DIREITO E ALFORRIAS NO BRASIL DO SÉCULO XIX

 

Adauto Damásio

 

O presente artigo investiga a política de concessão de alforrias aos trabalhadores escravos em Campinas e suas relações com o Direito no século XIX. A partir da pesquisa realizada no Arquivo Judiciário do Centro de Memória da UNICAMP, resgata as alforrias concedidas pelos senhores de escravos no momento de produção de seus testamentos. Procura questionar a interpretação historiográfica tradicional que consagrou a idéia de que as alforrias poderiam ser revogadas pelos senhores em nome das normas previstas pelas Ordenações Filipinas, legislação portuguesa que vigorou no Brasil até o início do século XX.

 

PALAVRAS-CHAVE:  DIREITO – ESCRAVIDÃO

 

 

 

"A carta de alforria, também conhecida como a carta de liberdade, foi um instrumento legal através do qual se documentava a passagem de um indivíduo de uma condição legal de escravo para uma condição legal de livre."[1]

              Este parágrafo, definidor do que era uma carta de alforria no Brasil escravista, é o início do estudo de Peter Eisenberg sobre as alforrias no Brasil, em particular em Campinas, no século XIX. O autor também informa que a “fonte primária para o estudo da alforria é a própria carta de liberdade", ao mesmo tempo em que colocava como uma questão ainda a ser resolvida "se a carta de alforria é uma fonte suficiente para se estudar o ato de alforriar, e se não existe outra documentação também importante."[2]

              Na medida em que todas as pesquisas sobre alforrias foram feitas baseando seus dados empíricos somente em cartas de alforria registradas em cartórios, com a exceção do estudo de James Kiernan, o próprio autor procurava refletir sobre suas perguntas, tentando apontar soluções. Na legislação, aponta o autor, não há menção alguma sobre a obrigatoriedade de registrar a carta de alforria em cartório "e não se pode pressupor que o número de cartas registradas reflita o número de alforrias realizadas".[3] Assim, o autor prosseguia relatando outras fontes existentes que poderiam servir para o estudo das alforrias. Uma delas seriam os livros paroquiais de batismos de escravos, fontes estas trabalhadas por James Kiernan em Paraty, cujo cruzamento com as cartas de alforria registradas em cartório levou-o a concluir que as crianças escravas alforriadas no ato do batismo não precisavam de uma carta de alforria, sendo assim a cópia do registro de batismo a própria comprovação de sua condição legal de livre.[4]

              O autor também aponta os testamentos como fontes possíveis de serem utilizadas para o estudo das alforrias no Brasil. Nos testamentos, atos de última vontade que governavam a distribuição de bens de uma pessoa após a morte, constavam, às vezes, instruções que mandavam libertar um escravo. Porém, as alforrias concedidas em testamentos poderiam estar registradas nos cartórios sob a forma de uma carta de alforria, de modo que faz-se necessário uma pesquisa nos testamentos e nas cartas para averiguar a ocorrência de repetições.[5]

              Tal pesquisa foi iniciada e seu resultado parcial foi publicado em 1989. O autor transcreveu 2.093 cartas de alforria nos Livros de Notas dos Cartórios do primeiro e segundo Ofícios de Campinas, cartas estas que libertavam 2.277 escravos, entre 1798 e 1888. O artigo publicado em 1989 discute os dados encontrados nessas cartas de alforria. Infelizmente, a pesquisa de Eisenberg não pôde ser concluída. Foi pensando nas preocupações de Eisenberg que procuramos encaminhar este capítulo. Para isso, efetuamos uma pesquisa no Tribunal de Justiça de Campinas (TJC), que se encontra sob custódia do Centro de Memória da Unicamp, consultando todos os inventários existentes entre 1829 e 1838, com atenção especial aos testamentos e aos escravos que possivelmente poderiam estar sendo libertados nos atos de última vontade dos donos de escravos. Dessa forma, com uma amostra de dez anos e comparando com os resultados obtidos pelo autor, inclusive nominalmente, seria possível encaminhar algumas sugestões para nossas preocupações.

              Existem, para o período que vai de 1829 a 1838, 166 inventários no TJC, dos quais apenas 46 foram feitos sob o comando do testamento do falecido ou falecida. Desses 46 inventários com testamentos, 25 deles não libertavam nenhum escravo. Vinte e um senhores deixaram testamentos libertando um total de 88 escravos. Porém, dentro dos inventários, os testamentos não são a única fonte para o estudo da alforria. Há duas outras possibilidades de encontrarmos escravos sendo libertados. Uma delas é a possibilidade de encontrarmos um escravo remetendo um requerimento para o juiz de órfãos, solicitando a compra de sua alforria pelo preço estipulado na avaliação. Encontramos dois casos em que os escravos conseguiam a alforria desta forma. Um deles foi um escravo de Antonio de Oliveira Pontes, que faleceu sem deixar testamento. No interior do inventário, encontra-se o requerimento deste escravo:

"Diz Salviano que foi escravo do falecido Antonio de Oliveira, que sendo avaliado no inventário que se está procedendo pelo falecimento do dito seu senhor pela quantia de duzentos e cinquenta mil réis, como o suplicante acha quem por servi-lo lhe empresta essa quantia para o suplicante libertar-se, portanto requer a Vossa Senhoria que (em) benefício da liberdade lhe mande apresentar em juízo a quantia de seu valor, depois do que mande o escrivão deste juízo lavre termo de entrada e igualmente de liberdade do suplicante, sem haver prazo relativo..."[6]

              A resposta do juiz ao requerimento foi positiva, nomeando a Joaquim Pereira Barreto como depositário do valor do escravo. Não encontramos o termo de liberdade de Salviano no interior do inventário. Porém, também não encontramos nenhuma reclamação de algum herdeiro ou do curador dos menores contra a sua liberdade. É possível que tal termo tenha sido passado somente ao escravo, por algum documento avulso. O outro requerimento de liberdade encontrado foi o de Maria, ex-escrava da inventariada Gertrudes Borges de Almeida, que, recebendo gratuitamente a liberdade por parte de um dos herdeiros, se propos a satisfazer o valor que restava referente aos outros herdeiros. A forma do requerimento é muito semelhante ao do escravo Salviano.[7]

              Outra possibilidade é a liberdade do escravo estar anotada na própria avaliação, no ato de identificar o escravo que estava sendo avaliado. Este foi o caso de mais três escravos avaliados no inventário do Sargento Teodoro Ferraz Leite, o que juntamente com os outros já citados, soma 93 escravos libertados nesse conjunto documental. No caso da escrava Ana, a forma como este "registro" de liberdade aparece na avaliação foi a seguinte:

"Ana, mulher de Pedro, de idade de trinta e cinco anos, liberta em terça do inventariado, que foi avaliada pelos louvados pela quantia de quatrocentos mil réis."[8]

              Da mesma forma, e no mesmo inventário que registrou a liberdade de Ana, encontramos o "registro" das alforrias de Joaninho e Maximiano. Note-se que o Sargento Ferraz Leite, falecido dono dos escravos, deixava testamento libertando oito escravos, porém nenhum desses três citados como libertos na avaliação. Não temos a mínima idéia de como interpretar este "registro" de alforria, porém nos parece claro que os três estavam libertos à época da avaliação, pois a sua identificação é clara.

