua petição e o seu libelo cível na justiça, portanto três dias após o ultimato do juiz, mas não apresentou ninguém para lhe afiançar as custas do processo. Em 16 de Setembro, Teixeira Nogueira passava procuração para que um advogado o defendesse na causa em questão. O advogado escolhido por Nogueira era, emblematicamente, o Dr. Antonio Joaquim de Sampaio Peixoto, o mesmo que fora indicado pelo juiz para ser o curador de Américo e que não aceitou a curadoria por ser amigo íntimo de Teixeira Nogueira.

Em 17 de Outubro, Sampaio Peixoto solicitava novamente fiador "abonado, livre de privilégios e residente no município". Em 11 de Novembro, o advogado de Teixeira Nogueira pedia a cassação do mandato de manutenção, pelo não cumprimento da decisão judicial. Ao saber do pedido, Américo compareceu perante a justiça dois dias depois e apresentou seu fiador, o Tenente Joaquim Roberto Alves. Porém, a situação de Américo não parecia ser das melhores. Em 06 de Fevereiro de 1836, o seu fiador solicitava dispensa da fiança ao juiz, pois Américo não estava dando "o devido andamento aquela causa." O juiz ordenou que em 24 horas, Américo apresentasse novo fiador, exigência que Américo não cumpriu. Apesar de não constar nos autos, Américo deve ter convencido o Tenente a mudar de idéia, pois em 24 de Fevereiro o fiador entrava com uma nova petição ao juiz. Preocupado com o fato de nem Américo, nem seu curador

"promoverem o andamento da causa, vindo por isso a recair os jornais talvez contra ele porque o dito Américo tem se portado no todo vadio e inepto e requerendo o testamenteiro José Teixeira Nogueira que o reconheça em seu poder este não o fez, (e) não podendo ser constrangido a ser mais fiador, requer (que) seja (notificado) por qualquer oficial de justiça (o) dito Américo e recolhido a cadeia (e) seja entregue ao testamenteiro ou para continuar no cativeiro ou até prestar nova fiança pois que o suplicante já se desonrou e como a lei permite o auxílio aos fiadores..."

O juiz acatou o pedido do Tenente e determinou a prisão de Américo na Cadeia Pública Municipal. Em 02 de Março de 1836, Américo já estava recolhido à Cadeia, sob os protestos de seu curador, que no dia seguinte reagiu de forma rápida e eficaz apresentando sua indignação sob a forma de uma petição. Alegava ele que o mandato fora o mais ilegal possível. Se o fiador desistira de dar fiança "por simpatia ou intriga", não poderia o juiz ter mandado prendê-lo pois a ação ainda estava correndo. A demora estava ocorrendo por culpa do testamenteiro, argumentava Almeida Barbosa e o suplicante

"se acha manutenido e depositado em poder do Alferes José de Campos Penteado o qual nada requereu, por conseqüência como seria possível mandá-lo prender sem que se suspendesse o mandato de manutenção e seria possível fazer-se sem a decisão final da causa... de certo que não. E quanto as fianças aos jornais não temos leis que tal determine, senão um mero costume do foro e no caso que não tivesse prestado só competia a V. Sª. obrigá-lo a trabalhar em poder deste ou daquele cidadão, porém o contrário se tem praticado, por uma simples petição se desonrou o fiador do suplicante sem que esse fosse ouvido e ainda devendo se sujeitar ao suplicante alguma pessoa para prestar serviços ficando seus jornais depositados se mandou imediatamente se lavrar mandato de prisão !... O suplicante pois não duvida prestar nova fiança para cujo fim oferece o Alferes Custódio Manoel Alves; isso posto deve V. Sª. emendar seus respeitáveis despachos por serem injustos e ilegais, com tudo pede a V.Sª. que prestada que seja a fiança mencionada haja de mandar soltar ao suplicante mencionado passando mandato sendo necessário."

O juiz respondeu, no mesmo dia, que "sendo idôneo o fiador apresentado tome-se-lhe por termo afiançar e passe mandato para a soltura do suplicante". Mas o curioso dessa passagem da luta de Américo pela liberdade é que o juiz já não era mais o Reverendo Amaro Antunes da Conceição. Quem mandou lavrar mandato de prisão contra Américo, atitude injusta e ilegal segundo seu curador, foi, sugestivamente, um emérito letrado campineiro, Francisco de Assis Pupo. Lembremos que Pupo foi o primeiro curador nomeado pelo juiz Amaro da Conceição para ser o curador de Américo, nomeação esta questionada e rejeitada pelo libertando em função da conhecida relação de amizade de Pupo com Teixeira Nogueira...

Alguns aspectos nos chamam a atenção em todo esse conflito. De fato, a fiança aos jornais parece ter sido um empecilho real para que Américo levasse adiante a ação judicial. Apesar de ser um mero costume do foro de Campinas e não exigido pela lei, segundo o curador, era um costume respeitado e que revela, por um lado, uma clara tentativa de obstaculizar as intenções dos escravos e, por outro lado, a necessidade de que o cativo, para buscar sua liberdade por meio de ação judicial, tivesse estreitas relações com pessoas com um mínimo de posses, ou seja, "protetores". As reclamações de José Teixeira Nogueira, inclusive, sugerem o auxílio de "protetores", quando insinua a existência de algum "receptando". A demora de Américo em prosseguir o processo pode ter ocorrido em função da dificuldade em conseguir um fiador. Porém, suas atitudes pouco polidas em relação a Teixeira Nogueira podem indicar que ele estava muito satisfeito com sua situação, longe de seu antigo senhor, não pagando jornais e trabalhando tranqüilamente em seu ofício de carpinteiro. Por outro lado, evadir-se do local de trabalho e não reconhecer-se mais em poder de Teixeira Nogueira poderia ser uma forma de demonstrar que sua condição de liberto condicional era injusta e ilegal.

Em relação ao curador de Américo, parece estar um pouco distante dos movimentos do processo, só agindo em momentos em que seu curatelado corre algum risco de voltar para o domínio de Teixeira Nogueira ou quando já está na cadeia. Porém, sua ação é sempre conseqüente e eficaz. Ao final de todo o conflito sobre a fiança aos jornais, Américo continuava depositado e a ação parecia que iria avante.

Apesar de o juiz ter despachado, segundo o curador, de forma injusta e ilegal, é possível notar que suas ações não foram guiadas pela falta de senso de justiça. A prisão de Américo e a suspensão do mandato de manutenção e do depósito foram solicitados duas vezes por Teixeira Nogueira e uma vez pelo fiador. Foi somente após o terceiro pedido que o juiz se impacientou com Américo e o mandou para a cadeia. A demora na apresentação da fiança e a verificação de uma certa paciência dos juizes para que tal exigência fosse cumprida, aliada aos dois pedidos de prisão de Américo não aceitos, demonstram que os juizes, de alguma forma, não agiram guiados apenas pelos interesses de um proprietário de escravos, mas também pela observância das regras jurídicas. Eles não procuraram afoitamente um tropeço ou uma negligência de Américo para fazê-lo retornar ao domínio de Teixeira Nogueira.

Parece também que Joaquim Roberto Alves estava sob pressão, pois além de desistir da fiança pedia a prisão de Américo, assunto que não competia ao fiador. Essa pressão também é demonstrada quando o fiador argumenta que tinha conhecimento de que Teixeira Nogueira havia solicitado a Américo que o reconhecesse em seu poder. É provável que Teixeira Nogueira tenha pressionado o Tenente Alves para que este desistisse de conceder a fiança.

No mesmo dia, 04 de Março, Custódio Manoel Alves prestava fiança, assinando o termo "por parte de Américo crioulo que ora se acha preso para o efeito do mesmo ser solto...". Além disso, os fatos ocorridos no dia 04 de Março parecem constatar que a atuação do curador de Américo era levada a cabo com muita responsabilidade. Ocorre que esse dia era véspera de feriado e o escrivão ficou em dúvida em passar o mandato de soltura; o juiz então adiou o mandato de soltura para depois do feriado, sob novos protestos do curador que alegava que muitas causas transitavam em Juízo durante os feriados, lembrando também a injustiça da prisão. O juiz, pressionado pelo curador, mandou passar o mandato de soltura. Observa-se que a justiça demorou para acatar o pedido de Teixeira Nogueira e prender Américo, mas após o cumprimento da exigência da fiança, o soltou apenas sob a pressão do curador.