              O primeiro trabalho que tivemos foi fazer o cruzamento dos nomes dos escravos encontrados nos testamentos com os nomes encontrados por Eisenberg nas cartas de alforria, cujos fichamentos se encontram no Arquivo Edgar Leuenroth. Tal procedimento era necessário para verificar possíveis duplicidades. Atente-se que inserimos os dados das cartas de alforria registradas nos primeiro e segundo cartórios de Campinas entre 1798 e 1860. Considerando que nossa pesquisa nos testamentos foi feita entre 1829 e 1838, não acreditamos que tenhamos perdido o registro de nenhuma carta de alforria dos libertos em testamento.[9]

              No decênio 1829-1838, Eisenberg encontrou 55 cartas de alforria registradas[10], mas em verdade deveríamos considerar 56. Eisenberg considerou a liberdade do escravo Vicente na década posterior (1839-1848), porém, quando registrou a alforria em 1842, Vicente já era um liberto condicional pelo testamento de seu falecido senhor, aberto em 1831; a condição era que Vicente prestasse serviços por dez anos. Após ter cumprido a condição estabelecida em testamento, ele tratou de registrá-la.[11]

              Porém, e isso é o essencial, no cruzamento de nomes entre cartas registradas e liberdades dadas em testamento, encontramos, além de Vicente, mais seis alforriados que registraram suas respectivas liberdades em cartório.[12] Logo, o número de alforrias registradas em testamento e não registradas em cartório no decênio 1829-1838 é de 86. O número de escravos alforriados em Campinas neste decênio foi, portanto, 153,57% maior do que as apontadas por Eisenberg, somando assim 142 alforrias (56 + 86). Assim, ao contrário do que afirmou Galliza em seu estudo sobre a escravidão na Paraíba na segunda metade do século XIX, a carta de alforria não foi o instrumento mais utilizado para libertar o cativo, pelo menos em Campinas na primeira metade deste século.[13]

              Com esta constatação, é possível propor, a exemplo do que propôs James Kiernan para os alforriados na pia batismal em Paraty, que não era necessário que o liberto registrasse sua alforria em cartório. É muito provável que, sendo obrigatório que o inventário fosse fechado com uma sentença judicial, tal sentença reconhecesse o caráter legal das alforrias dadas no testamento e substituísse qualquer outro registro. A sentença, em verdade, se dava no final das partilhas entre os herdeiros e vinha, normalmente na seguinte forma:

"Julgo, por sentença, firme e valiosas as presentes partilhas e mando que se observe como nela se contém para cujo fim interponho minha autoridade judicial."[14]

              Sendo a partilha dos bens deixados pelo inventariado o próprio objeto de um inventário, na medida em que a autoridade judicial legitimava a partilha com a sentença, estava legitimando também todo o processo que incluía o testamento do falecido ou falecida e, claro, o seu cumprimento. É possível, inclusive, que a sentença judicial tivesse muito mais peso legal do que um simples registro em cartório, sendo, a exemplo da carta registrada, um instrumento legal público.

              Porém, quais os motivos que levaram alguns poucos escravos a registrarem em cartório suas alforrias conseguidas em testamento e a grande maioria não? É possível que, ao necessitarem se locomover de uma cidade para outra os libertos necessitassem de um documento para comprovar sua liberdade. A forma de conseguirem este documento era o registro de suas alforrias no livro de notas do cartório, recebendo uma cópia do documento. Para os libertos que não fossem viajar para fora da cidade onde conquistaram a liberdade, a posse de uma carta registrada poderia ser absolutamente dispensável, pois se surgisse algum questionamento sobre sua liberdade, o juízo de órfãos estaria conservando a "prova" de sua liberdade, ou seja, o testamento e o inventário de seu ex-senhor.

              Cremos que o raciocínio anterior possa ser estendido aos escravos que compraram suas liberdades no decorrer do inventário, pois o requerimento solicitando a compra da liberdade também acabava ficando no interior do inventário, anexado juntamente com o despacho favorável do juiz de órfãos. Não encontramos o registro de alforria dos três escravos cujas liberdades estão apenas anotadas na identificação da avaliação e ignoramos se a simples identificação como liberto na avaliação de um inventário pudesse ser a prova legal da liberdade.

              Dos 80 escravos que receberam suas liberdades em testamento, 31 deles foram libertados em condições especiais. Estes não apenas foram libertados pelas suas duas ex-donas como foram instituídos herdeiros dos bens deixados no inventário. Encontramos o registro de alforria de apenas um desses 31 escravos, este também em condições especiais. O escravo Francisco, um dos 31 apontados, foi libertado em testamento por Dona Maria Francisca de Camargo em 1837, quando tinha oito anos. Porém, sua alforria já havia sido registrada em 1830, poucos meses após o seu nascimento. No testamento, Dona Maria Francisca não aponta que Francisco já era um liberto.[15] A única explicação para esta duplicidade temporalmente invertida é a hipótese de que Francisco foi libertado após o seu nascimento, talvez na pia batismal, e teve sua alforria registrada em cartório. Ao fazer o seu testamento, Dona Maria Francisca de Camargo ignorou a alforria já concedida em 1830 e registrou novamente seu desejo de dar a liberdade para a criança, tornando-a um de seus herdeiros.

              Além disso, o que os dados que recolhemos podem revelar a respeito dos alforriados? Quase todos os estudos sobre alforrias no Brasil, partem dos dados quantitativos para a análise qualitativa e se dividem, do ponto de vista temático, entre "as características dos alforriados" e as "motivações da alforria", tentando estabelecer relações de causa e efeito entre os dois temas. Assim, para compreender a frequência das alforrias, procura-se uma motivação econômica, comparando séries de alforrias com conjunturas de ascensão e depressão econômica. Mattoso, analisando as alforrias no século XIX na Bahia, em um momento de recessão econômica, propôs que o aumento das alforrias estava ligado à tentativa dos senhores em reaver o capital investido nos escravos, por via das alforrias pagas.[16] No caso da região da extração de metais preciosos, em Minas Gerais, chegou-se à conclusão oposta.[17]

              Os dados sobre os alforriados, presentes em nossa documentação, são eivados de lacunas (tabela 1). Porém, há uma lamentável ausência: a das residências dos alforriados. Ela ocorre por motivos de previdência. Poderíamos determinar se o escravo alforriado morava na cidade ou na zona rural, localizando todos os libertos cujos donos possuíam sítios e cujo número de escravos na avaliação fosse coerente com as atividades agrícolas. Porém, é bastante comum, senão regra, que todos os pequenos, médios e grandes senhores de engenho, também possuíssem residência na cidade (na avaliação, esse bem aparece descrito como "morada de casas na cidade"). Dessa forma, seria temerário inferir a residência por esta informação.

              É de se estranhar que os dados sobre as idades dos libertos apareçam numa porcentagem tão baixa, pois no ato de identificar o escravo na avaliação, os avaliadores, na grande maioria das vezes, anotam também a idade referida. Mesmo liberto em testamento, o ex-escravo normalmente aparece na avaliação, pois quando um escravo é libertado dessa forma, seu valor deve ser descontado na parte dos bens que cabe ao inventariado; é a chamada "terça" do inventariado da qual ele dispõe livremente em testamento. Porém, ocorrem dois problemas. Como já está dito, não são todos os avaliadores que anotam a idade, mesmo que aproximada, dos escravos avaliados. Por outro lado, e esse detalhe não conseguimos entender, há casos em que o escravo libertado simplesmente não aparece na avaliação, mesmo tendo sido libertado na "terça" do inventariado. Quanto aos baixos índices de anotações de cor e naturalidade são perfeitamente coerentes com os índices alcançados por outras pesquisas feitas em cartas de alforrias registradas.

              Tais deficiências na amostra inviabilizam quaisquer tentativas de analisar o perfil dos alforriados no que se refira a sua cor, pela sua insignificante representação. Apenas um relato sobre as anotações das cores dos escravos talvez seja pertinente. Todos os casos em que a cor é mencionada, no ato de escrever o testamento ou na avaliação, as cores descritas são a "mulata", a "parda" ou "cabra". Há 8 escravos identificados como africanos em toda amostra; talvez pudéssemos inferir que todos os africanos eram descritos como "negros". Apesar da decepção dos índices de anotações das idades e naturalidades dos alforriados, eles ainda são maiores do que os conseguidos por Eisenberg nas cartas de alforria. Sigamos na análise dos dados recolhidos.

              Uma das unanimidades entre os historiadores que estudaram as alforrias no Brasil é a constatação de que, proporcionalmente, as mulheres escravas sempre foram mais agraciadas com a alforria do que os homens escravos. Três explicações se destacam para explicar esta preferência. Por um lado, o fato de as mulheres escravas serem menos valorizadas no mercado escravista do que os homens, associado à sua maior capacidade de acumular pecúlio ou de manter relações afetivas (sexuais) com seus senhores, contribuiria decisivamente para a maior obtenção de alforrias.[18] Outra hipótese explicativa é o privilégio dado pelos escravos em libertar as mulheres para salvar a descendência da escravidão.[19] Em nossa amostra de alforriados em testamentos e inventários, a proporção de mulheres e homens foi a constante na tabela 2.