Resolvidas todas as questões introdutórias do processo, parece que Teixeira Nogueira e seu advogado entenderam que se tornara inexorável ter que levar a querela adiante e tentar provar que Américo continuava em sua situação de liberto condicional, legado dado no testamento de seu ex-senhor em 1828, e não liberto pela Carta de Alforria de 1824. Tanto é verdade que no dia 06 de Março de 1836, um dia após o feriado, o advogado de Teixeira Nogueira, Dr. Sampaio Peixoto apresentava o Libelo de Contrariedade do réu. Porém, ficamos nos perguntando os motivos pelos quais Teixeira Nogueira e seu advogado não apresentaram o libelo de contrariedade logo após a prestação da primeira fiança. Não sabemos.

A contrariedade de Teixeira Nogueira baseava-se no argumento de que o finado Antonio Joaquim Teixeira não havia passado a Carta de Liberdade em 1824 de forma espontânea ou com a intenção de libertar Américo. Uma enovelada história é relatada em seu libelo. Argumentava que o finado não tinha tanta estima em relação a Américo que a não merecia "pelos contínuos desgostos que lhe dava por seu mau comportamento, visto que o autor (Américo) sempre foi jogador, fujão e até por duas vezes arrombou a gaveta daquele finado e lhe furtou dinheiro e mesmo era inclinado a embriaguez". A consideração que o finado tinha para Américo não era pelos seus merecimentos, mas sim em atenção à mãe do autor, Josefa, por ter sido ama de leite de Antonio Joaquim Teixeira.

Relata que, em 1824, Américo foi encontrado jogando, foi preso pela ronda e penalizado pelo juiz municipal com açoites públicos no pelourinho. Em função das rogativas de Josefa, quis o finado que Américo não fosse açoitado, procurando em vão um meio de livrá-lo da pena. Tendo já desistido de socorrer o escravo, foi chamado pelo Sargento mor Teodoro Ferraz Leite que lhe disse para passar Carta de Liberdade para escapar dos açoites, conselho dado pelo próprio juiz. Américo não ficaria forro em virtude da carta, pois logo que fosse solto ela seria rota e nenhum vigor teria. A carta foi escrita e apresentada em Juízo, logo sendo Américo livre da prisão e dos açoites. Então, a carta foi rasgada pelo Sargento Teodoro com o consentimento do finado. Tal carta só perdurou por poucos momentos "e o autor (Américo) nem um instante sentiu os efeitos dessa carta fantástica." Américo sempre foi conservado como cativo e como tal o finado Antonio Joaquim Teixeira dele dispôs em seu testamento, sendo que o autor só se lembrou da dita carta onze anos após o ocorrido. Sendo assim, intentava que a autor fosse julgado carecedor da ação que intentava e condenado nas custas em três doblas pelo dolo e má fé com que incomodava a Teixeira Nogueira.

Como testemunha, o Sargento mor Teodoro Ferraz Leite prestou o depoimento em sua casa e antes dos demais por motivo de doença e idade avançada (o Sargento já contava com 80 anos de idade). Na petição que solicitava urgência na tomada de depoimento do Sargento, feita por Teixeira Nogueira, o réu do processo solicitava que lhe perguntasse se não era verdade que ele estava acostumado a dominar o Padre e que ele o mandou imperativamente assinar tal documento. O Sargento, em suma, reafirmou a história contada por Teixeira Nogueira em seu libelo cível de contrariedade. O curador de Américo perguntou ao depoente se quando o Padre assinou a dita carta estava em plena liberdade ou se foi obrigado por alguma pessoa, se ele (o Sargento) rasgou a carta de seu voto próprio ou se foi a pedido do Reverendo e se mediou muito tempo entre a feitura e a destruição da carta. O Sargento Teodoro relatou que o Padre "passou a carta de liberdade em sua inteira liberdade", que não estava lembrado se o Reverendo pediu para rasgar a carta, mas o fato de ter rasgado não causou-lhe constrangimento e que não estava certo se foi no mesmo dia, mas que a carta existiu por muito pouco tempo.

As testemunhas convocados por Américo e seu curador confirmaram a história já conhecida. Porém, alguns detalhes foram diferentes. O Sargento Andrade e José Morato relataram que a carta de alforria feita para libertar Américo dos açoites foi passada sem condição alguma. Já Luis Bernardo Pinto Ferraz, que em 1824 era o juiz da cidade, disse que a carta continha a condição de que Américo o acompanhasse durante sua vida. Francisco Alves de Sousa salientou que a carta fora apresentada em Juízo e que José Tristão (escrivão) a teria lançado nas Notas. Além disso, o advogado de Teixeira Nogueira perguntou, maliciosamente, ao Sargento mor Andrade se ele era interessado na questão dessa causa. O Sargento respondeu que "achando-se o autor (Américo) desvalido viu valendo-se dele depoente para afiançá-lo e tirá-lo da prisão, o que ele depoente fez por humanidade mandando a fiança por outra pessoa por ele pedida". O Alferes Antonio Ferraz, irmão do então juiz Luis Bernardo Pinto Ferraz, e o Sargento Andrade, que em 1824 era Comandante das Ordenanças, contaram que o Juiz tentou fazer com que Américo fosse recrutado pelo Sargento Mor Comandante da Ordenança, Antonio Francisco de Andrade, que não cedeu às intenções do Juiz por considerar o ato uma espécie de vingança.

As testemunhas de Teixeira Nogueira também confirmaram a história do réu, com algumas curiosidades. O curador perguntou ao capitão Aranha se ele tinha conhecimento das relações entre o Juiz Luis Ferraz e o Sargento mor Teodoro Ferraz Leite, se eram amigos ou inimigos por "motivos da Cadeia" e portanto se "não era possível que ele mesmo desse o conselho de que se passasse Carta Fantástica?" Aranha respondeu que ignorava tais relações. Perguntou ainda o curador se Américo era tido como liberto, respondendo o capitão que "quanto a ele o tinha por cativo; quanto aos outros não sabia." Francisco Romualdo também confirmou a história. Note-se que Francisco era a única testemunha de cor parda e o único que não era proprietário de engenho ou negociante; sua profissão era a de Administrador.

A história parece que vai ficando mais complicada. Em primeiro lugar, pelo depoimento das testemunhas, vê-se que a versão de Américo era apenas a sua versão. Fica relativamente claro que o Reverendo tentou enganar a justiça e com uma "fantástica carta de liberdade" apenas quis livrá-lo dos açoites públicos. De resto, o seu testamento demonstra claramente suas intenções sobre o futuro de Américo. Mas outra personagem aparece em nossa história. Josefa, mãe de Américo e ama de leite do Reverendo foi quem rogou para que seu filho não fosse açoitado. Foi a existência de um sentimento afetivo do Reverendo para com Josefa que livrou Américo dos açoites públicos e lhe permitiu, onze anos depois, reivindicar sua liberdade incondicional.

Ademais, parece que encontramos o protetor de Américo. O verdadeiro fiador de Américo era o Sargento mor Antonio Francisco de Andrade que, procurando esconder suas intenções, ofereceu a fiança por outra pessoa, segundo ele mesmo, ação movida pelo sentimento de humanidade. As verdadeiras intenções de Andrade nos são desconhecidas. É possível que os "sentimentos de humanidade" do sargento fossem verdadeiros, mas também é possível que estivesse interessado nas qualidades profissionais de Américo.

Outro ponto que nos chama a atenção é a menção de um suposta briga entre o juiz Luis Ferraz e o Sargento Teodoro Ferraz Leite em 1824. Adiante, o curador de Américo irá se referir a esse episódio. A história é bastante confusa e obscura, mas parece que em 1824, havia um conflito entre o juiz Ferraz, de um lado, e o Sargento Ferraz Leite junto com os Teixeira Nogueira, de outro. Para se vingar dos Teixeira Nogueira, o juiz teria aconselhado Ferraz Leite a lhe passar Carta de Liberdade, como única forma de Américo se livrar dos açoites, para depois tentar obrigar o Comandante das Ordenanças a recrutá-lo. A estratégia do juiz não deu certo em função da negativa do próprio Comandante das Ordenanças. Américo, assim, estava envolvido numa "luta entre brancos" e, como veremos, soube se sair muito bem. Com os depoimentos de todas as testemunhas, terminava mais uma fase do processo. Agora, só faltavam as defesas dos dois advogados e a sentença final do juiz.