              De fato, se considerarmos que a proporção de mulheres na população escrava de Campinas esteve, no século XIX, sempre em torno de 30% do total, o número de alforrias concedidas às mulheres escravas em nossa amostra é maior do que as concedidas aos homens.[20] Nas cartas de alforria pesquisadas por Eisenberg, para a primeira metade do século XIX, esta proporção de alforrias para as mulheres é quase idêntica. A explicação para este fato, em Campinas e em nossa amostra, não pode estar associada a fatores econômicos, visto que, analisando as alforrias concedidas em testamentos e inventários no período 1829-1838, verificamos que, das 86 alforrias, apenas 3 foram compradas. Duas delas foram as dos escravos Salviano e Maria, às quais já nos referimos, que não foram dadas em testamento, mas sim compradas por solicitação dos escravos no interior do inventário. A outra foi a do escravo Manoel.[21] O valor da escrava Maria, determinado na avaliação, foi de vinte e cinco mil e seiscentos réis, preço este muito baixo e que é um indício de que Maria fosse já muito velha.

              Outra explicação seria a possibilidade das escravas terem maiores oportunidades de manterem laços afetivos com os seus senhores. Porém, das 42 escravas libertadas, 27 conseguiram suas alforrias de suas ex-senhoras e não de seus ex-senhores. Apenas 15 tiveram alforrias partindo de ex-senhores. Destas 15 escravas libertadas, não temos nenhuma informação apenas sobre 3, mas 4 eram crianças abaixo de quatro anos, duas eram casadas, uma tinha sessenta anos de idade, 3 foram libertadas por padres e apenas duas estavam na faixa etária entre vinte e trinta anos.

              Não acreditamos que fossem comuns as relações amorosas inter-raciais entre mulheres na primeira metade do século XIX e, portanto, não acreditamos que as 27 escravas libertadas por suas ex-senhoras tivessem se valido dessa vantagem sobre os homens. As 4 crianças poderiam ser filhos naturais do falecido senhor. É muito provável que tenha sido mais difícil haver relações amorosas entre os senhores e as escravas casadas do que com as solteiras. Porém, não podemos excluir, para esta explicação, as escravas libertadas por padres, visto ser o celibato uma regra universal da Igreja Católica, que sempre foi universalmente desrespeitada. A senhora de sessenta anos de idade poderia ter sido amante de seu senhor, ou ama-de-leite de seus filhos ou netos, assim como as cinco restantes. Mesmo assim, ao nosso ver, o argumento é pouco satisfatório e tal explicação não pode ser generalizada.

              Segundo os estudos sobre alforrias no Brasil, o dado mais difícil de se analisar, para traçar o perfil dos alforriados é o da idade, em função das imprecisões dos dados oferecidos pela documentação.[22] No entanto, para nossa documentação, essas imprecisões devem ser reduzidas. Ocorre que elas são oriundas dos dados recolhidos em uma parte especial dos inventários, quais sejam, as avaliações. No ato de avaliar os escravos, os avaliadores deviam ser minimamente rigorosos na identificação do escravo e de sua idade aproximada, vista a necessidade dos dados serem coerentes com o valor determinado para cada escravo. Porém, é bastante provável que as idades dos escravos sempre tenham sido determinadas de forma aproximada.

              Do ponto de vista das faixas etárias dos alforriados, Schwartz propôs que a tendência de se libertar meninos, verificada em sua pesquisa, estava ligada à depreciação de seu valor, em virtude da elevada taxa de mortalidade infantil, acrescida dos sentimentos de afeto pelas crianças.[23] Mattoso verificou que "a maior parte das cartas de alforria era concedida a escravos cuja idade encontrava-se fora da faixa etária mais produtiva (12-35 anos)", o que a leva a concluir que o fator econômico era um importante elemento de ponderação na concessão das alforrias.[24] Slenes considerou o caráter dependente das crianças e dos velhos, sua menor produtividade no trabalho, seu menor valor no mercado de escravos, o maior tempo dos escravos velhos para acumular pecúlio e também fatores de ordem sentimental para explicar a maior incidência de alforriados nessas faixas etárias.[25] Dessa forma, percebe-se também um consenso entre os pesquisadores sobre a maior incidência de alforrias entre as crianças e os mais velhos. Em Campinas, nas alforrias dadas em testamentos, encontramos um perfil um pouco diverso dos alforriados, constantes na tabela 3.

              Os dados recolhidos para a confecção desta tabela de faixas etárias dos alforriados foram as idades textualmente informadas pela avaliação; não consideramos expressões dos tipos "rapaz", "moleque" ou "menino" como fontes de inferência para a determinação das idades. O que salta à vista, nesta tabela, é a expressiva porcentagem de alforriados entre 20 e 40 anos, visto ser esta a mais produtiva. Tal porcentagem é maior do que a verificada por Schwartz para as crianças entre 0 e 13 anos na Bahia colonial. Se considerarmos que a idade produtiva dos escravos possa ter se iniciado por volta dos 10 anos de idade[26], o percentual de alforriados em idade produtiva nos testamentos avança para mais de 57%, o que também é um índice maior do que o verificado por Mattoso, na Bahia oitocentista, para os alforriados entre 12 e 50 anos de idade. A porcentagem de crianças é 15% menor do que a verificada por Schwartz para as que estavam entre 0 e 13 anos e 7% menor do que a verificada por Mattoso para as que estavam entre 0 e 11 anos. Quanto às liberdades concedidas aos mais velhos, o índice nos testamentos acompanha os percentuais verificados em outras pesquisas.[27]

              No entanto, a maior incidência de alforrias apontada na bibliografia sobre as alforrias no Brasil se refere, é claro, à sua proporção em relação à população escrava em geral. Para que possamos verificar estas proporções, utilizamos o levantamento feito pelo Marechal Muller, em 1836 (tabela 4). De fato, verificando os dados percentuais, constata-se que as crianças de até 10 anos de idade foram libertadas em maior proporção do que a sua representação no total dos escravos de Campinas. Porém, também proporcionalmente, os escravos com mais de 40 anos de idade receberam menos alforrias do que sua representação nesse total. Nas liberdades consignadas em testamento, a proporção de alforrias concedidas a escravos com idade entre 10 e 40 anos foi praticamente igual (em verdade, um pouco maior) à sua representação na população de escravos.

              Considerando, como já foi dito, que apenas 3 escravos compraram suas alforrias, não é possível generalizar as explicações que enfatizam a determinação econômica nas alforrias dadas em testamentos para escravos idosos ou crianças. Dos 3 escravos que compraram a liberdade, apenas um está presente na amostra de alforriados cujas idades estão declaradas; é o escravo Manoel, de 70 anos de idade, que foi avaliado por 60 mil réis, mas que recebeu 50 mil réis de seu ex-senhor para "ajutório de sua liberdade".[28] Não sabemos a idade de Salviano, que comprou a sua liberdade por 250 mil réis. Há também o caso da escrava Maria, que requereu a compra de sua liberdade no interior do inventário e cuja idade desconhecemos. Maria foi avaliada no inventário por apenas 25 mil e 600 réis, o que pode ser uma evidência de sua idade avançada. Dizemos que isso pode ser uma evidência, pois poderia haver outros fatores que depreciavam o preço de um escravo, como, por exemplo, alguma deficiência física ou alguma característica revoltosa do escravo (por exemplo, um escravo "fujão"). Os outros escravos idosos libertados em testamento o foram de forma incondicional. Maria, caso tenha sido libertada quando já tinha uma idade avançada, seria provavelmente a única representante, em nossa amostra, de uma alforriada idosa típica. Ela seria a única escrava libertada para a qual se aplicaria as explicações de Slenes e Mattoso. Informemos também que todas as crianças com idades abaixo de 11 anos da amostra não foram libertadas mediante compra. Cremos que em nossa amostra, a explicação de Slenes sobre as causas sentimentais dessas alforrias seria a mais plausível.