A defesa da liberdade de Américo, apresentada por seu curador, iniciava atentando para os "imensos tropeços" encontrados por Américo no prosseguimento da causa, "o que necessariamente acontece quando um fraco, destituído de meios, demanda com um forte, rico, rodeado de parentes e amigos." Argumentava o curador que o finado era "rico, administrava por si os seus bens e que passou Carta de Liberdade ao autor (Américo) sem a menor condição, a qual foi apresentada em Juízo, (sendo que) o réu nem ao menos se atreveu a negar..." Salientava o bom caráter do Sargento mor Antonio Francisco de Andrade, ressaltando que respeitando o juramento em Juízo revelou a verdade sobre sua ação filantrópica, revelando ter sido o fiador Custódio Manoel Alves um enviado seu. Dizia o curador que tentaram inculcar em seu artigo de contrariedade uma espécie de ingratidão, imputando a Américo ter arrombado a gaveta daquele finado para roubar vinténs e ter fugido algumas vezes de sua companhia. Argumenta o curador que tais fatos eram falsos e mesmo que se achassem provados de nada poderiam valer, por não serem daqueles expressos na Ordenação, Livro 4, título 63, por que só o finado poderia alegar e não os seus herdeiros, segundo o disposto no parágrafo 9 da mesma Ordenação. Todos os artigos do libelo de Américo, segundo o curador, estavam provados e só restava pronunciar a sentença a seu favor. O curador ainda afirmava que não estava provado que o autor não passara a carta espontaneamente. Também não estava provado que a idéia de passar a carta de alforria para salvar Américo dos açoites tenha sido do Sargento Teodoro. Procurava também dentro do Libelo de Contrariedade algumas contradições. Alegava que mesmo dizendo que o finado não passara espontaneamente a carta, dizia também que o fora por consideração a Josefa, o que seria uma contradição. Além disso, alegava que apesar de Teixeira Nogueira defender a idéia de que a carta foi passada pelo Sargento Teodoro, nem ao menos alegou que houve a menor coação. Porém, a contradição principal estava no fato de alegar que logo que foi apresentada a carta em Juízo Américo fora solto e não sentira um só instante os efeitos dessa carta; ora, pergunta o curador, livrar-se dos açoites não seria um efeito dessa carta? Dizia ainda o Dr. Almeida Barbosa:

"É galante ver se alegar que foi o próprio juiz quem deu tal conselho e que concorreu para essa ficção imaginária, quando Luís Bernardo Pinto Ferraz, por motivo da (?) da cadeia desta Vila achava-se nessa época inimizado com o Sargento Mor Teodoro e com todos os Teixeiras que tomaram seu partido, por cujo motivo se tornou inexorável, e ainda depois de meu curado livre quis remetê-lo para praça de primeira linha o que de certo faria se não achasse resistência do Sargento mor Comandante das Ordenanças como depuseram testemunhas (...) Se a mente do próprio finado Antonio Joaquim Teixeira foi iludir o Juízo por esse mesmo fato sofra a pena de sua imprudência para que fique o público certo que as determinações do Juízo não se iludem."

O curador de Américo estava sendo muito astuto na defesa de seu curatelado, omitindo algumas provas que estavam presentes nos autos. Quando dizia que só o finado poderia alegar alguma espécie de ingratidão de Américo, remetendo-se para isso às Ordenações, simplesmente não colocava em questão se o testamento do finado Reverendo, escrito em 1828, poderia ser uma prova indireta de que ele, por motivos de ingratidão ou não, reescravizara Américo logo após ter lhe concedido a liberdade. Porém, era de se esperar que um curador comprometido seriamente com o seu curatelado não lembrasse de questões que pudessem comprometer sua linha de defesa, afinal, como temos visto, a curadoria não era uma mera formalidade legal inscrita em lei para ocultar ou disfarçar a flagrante desigualdade entre senhores e escravos. A desigualdade era evidente no plano das relações sociais: era um "fraco, destituído de meios", demandando "com um forte, rodeado de parentes e amigos." Mas "as determinações do Juízo não se iludem" e se o Reverendo tentou enganá-las, "sofra a pena de sua imprudência". A argumentação de Almeida Barbosa, mesmo com suas omissões e mesmo com possíveis interesses "escusos" nos quais pudesse estar envolvido (talvez juntamente com o sargento mor Antonio Francisco de Andrade), aponta para a constatação de que não era muito prudente "brincar" ou tentar lograr as determinações legais (libertar e reescravizar um escravo para simplesmente livrá-lo dos açoites, castigo este determinado pela mesma justiça), pois isso poderia ser usado contra quem se utilizava de tais expedientes. A justiça, enfim, nas palavras do curador, era algo muito mais sério do que se podia supor.

Quanto à defesa de Teixeira Nogueira, dizia não temer a liberdade de Américo e nem de seus patronos, mas que por querer fazer-se bom testamenteiro e pelo mau comportamento de Américo, se propunha a defender tal causa. Em verdade, Teixeira Nogueira se opunha às pretensões de Américo pois sua liberdade era, em sua opinião, quimera. Sua linha de defesa baseava-se na premissa de que o finado Reverendo Antonio só assinara a Carta de Liberdade em função das rogativas de Josefa, mãe de Américo e isso após o Sargento Teodoro ter mandado passar "uma Carta de Liberdade Fantástica", somente para livrá-lo dos açoites públicos, sendo que depois disso romperia-se a Carta e Américo não ficaria liberto. O Sargento acabara por se intrometer no assunto, pois Josefa também tinha sido ama de leite de uma mulata do mesmo Teodoro de nome Lourença.

Para o Dr. Peixoto, estava provado, pelos depoimentos, que a Carta não existira com ânimo de libertar Américo e que "era mesmo impossível que o Reverendo Antonio Joaquim Teixeira libertasse ao autor livremente". Além disso, o Padre conhecia tão bem a perversidade de Américo que lhe deixou cativo para de seu jornal retirar 4$000 mensais para o sustento de Josefa. O Dr. Peixoto argumentava que o Padre o conhecia o suficiente para saber que se o deixasse liberto esse não seria capaz nem de sustentar a própria mãe. A Carta Fantástica de Liberdade não poderia ter efeito algum, pois

"só os atos de vontade é que são legítimos e um ato desse em que o Padre só queria servir a mãe do Autor por dever-lhe a criação a fim de que o autor não fosse castigado publicamente e não tendo nunca em vista libertar ao autor não pode ter efeito algum."

Advertia também o Dr. Peixoto que todos sabiam que aquela carta era fantástica, a intenção do Padre nunca foi libertá-lo, que ele permaneceu como cativo por oito anos após a morte do Padre e que só naquele momento, só depois de ter servido 8 anos é que se lembrou de semelhante episódio. Além disso, a tal Carta nunca estivera em mãos do autor como falsamente alega, pois houvera combinação do Major Teodoro com o Juiz. O advogado lembrava a mesma lei citada pelo curador (Ordenações, Livro 4, Título 63) que dizia: 'se alguém forrar seu escravo livrando-o de toda a escravidão...'. O finado Padre não o livrou de toda a escravidão, argumentava o Dr. Peixoto e isso, para ele, estava provado.

Convenhamos, a defesa do réu não foi muito competente. Insistia na idéia de que o Reverendo não passara a Carta de Liberdade em sua inteira liberdade, mas sequer citava a palavra "coação". Apesar de evocar o testamento para provar que o Reverendo conhecia a perversidade de Américo, não argumentava que o testamento era uma prova cabal de que o Reverendo havia reescravizado Américo. É possível que Teixeira Nogueira tenha se desinteressado pela causa, pois faltavam apenas alguns anos para que Américo se tornasse um liberto incondicional, de acordo com as disposições do testamento de 1828. Além disso, não parece que o réu do processo tirasse algum proveito material de Américo, pois já era um liberto condicional com a obrigação apenas de pagar jornal ao testamenteiro do Reverendo, para que este utilizasse o dinheiro de acordo com as disposições do testamento. Talvez tenha sido por isso que o advogado dizia que Teixeira Nogueira não tinha temor da liberdade de Américo e talvez tenha sido mesmo verdade que ele só queria ser um bom testamenteiro.