              Não estamos, porém, defendendo a hipótese de que os senhores e senhoras que libertaram seus escravos em testamentos não se importaram nem um pouco com o valor de seus alforriados. É absolutamente provável que, alforriando incondicionalmente escravos idosos e crianças, os senhores tivessem ciência de que estavam se desfazendo de uma propriedade de baixo valor. No entanto, em nossa amostra, há uma proporção considerável de alforriados em idade produtiva, e portanto com maior valor; proporção esta superior às outras pesquisas realizadas. As motivações sobre estas alforrias, ao nosso ver, não estão claras se considerarmos as explicações geralmente dadas.

              Há um grave problema quando se procura investigar a naturalidade típica dos alforriados no Brasil: é o problema da precisão dos dados. Visto ser a importação de escravos ilegal a partir de 1831, os senhores poderiam ter utilizado da artimanha de falsear os dados relacionados ao local de nascimento do escravo para se safarem de possíveis constrangimentos.[29] Porém, nesse sentido, nosso período é privilegiado. Estamos na primeira metade do século XIX e os efeitos da lei de 1831, que tornou o tráfico ilegal, devem ter sido mínimos para a declaração da naturalidade dos alforriados.

              As pesquisas demonstram que os alforriados crioulos foram sempre em maior número, tanto do ponto de vista proporcional como do ponto de vista dos números absolutos. Tal realidade mostra-se presente nos séculos XVII, XVIII e XIX na Bahia, no século XIX no Rio de Janeiro e em Campinas no século XIX.[30] A historiografia sobre as alforrias descreveram as vantagens de ser crioulo, como a maior semelhança com seu senhor e a possibilidade de conviver com ele desde o seu nascimento. Os dados que recolhemos apenas confirmam essa tendência (tabela 5). Para a sua confecção utilizamos apenas as informações literalmente expressas na documentação.

              Outra variável importante no estudo das alforrias tem sido a referente aos tipos de alforria concedidas pelos senhores aos seus escravos, havendo uma diversidade de resultados sobre a distribuição de alforrias gratuitas e onerosas.[31] Nos testamentos pesquisados, obtivemos o resultado constante na tabela 6. Para a confecção desta tabela, consideramos como alforrias condicionais todas as alforrias concedidas em que havia algum tipo de retorno para os herdeiros ou qualquer condição restritiva que postergasse a liberdade do escravo, com a exceção do pagamento em dinheiro, quando o testador expressava, literalmente, o desejo de que o escravo comprasse a sua própria liberdade pelo preço de mercado, ou seja, pelo preço de sua avaliação no inventário. Esses casos foram computados como alforrias pagas. Logicamente, também foram computadas como alforrias pagas os dois casos em que os escravos requereram ao juiz de órfãos as suas próprias compras. Por outro lado, as alforrias incondicionais são aquelas em que não estão presentes nenhum tipo de retorno ou qualquer condição restritiva.

              Em primeiro lugar, como verificação óbvia, a tabela 6 demonstra a predominância das alforrias incondicionais, ou gratuitas, sobre as onerosas ou pagas no período 1829-1838. Eisenberg, em sua pesquisa nas cartas de alforria em Campinas, constatou que as alforrias onerosas, que incluem as condicionais e as pagas, formaram a maioria das alforrias concedidas na primeira metade do século XIX, tendência que se inverte apenas alguns anos antes do final da escravidão.[32] O autor interpretou esta inversão da seguinte forma:

"Se antes, o senhor usava esse tipo de alforria (a onerosa) como uma maneira de continuar a relação entre ele, dono dos meios de produção, e o liberto, fornecedor da força de trabalho, quando não como um simples ato de venda, agora o senhor usava a alforria gratuita como um instrumento político para lidar com a crise social da abolição. Talvez com medo de ser atropelado pelos diversos grupos sociais hostis ou indiferentes à sobrevivência da escravidão, o senhor de escravos em Campinas abandonou o moroso processo legislativo como meio preferencial para extinguir a instituição e distribuía alforrias gratuitamente e em abundância."[33]

              É bastante provável que as razões que o autor aponta para explicar o predomínio de alforrias gratuitas nos anos finais da escravidão sejam procedentes. No entanto, o perfil diverso das alforrias concedidas em testamentos, pode ser um fator de problematização de sua explicação para as alforrias concedidas na primeira metade desse século, na medida em que a maioria dessas liberdades, nesse período, foram dadas em caráter incondicional, ou seja, gratuitamente. Assim, o argumento do desejo de manutenção dos laços de dependência por via de liberdades condicionais deve ser relativizado.

              A partir da tabela 6, elaboramos outra tabela, a de número 7, em que estão quantificadas as condições presentes nas 27 alforrias condicionais dadas em testamento. Estabelecer critérios para determinar a tipologia de uma alforria condicional com o objetivo de percebê-las quantitativamente é sempre muito problemático, pois, em muitos casos ela não se adequa à tipologia geral estabelecida, possuindo diferenças qualitativas. Assim, das 11 alforrias condicionais, cuja condição foi a prestação de serviços, poderíamos dizer que 5 delas não estão no padrão geral dessas alforrias.

              O escravo José foi libertado em testamento pelo Reverendo Joaquim José Gomes, em 1831, "com a pensão de trabalhar quatro anos e os seus jornais serão para se dar aos pobres desta Freguesia no fim de cada mês no que haverá cuidado e vigilância."[34] A diferença qualitativa entre essa alforria condicional com prestação de serviços e as outras é que esta não previu nenhum retorno aos herdeiros do padre; sua irmã, Ana Eufrosina, que foi a inventariante, não auferiu nenhuma vantagem com os serviços de José. Esta não parece ser uma liberdade concedida condicionalmente com o objetivo de manter os laços de dependência com o liberto após a morte do senhor. É claro, este tipo de alforria possuía um claro sentido "pedagógico-religioso", na medida em que responsabilizava o escravo por uma esmola mensal para os pobres da Vila. Mesmo assim, ela é diferente de uma típica alforria condicional com prestação de serviços para o senhor que liberta ou para os herdeiros.

              Há também as alforrias condicionais com prestação de serviços de 4 crianças. Em seu testamento aberto em 1838, Inácio Góis Maciel libertou Maximiano, de 8 anos, Maria de 3 anos, Ana, de 1 ano e Josefa, de 7 meses, com a condição de que todas prestassem serviços à sua esposa até a data de sua morte. Como se não bastasse a peculiaridade de exigir serviços de uma criança de sete meses pela sua liberdade, sua esposa, Izabel Maria de Jesus, faleceu poucos meses após a sua morte e o inventário acabou sendo feito sobre os bens do casal.[35] Assim, as 4 crianças se tornaram libertas sem prestar serviços a ninguém. Aqui, a diferença qualitativa está no fato de que os libertandos, na realidade, não prestaram serviços pelas suas liberdades, até em função de suas idades prematuras.

              Em relação ao tempo da prestação de serviços, as alforrias restantes variaram um pouco. Antonio recebeu instruções para ser libertado aos 40 anos de idade. Gertrudes deveria trabalhar 03 anos; Ana, 05 anos; o casal Clemente e Rosa, 10 anos e Caetano, 12 anos. Caetano, aliás, não prestou muito tempo de serviços pela sua liberdade, pois faleceu em 07 de Fevereiro de 1834, poucos meses após o início do inventário, em Santos, onde estava trabalhando com um dos herdeiros de seu falecido senhor.[36]

              A condição "viver em companhia" de alguém aparece 5 vezes em nossa amostra; porém, também há nelas diferenças qualitativas. A escrava Joaquina foi entregue em testamento para a irmã do falecido Reverendo Joaquim José Gomes, que determinou sua liberdade quando da morte desta, com a condição adicional de que a escrava não se entregasse ao vício da "água ardente".[37] O escravo Anastácio foi alforriado em testamento por Escolástica Paes Ferraz que declarou "que o rapaz Anastácio, quando eu morra primeiro que o meu marido, fique o dito Anastácio em companhia dele durante a sua vida." Seu marido morreu alguns meses depois e Anastácio, que tinha então 16 anos de idade, se tornou um liberto incondicional.[38] Duas escravas, Eva e Benedita foram alforriadas com a condição de viverem com parentes de seus ex-donos, até se casarem, para depois viverem com seus maridos; Benedita, inclusive, ganharia 50 mil réis no caso de se casar.[39] Também há o caso de Helena que foi libertada pelo seu senhor acrescentando: "e lhe peço em compensação deste benefício que viva sempre em companhia de minha irmã Ana Eufrosina."[40]

              Tais diferenças, ao nosso ver, inviabilizam a possibilidade de colocar estas 5 alforrias em um mesmo patamar de análise. Objetivamente, apenas 4 tiveram que cumprir a condição de viver em companhia de alguém. Em duas delas, sente-se claramente o desejo dos senhores mais em proteger seus libertos do que engalfinhá-los em uma rede de dependência ou auferir lucros para os seus herdeiros com serviços dos libertandos; é o caso de Eva e Benedita. A escrava Helena foi libertada e seu falecido dono lhe "pediu" que ela ficasse com sua irmã; essa não era, literalmente, uma condição para a sua alforria. A escrava Joaquina seria liberta desde que não se tornasse, ou não voltasse a ser, alcoólatra.

              Em uma das alforrias, a condição para a liberdade era o aprendizado de um ofício; foi a do escravo Mancio (sic). Antonio Teixeira de Camargo assim o determinou:

"Deixo libertos os meus escravos (sic) Mancio, filho da escrava Justa, com a condição de meu testamenteiro mandá-lo ensinar algum ofício e só depois de saber ofício (...) poderá sair da companhia de meu testamenteiro..."[41]

              Podemos interpretar tal condição de várias formas. Uma delas é entendê-la como uma imposição da ética do trabalho do senhor sobre o liberto. Porém, de forma não excludente, Antonio Camargo, a longo prazo, acabava por dar a seu liberto maior autonomia profissional, através do aprendizado de um ofício, garantindo-lhe uma forma de sobrevivência material.

              Em cinco casos, a condição para a alforria foi a de o escravo pagar um preço simbólico pelas suas alforrias. Todos esses escravos foram libertados em testamento por Dona Maria Francisca de Camargo, a mesma que libertou todo o seu plantel e os tornou herdeiros. Foram eles Damásio, Bento, Antonio Congo, Felix de Nação e Luiz de Nação. A condição era pagar 40 mil réis no prazo de dois anos. Não sabemos a quem esses escravos deveriam pagar tal quantia, pois a inventariada não designou ninguém em seu testamento. Sabemos a idade de 3 desses escravos: Bento tinha 24 anos; Felix de Nação, 35 e Luiz de Nação, 37 anos.[42] Obviamente, os escravos libertados neste inventário não foram avaliados, mas sim, arrolados como herdeiros no início do inventário. Apesar de a relação entre idade e preço não ser automática, é muito provável que esses escravos valessem, no mercado, entre 300 e 500 mil réis[43], o que é uma evidência que a quantia fosse apenas simbólica. Ademais, o fato de também os tornar herdeiros, com direito a legar seu sítio e casas na cidade, é uma outra evidência de que o propósito desta senhora não era vender a liberdade para esses escravos. Assim, não conseguimos entender essas alforrias como alforrias pagas, vista a perceptível intenção desta senhora. Ao nosso ver, também é problemático enquadrar essas alforrias como condicionais.

              Há também o caso das alforrias em que a condição é doar esmolas para a Igreja. Em seu testamento aberto em 1838, Izabel Maria de Jesus libertou Vicência, Marcelina e Joaquina com a condição de estas doarem, cada uma delas, 1 dobla para Igrejas de São Paulo, Campinas e Jundiaí.[44] Tal valor não excedia a 20 mil réis em 1838.[45] Na avaliação deste inventário, Vicência e Marcelina foram avaliadas em 500 mil réis cada; a liberta Joaquina, que consta como sendo "doentia", foi avaliada em 300 mil réis. É claro que estas alforrias não podem ser consideradas como alforrias pagas, visto o claro sentido religioso das disposições desta senhora. Objetivamente, essas três alforrias tem muito pouco, ou quase nada, a ver com a tipologia definida de uma alforria condicional, tal qual está presente na historiografia.

              Por fim, há duas alforrias em que a condição para a liberdade era que os escravos, Inácio e Domingues, continuassem a servir seus senhores (marido e mulher) até as suas mortes "com o mesmo procedimento que até agora têm tido e não constarem ingratidão nenhuma."[46] Maciel e sua mulher Izabel morreram em 1838, com diferença de poucos meses. Os escravos, na ausência dos senhores para acusá-los de ingratidão, se tornaram libertos.

              Através da análise quantitativa e qualitativa das alforrias concedidas em testamentos, pudemos verificar que o perfil do alforriado em testamentos é um pouco diverso do alforriado típico pesquisado até o momento no Brasil. É claro que nossa amostra é bastante reduzida e seria temerário generalizar os resultados deste período para quaisquer outros. Porém, como exercício de pesquisa, esta amostra nos dá a possibilidade de sugerir algumas reflexões.

              Nos testamentos, observamos uma porcentagem altamente significativa de alforrias incondicionais (63,85%), o que vimos ser um índice inversamente proporcional aos obtidos por Eisenberg para a primeira metade do século XIX, também em Campinas, nas cartas de alforrias registradas em cartório. Consideremos a possibilidade de que o índice de alforrias concedidas em testamentos, que não foram registradas em cartório tenha se mantido ao longo da primeira metade desse século. Fazendo-se a média aritmética das porcentagens obtidas por Eisenberg e as obtidas nos testamentos, teríamos uma igualdade percentual entre alforrias onerosas (condicionais e pagas) e alforrias incondicionais (gratuitas).[47] Porém, mesmo assim, os percentuais não seriam coerentes com a análise qualitativa da documentação. Essa análise qualitativa passa, necessariamente, por uma reflexão sobre a definição de uma alforria onerosa.

              Slenes produziu uma rica reflexão sobre as formas de classificar as alforrias onerosas e gratuitas. A partir de definições jurídicas sobre a natureza dos contratos, o autor chega a duas definições: "a liberdade dada incondicional e gratuitamente seria classificada como manumissão a título gratuito, e a liberdade dada incondicionalmente, em troca de um pagamento monetário igual ao preço do escravo no mercado, seria classificada como manumissão a título oneroso" (grifos no original). Porém, e o autor chama a atenção para isso, não ficam claras as classificações procedentes para outras formas de compensação pelas alforrias. Slenes resolve o problema no âmbito de suas fontes históricas, definindo como alforrias onerosas apenas as liberdades obtidas através de compra, pelo valor de mercado.[48]

              No caso de nossa amostra documental, é possível definir uma alforria onerosa caminhando na mesma direção da formulada por Slenes com algumas diferenças, em função da peculiaridade das alforrias concedidas em testamentos. Onerosas, seriam todas as alforrias concedidas em que o testador determinasse que o escravo deveria pagar o seu valor de mercado para os herdeiros, ou cujos serviços determinados, ou outra condição, restituíssem esse valor de mercado. Fosse esta a definição de alforria onerosa para as concedidas em testamentos, o que ao nosso ver possui um sentido histórico mais coerente, a quantidade de alforrias onerosas seria muito menor do que a registrada na tabela 6.

              Elenquemos as alforrias que não poderiam ser classificadas como onerosas com esta nova definição. O escravo José, cujos jornais seriam oferecidos para os pobres da Vila de São Carlos. As quatro crianças libertas por Inácio Góis Maciel, objetivamente, não prestaram serviços que restituísse seus valores para os herdeiros. O absurdo de condicionar a alforria de uma criança de 7 meses a prestar serviços para uma senhora que faleceria alguns meses depois, provavelmente em virtude da idade avançada, demonstra a intenção de não querer condicionar as alforrias das crianças à prestação de serviços que restituísse seus valores para a sua mulher. Anastácio não cumpriu serviço algum. Eva e Benedita não foram libertadas com a condição de prestarem serviços para restituir o valor de suas liberdades, mas sim, viver em companhia de parentes de seus falecidos donos até se casarem; Benedita, inclusive, receberia um dote com o casamento. O escravo Mancio (sic) foi liberto com a condição de aprender um ofício. Os cinco escravos libertados condicionalmente por Dona Maria Francisca de Camargo, que também eram seus herdeiros, não o foram pelo seu preço de mercado, mas sim por algo em trono de 10% desse mesmo preço. Vicência, Marcelina e Joaquina, as que teriam que dar esmola para a Igreja, também não se enquadram nessa definição de alforria onerosa. Seriam assim 17 liberdades que não poderiam ser classificadas como onerosas, apesar de conterem condições restritivas. Dessa forma, poderíamos propor outra distribuição nos tipos de alforrias (tabela 8).