Porém, também é possível que não houvesse a possibilidade de utilizar o testamento como comprovação da reescravização. Talvez Teixeira Nogueira tivesse, sim, algum interesse em Américo que não fosse o mero desejo de se fazer bom testamenteiro de seu irmão e de seu pai. Dessa forma, teríamos que admitir que a reescravização não fosse algo tão fácil como se pode imaginar. Nessa interpretação da defesa de Teixeira Nogueira está implícita a impossibilidade de que as alforrias fossem anuladas pelo simples ato de rasgar a carta de alforria.

Houve réplica do curador de Américo. Alegou o curador que do próprio depoimento do Sargento Teodoro ficava provado que o finado Padre passara a Carta de Liberdade em sua plena liberdade e que nem ao menos fora o dito Padre quem rasgara a Carta e sim o Sargento. Tal testemunha, aliás, argumentava o curador, nem ao menos se atreveu a dizer que a Carta era fantástica e em vez de depor contra Américo, testemunhou a favor dele. Também não importava, para o curador, se o finado Padre libertou Américo por amor que lhe tinha ou por gosto de Josefa. Para Almeida Barbosa não importava se Américo era jogador ou não. Por que, perguntava o curador, fazia-se uma narração fastidiosa, toda desfigurada e não provada a respeito de Américo? Ele mesmo responde com ironia: "será para fazer crer que muito bem ganho tem o seu dinheiro"? A Carta havia sido passada sem condição alguma, pois apenas uma testemunha disse que lhe parecia haver certa condição, o que não asseverava. Também o fato de Américo ter vivido ao lado do Padre durante os últimos anos de sua vida em sua casa era prova de gratidão, pois estando com sua mãe e parentes e não recebendo mau tratamento seria uma atitude ingrata se tal não fizesse. Disso não se podia inferir que permanecesse no estado de escravidão. Enfim, argumentava o curador, Américo não intentara a ação antes, por falta de recursos para tal.

A interpretação do Juiz baseou-se no fato de que, efetivamente, o finado Padre havia passado uma carta de liberdade para Américo, afirmativa corroborada por todas as testemunhas. Além disso, outros detalhes ajudaram na decisão do juiz. Duas testemunhas garantiram que a carta fora entregue ao escrivão, José Tristão, que a lançou nos Livros de Notas. Quanto à intenção, nada podia alegar o réu, pois a intenção se manifestara pelo ato dele passar a carta de "muito sua livre vontade, como afirma o sargento mor Teodoro Ferraz Leite". "Também em nada pode prejudicar o autor o ter ele se conservado em companhia de seu Patrono não só por isso ser natural atento aos princípios da gratidão e de sua mãe morar com seu patrono como porque a testemunha 7ª (o então juiz Pinto Ferraz) jura que a única condição que tinha a dita, segundo sua lembrança, era de que o autor moraria em companhia do mencionado Padre durante a vida deste".

A sentença do Juiz foi pronunciada no dia 09 de Março de 1837. Américo foi declarado liberto desde o tempo em que lhe foi passada a escritura fantástica de liberdade, em 1824, também ficando com o "direito salvo para haver prejuízos e interesses." Além disso, Teixeira Nogueira foi condenado a pagar as custas do processo, que somaram 33$480. Sentenciando Américo como liberto desde 1824 e garantindo-lhe o direito de "haver prejuízos e interesses", o juiz abria as portas para que Américo executasse José Teixeira Nogueira pelos jornais pagos indevidamente desde o ano em que o Reverendo lhe passara a "Fantástica Carta de Liberdade". Talvez fosse esse o medo de Teixeira Nogueira em relação à liberdade de Américo.

Porém, fica claro que ao final do processo as disposições de última vontade do Reverendo não foram cumpridas. Américo, em função de um acontecimento peculiar, conquistava a liberdade definitiva antes de serem findos os 12 anos determinados pelo Reverendo. E isso por causa de uma "Fantástica Carta de Liberdade".