              Verificamos assim, com a nova definição de alforria onerosa que, da amostra de 83 alforrias em testamentos, apenas 3 foram pagas e 10 continham condições restritivas que poderiam ser suficientes para devolver aos senhores o valor de mercado do escravo. Digamos apenas que "poderiam", pois, como veremos adiante, em um dos casos das alforrias pagas, a do escravo Manoel, o senhor lhe doou mais de 83% de seu valor apontado na avaliação. É preciso também considerar que o tempo de prestação de serviços das alforrias classificadas como "condicionais onerosas" variou entre 3 e 12 anos e não sabemos se o tempo de serviços de cada um pagaria seu preço de mercado. Não acreditamos que seriam poucos os anos de serviços necessários para que o escravo restituísse o seu valor, o que pode descaracterizar as alforrias condicionais com prestação de serviços por 3 e 5 anos como alforrias onerosas. De resto, temos mais de 84% de alforrias incondicionais ou condicionais não onerosas.

              A questão das frequências das alforrias ao longo do século XIX em Campinas foi analisada por Eisenberg em seu artigo. Dessa forma, o autor elaborou uma tabela de alforrias com seus totais decenais.[49] Objetivamente, com a pesquisa feita nos testamentos, nos é possível reconstruir os dados apenas para o decênio 1829-1838. Porém, também é possível propor estatisticamente uma reconstrução em todos os decênios da primeira metade do século, utilizando o percentual de alforrias não registradas no decênio 1829-1838 como parâmetro para os outros decênios. Tal proposição pode ser considerada temerária, na medida em que nada nos garante que os índices de alforrias não registradas tenham se mantido ao longo de cinco décadas. No entanto, tal procedimento pode ser representativo e talvez aponte para outros horizontes no estudo das alforrias, que obviamente devem continuar a ser pesquisadas. Considerando o índice de alforrias não registradas entre 1829-1838, ou seja, acrescendo 153,57% para o total de todos os decênios, a tabela elaborada pelo autor, para a primeira metade do século XIX, ficaria da forma expressa na tabela 9. Dessa forma, e utilizando os dados sobre a população escrava que Eisenberg apresenta, é possível comparar o crescimento da população escrava (tabela 10) e de libertos em Campinas ao

longo da primeira metade do século (tabela 11).

              Comparar as duas tabelas não é tarefa das mais fáceis. Em primeiro lugar, há um dado que não nos parece confiável. Como indicamos em nota, os dados para a tabela da população escrava foi retirada de um levantamento de Eisenberg. Este levantamento foi feito através de pesquisa nas "Listas de Habitantes" das cidades da então Província de São Paulo, que se encontram no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP). Para o ano de 1836 é que os dados são provenientes do levantamento do Marechal Daniel Pedro Muller feito por determinação do presidente da Província. O número de escravos em 1854 também é originário de um censo publicado em 1856. O problema é que é difícil acreditar que entre 1829 e 1836, numa época de franca ascensão econômica[50], a população escrava de Campinas tenha diminuído na proporção de 20%, sendo até possível que tenha havido um erro de impressão no livro que editou o artigo de Eisenberg, no que se refere aos dados de 1829, pois a disparidade não é comentada em seu artigo. Porém, também é possível que o levantamento demográfico do Marechal Muller tenha sido subestimado ou que haja grandes problemas nas "Listas de População" de 1829.

              Porém, não há dúvidas sobre a tendência geral de crescimento da população de escravos. Os dados sobre o ano de 1854 são claros e coerentes com a expansão econômica campineira da primeira metade do século XIX e revelam que realmente há um equívoco nos dados de 1829 ou nos de 1836. Apesar das imprecisões e dos possíveis equívocos, percebe-se que a taxa de crescimento das alforrias acompanha, grosso modo, a taxa de crescimento da população.[51] Dessa forma, as explicações que procuram relacionar o crescimento das concessões de alforrias em virtude de recessões econômicas não podem ser aplicadas para Campinas, na primeira metade do século XIX (de resto, muito menos na segunda metade).

              Outra explicação possível, segundo os tradicionais estudos sobre alforrias, seria a maior possibilidade de acúmulo de pecúlio por parte dos escravos, visto estarmos analisando um período de ascensão econômica. Porém, como vimos, apenas 2 escravos compraram a liberdade no interior dos inventários. Além das duas compras por requerimento dos escravos, há a alforria do escravo Manoel, que recebeu instruções de seu ex-senhor no testamento para comprar a sua liberdade e ainda recebeu cinquenta mil réis para "ajutório" de sua alforria. O seu preço na avaliação foi de sessenta mil réis...[52] As evidências demonstram que houve pouca conexão, ou nenhuma, entre crescimento econômico, acúmulo de pecúlio e frequência de alforrias neste período em Campinas nas alforrias dadas em testamento, que aliás são em maior número do que as dadas por via de uma carta de alforria.

              A interpretação mais convincente para a política particular de concessão de alforrias, presente na historiografia, foi a formulada por Slenes. Este autor sugeriu que as alforrias seriam uma das peças de um "complexo sistema de coações e incentivos que formou o mundo dos homens livres."[53] A alforria seria, então, a última recompensa do escravo que trabalhou árdua e obedientemente durante anos.[54] Porém, a generosidade dos senhores não era apenas puro cinismo pelo interesse em maior produtividade e bom comportamento. O mecanismo compatibilizava o paternalismo dos senhores com o seu desejo de lucro e criava diferença de "status" entre os escravos, facilitando seu controle e criando um sistema de mobilidade ocupacional entre eles.[55]

              Ao nosso ver, a sugestão de Slenes, apesar de procedente, é incompleta para as evidências presentes nas alforrias concedidas em testamentos. Pela própria natureza da documentação, cremos não ser possível entendê-las sem levar em consideração a religiosidade dos senhores, vinculado ao momento específico da produção de um testamento, o de suas mortes. Vimos que 46 falecidos senhores produziram testamentos no período que estudamos, sendo que 21 deles alforriaram escravos em suas disposições de última vontade. Portanto, de todos os que produziram testamentos, 45,65% libertaram escravos, índice que consideramos satisfatório para propor que, associadas aos mecanismos de coação e incentivos - que compatibilizavam paternalismo e desejo de lucros - as alforrias foram determinadas também pelo sentimento religioso, como ação filantrópica, quando os senhores estavam próximos da morte. Tal sentimento religioso estaria em perfeita sintonia com o paternalismo e o desejo de lucros, complementando-os e dando-lhe um conteúdo moral.

              Tal sugestão fundamenta-se em alguns aspectos dessas alforrias. Em primeiro lugar, lembremos que a maioria absoluta das alforrias (mais de 84%) foram concedidas sem condição alguma ou com condições que evidenciam que os senhores não desejavam que o valor de mercado dos escravos fosse restituído aos herdeiros, o que demonstra a intenção filantrópica de suas ações, provavelmente ligada às outras intenções sugeridas por Slenes. Também lembremos das duas senhoras que, além de libertar todos os seus escravos, os tornaram seus herdeiros. Também há o caso de Ana Eufrosina Gomes, senhora que libertou 8 escravos sem condição alguma e lhes herdou uma chácara para residência, ao mesmo tempo em que instituiu suas 5 sobrinhas como herdeiras universais.[56] Também o teor do testamento é significativo desse sentimento. Nos testamentos, é quase regra encomendar a alma para Deus, pedindo missas após sua morte. Também é muito comum, senão também regra, que os falecidos senhores deixassem esmolas para os pobres da Vila e esmolas para a construção da Igreja do Rosário. Lembremos, inclusive, que a condição para a liberdade de três escravas era doar esmolas para a Igreja.

              Resumindo, cremos ter podido demonstrar o quanto é problemático o método classificatório dos tipos de alforrias concedidas aos escravos, para posterior quantificação e análise. A abordagem qualitativa dessas alforrias pode alterar a sua classificação e, portanto, a sua interpretação. Por outro lado, as preocupações de Eisenberg mostraram-se absolutamente procedentes. Os testamentos são uma fonte importante, senão essencial, para o estudo das alforrias no Brasil, provavelmente junto com os livros de batismos.

              Vimos também que as alforrias concedidas em testamento mostraram um perfil de alforriados bastante diverso dos descritos nas cartas de alforria registradas em cartório. As mulheres escravas foram libertadas, proporcionalmente à sua representação no conjunto dos escravos, em maior número de vezes; porém, as explicações para tal preferência, presentes na historiografia, mostraram-se insatisfatórias. O índice percentual das idades dos alforriados em idade produtiva também foi maior do que os registrados em outras regiões. Porém, e é esse o dado que talvez seja o mais significativo, as formas de manumissão concedidas aos escravos em testamentos se diferenciaram bastante das verificadas nas cartas de alforria registradas; as alforrias não onerosas somaram a grande maioria nas concedidas em testamentos. Nosso argumento, para a interpretação dessa diferença, é que, em conjunto com as motivações formuladas por Slenes, a filantropia de inspiração religiosa dos senhores próximos da morte inspiraram a política particular de concessão de alforrias.

              Há também um dado qualitativo que devemos lembrar sobre as alforrias concedidas em testamentos. É absolutamente corriqueiro na historiografia sobre a escravidão no Brasil, a lembrança de que as alforrias poderiam ser revogadas pelos senhores que a concederam, por motivo de ingratidão por parte do liberto.[57] Tal possibilidade, inclusive, desempenhou papel importante na formulação de interpretações sobre a concessão de alforrias.[58] Porém, e aqui o dado qualitativo se expressa, seria possível revogar uma alforria concedida em testamento? Ou seja, seria possível que os herdeiros do falecido ou falecida reivindicassem, por algum motivo, a revogação de uma alforria com a alegação de ingratidão?

              Do ponto de vista do direito positivo do século XIX tal possibilidade parece não existir. O título 63 do livro IV das Ordenações Filipinas é bastante claro em relação ao tema. Após descrever as várias possibilidades de ingratidão por parte do liberto, o título 63 segue em seu parágrafo 9º:

"E se o doador, de que acima falamos, e o patrono, que por sua vontade livrou o escravo da servidão, em que era posto, não revogou em sua vida a doação feita ao donatário, ou a liberdade, que deu ao liberto, por razão de ingratidão contra ele cometida, ou não moveu em sua vida demanda em Juízo para revogar a doação ou liberdade, não poderão depois de sua morte seus herdeiros fazer tal revogação. E bem assim não poderá o doador revogar a doação ao herdeiro do donatário por causa de ingratidão pelo donatário cometida, pois a não revogou em vida do donatário, que a cometeu: Porque esta faculdade de poder revogar os benefícios por causa de ingratidão, somente é outorgada àqueles, que os benefícios deram, contra os que deles os receberam, sem passar aos herdeiros de uma parte, nem de outra.[59]

              É bastante provável que este parágrafo das Ordenações estivesse se referindo às alforrias concedidas durante a vida dos senhores. Porém, não há nenhuma disposição sobre revogação de alforrias em testamentos nas Ordenações e cremos que o princípio jurídico que norteava o poder de revogar uma alforria está expresso no trecho que grifamos. É claro que este princípio jurídico não reflete, necessariamente, a prática jurídica no Brasil do século XIX. Porém, várias pesquisas recentes têm demonstrado que a prática da justiça no Brasil não estava ligada mecanicamente ao poder de classe dos senhores de escravos[60], sendo possível que os escravos, ou seus curadores, tenham se utilizado da letra da lei para garantir suas liberdades.

              Além disso, a possibilidade de revogação das alforrias por motivo de ingratidão concedidas durante a vida dos senhores, pelos senhores que a concederam, também já foi questionada pela historiografia. Em recente pesquisa, cujo resultado ainda não foi publicado, Cano investigou as relações entre o direito brasileiro e as alforrias no século XIX. Defendendo a impossibilidade de separação rigorosa entre direito costumeiro e direito positivo neste século, o autor demonstrou que havia uma série de práticas e interpretações contraditórias a respeito deste direito dos senhores muito antes da promulgação da lei de 1871, que, definitivamente tornou ilegal a revogação das alforrias. Tais práticas e interpretações contraditórias sobre o direito de revogação das alforrias era possível em função da ausência de um Código Civil e da abundância de leis contraditórias espalhadas entre a Constituição do Império, as Ordenações Filipinas e seu direito subsidiário. Tal anarquia legal no Império brasileiro permitia a existência de várias jurisprudências, conflituosas entre si, criadas a partir de diferentes sentenças do Supremo Tribunal. Ela permitiu, inclusive, em 1868, que o Supremo legitimasse uma decisão favorável a uma escrava da Bahia, argumentando que as disposições das Ordenações, referentes à revogação das alforrias, já estaria derrogada pela Constituição do Império.[61]

              Assim, cremos, este artigo demonstrou a necessidade de que as alforrias no Brasil voltem a ser pesquisadas. O estudo das alforrias em testamentos demonstrou que a sua quantidade no Brasil pode ter sido muito maior do que a apontada até o momento. Os aspectos qualitativos dessas alforrias se mostraram bastante diversos das alforrias concedidas em cartas de liberdade registradas em cartórios. E o principal, seu provável caráter irrevogável pode questionar as interpretações correntes sobre a condição dos libertos.

 

 

 


 

Tabela 1

DISTRIBUIÇÃO DE VARIÁVEIS NOS TESTAMENTOS E AVALIAÇÕES

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      Variável              Ocorrência              %

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Sexo                            86              100,0%

Idade                           42            48,8%

Cor                             08              9,3%

Naturalidade                    25            29,0%

Condições                       83            96,51%

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Tabela 2

SEXO DOS ALFORRIADOS NOS TESTAMENTOS

Campinas, 1829-1838

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Alforrias       Ocorrência          % da amostra de 86

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Homens          44                     51,16%

Mulheres        42                     48,83%

Total...........86......................100,00%

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Tabela 3

IDADE DOS ALFORRIADOS NOS TESTAMENTOS

Campinas, 1829-1838

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Idades       Homens      Mulheres      Total     % da amostra de 42

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 0-10       03        10        13        30,95%

11-20       05        0        05        11,90%

21-40       10        09        19        45,23%

41...       03        02        05        11,90%

Total...........................42........100,00%

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Tabela 4

POPULAÇÃO ESCRAVA DE CAMPINAS POR FAIXAS ETÁRIAS- 1836[62]

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Idades                População           %

-----------------------------------------------------------------------

 0-10                 712                   18,17%

10-20                 640                   16,33%

20-40                 1.461                     37,29%

40...                 1.104                     28,18%

Total................3.917................100,00%

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Tabela 5

NATURALIDADE DOS ALFORRIADOS NOS TESTAMENTOS

Campinas, 1829-1838

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Naturalidade      Homens      Mulheres      Total  % da amostra de 25

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Africana        08        0         08        32%

Crioula         08        09        17        68%

Total................................25.........100%

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Tabela 6

TIPOS DAS ALFORRIAS EM TESTAMENTO

Campinas, 1829-1838

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Tipo de alforrias       Ocorrência          % na amostra de 83

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Incondicionais        53                  63,85

Condicionais          27                  32,53

Pagas                 03                  3,61

Total.................83..................100,00%

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Tabela 7

TIPOS DE CONDIÇÕES DOS ALFORRIADOS EM TESTAMENTO

Campinas, 1829-1838

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Tipo de condição        Ocorrência          % na amostra de 27

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Viver em companhia       05                  18,51%

Prestar serviços              11                  40,74%

Aprender ofício          01                  3,70%

Pagamento simbólico       05                  18,51%

Gratidão                  02                  7,40%

Esmola p/ Igreja          03                  11,11%

Total......................27...................100,00%

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Tabela 8

TIPOS DE ALFORRIAS EM TESTAMENTO

Campinas, 1829-1838

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Tipo de alforria              Ocorrência       % da amostra de 83

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Incondicionais                  53              63,85%

Condicionais não onerosas        17              20,48%

Condicionais onerosas              10              12,04%

Pagas                           03             3,61%

Total...........................83.............100,00%

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Tabela 9

ALFORRIAS EM CAMPINAS: TOTAIS DECENAIS

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Decênio               Alforrias                 Média anual

            (registradas ou em testamento)

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1798-1808             35                        3,1

1809-1818             71                        7,1

1819-1828             76                        7,6

1829-1838             142                       14,2

1839-1848             228                       22,8

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Tabela 10

POPULAÇÃO ESCRAVA: CRESCIMENTO[63]

Campinas, 1798-1848

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Anos                  Escravos            Crescimento

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1799                833

1809                  1768                      112,24%

1818                  2727                    54,24%

1829                  4890                    79,31%

1836                  3917                      -19,89%

1854                  8149                      108,04%

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Tabela 11

POPULAÇÃO DE LIBERTOS: CRESCIMENTO

Campinas, 1798-1848

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Decênio               Alforrias           Crescimento

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1798-1808             35

1809-1818             71                  102,85%

1819-1828             76                    7,04%

1829-1838             142                 86,84%

1839-1848             230                 61,97%

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[1] - Peter Eisenberg, Homens Esquecidos, Campinas, Ed. da Unicamp, 1989, p. 245.

[2] - idem, ibidem, p. 246.

[3] - idem, ibidem, p. 248. Vários estudos anteriores sobre alforrias de escravos no Brasil partiram do pressuposto de que o registro das cartas de alforria era obrigatório para ser legalizada. Entre eles ver Diana Soares Galliza, O Declínio da Escravidão na Paraíba: 1850-1888, João Pessoa, Editora Universitária, UFPb, 1979, p. 140; Kátia M. Q. Mattoso, "A propósito das Cartas de Alforria: Bahia, 1779-1850, Anais de História (Assis, 1972), Ano IV, p. 29; Stuart Schwartz, "A Manumissão dos escravos no Brasil colonial: Bahia, 1684-1745", Anais da História (Assis, 1974), Ano VI, p. 81. Em outra obra, Mattoso escreve, sobre as alforrias, que "para evitar contestação, tornou-se hábito que o documento seja registrado no cartório em presença de testemunhas." Ser Escravo no Brasil, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1988, p. 177.

[4] - James Kiernan, The Manumission of Slaves in Colonial Brazil: Paraty, 1789-1822, Tese de Doutorado em História, New York University, 1976, p. 197.

[5] - Peter Eisenberg, op. cit., p. 249-250. Mattoso também lembrou que as alforrias poderiam ser concedidas em testamentos: Mattoso, Ser Escravo no Brasil... p. 177. Para uma discussão de caráter jurídico sobre as liberdades concedidas em testamento ver Agostinho Marques Perdigão Malheiro, A Escravidão no Brasil, Petrópolis, Ed. Vozes/Instituto Nacional do Livro, 1976, Volume I, p. 82-94.

[6] - 3º Ofício do TJC, Caixa 256, Processo nº 6627, Ano de 1830. Inventariado: Antonio de Oliveira Pontes. Inventariante: Ana Luiza do Espírito Santo.

[7] - 3º Ofício do TJC, Caixa 259, Processo nº 6655, Ano de 1833. Inventariante: Francisco Antonio da Silva.

[8] - 1º Ofício do TJC, Caixa 263, Processo nº 6681, Ano de 1837. Inventariado: Sargento Teodoro Ferraz Leite. Inventariante: Capitão Luciano Teixeira Nogueira.

[9] - Na pesquisa de Mattoso, o espaço de tempo decorrido entre a data da concessão da alforria e de seu registro era geralmente de um a dois anos, apesar de encontrar, mesmo que raramente, espaços de tempo maiores. Schwartz verificou que tais datas são freqüentemente "semelhantes", apesar de também constatar espaços de tempo maiores. Mattoso, op. cit., p.36; Schwartz, op. cit., p. 81.

[10] - Eisenberg, op. cit., p.262.

[11] - 3º Ofício do TJC, Caixa 256, Processo nº 6636, Ano de 1831. Inventariados: Dona Ângela Izabel Maria de Souza e Capitão Joaquim José Teixeira Nogueira. Inventariante: Luciano Teixeira Nogueira.

[12] - Foram eles Gertrudes, Ana e Vicente, libertos nos testamentos de Ângela Izabel Maria de Souza e seu marido Capitão Joaquim José Teixeira Nogueira (ver nota 11); também Sabina, Carolina e Felicidade, libertas em testamento do Sargento Teodoro Ferraz Leite (ver nota 8); e Francisco, libertado em testamento de Dona Maria Francisca de Camargo, 1º Ofício do TJC, Caixa 75, Processo nº 1819, Ano de 1837, inventariada: Dona Maria Francisca de Camargo, inventariante: Bento Antonio.

[13] - Galliza, op. cit, p.140.

[14] - Retiramos esta sentença do inventário de Dona Maria Francisca de Camargo para uma demonstração, porém, todas as sentenças têm esta forma. Ver nota 12, processo nº 1819.

[15] - Ver nota 12, Processo 1819; Dona Maria Francisca libertou 23 escravos e os tornou herdeiros de seus bens. A outra senhora que libertou 8 escravos e os tornou herdeiros foi Dona Ana Joaquina de Camargo em inventário de 1836, 1º Ofício do TJC, Caixa 74, Processo 1804, inventariante: Vitorino Bueno de Camargo.

[16] - Kátia M. de Q. Mattoso, "A carta de alforria como fonte suplementar para o estudo da rentabilidade da mão-de-obra escrava urbana", in: Carlos Manuel Peláez e Mircea Buescu, A Moderna História Econômica, Rio de Janeiro, APEC, 1976, p. 149-163.

[17] - Francisco Vidal Luna e Iraci del Nero Costa, "A presença do elemento forro no conjunto dos proprietários de escravos", in: Ciência e Cultura, São Paulo, 1980, p. 836.

[18] - Mattoso, A propósito..., p. 40. Mary C. Karasch, Slave Life in Rio de Janeiro: 1808-1850, Princeton, Princeton University Press, 1987, p.345-347.

[19] - Eisenberg, op. cit., p.264-265

[20] - Para esta proporção, idem, ibidem, p. 266.

[21] - 3º Ofício do TJC, Caixa 260, Processo nº 6668, Ano de 1833. Inventariado: José Ribeiro de Siqueira. Inventariante: Ana Domitília de Almeida.

[22] - Schwartz, op. cit., p. 88-90. Mattoso, op. cit., p. 88-90. Eisenberg, op. cit., p. 276-277.

[23] - Schwartz, op. cit., p. 90.

[24] - Mattoso, A carta de alforria como fonte suplementar..., p. 161.

[25] - Robert W. Slenes, The demography and economics of Brasilian slavery, 1850-1880, Tese de Doutoramento em História, Standford University, 1976, p. 509-512.

[26] - Para esta discussão, ver Schwartz, op. cit., p. 88-89. Ver também Slenes, op. cit., p. 490.

[27] - Mattoso, Ser Escravo..., p. 186. Para as análises quantitativas, ver Schwartz, op. cit., p. 90 e Mattoso, A carta de alforria como fonte suplementar..., p. 160.

[28] - ver nota 21.

[29] - Para esta discussão, ver Eisenberg, p. 272-273. Há uma outra discussão sobre o termo "crioulo" como definidor de nacionalidade brasileira e de cor negra. Entendemos o termo "crioulo" apenas como definidor de nacionalidade. No testamento de Dona Ângela Izabel Maria de Sousa, há a seguinte declaração: "Declaro que a escrava Bárbara que deixo à minha filha não é crioula, é rapariga da Costa." Para identificação do processo, ver nota 11.

[30] - Schwartz, op. cit., p. 87 e 103; Mattoso, A propósito..., p. 38; Karasch, op. cit., p. 349 e Eisenberg, op. cit., p. 272.

[31] - Para este "balanço" historiográfico, ver Eisenberg, op. cit, p. 281. Sobre a divisão das alforrias entre gratuitas e onerosas, ver Slenes, op. cit., p. 513-518 e Eisenberg, op. cit, p. 280. As definições do que seja uma alforria onerosa são diferentes nesses dois autores. Slenes, após reflexão, parte do "pressuposto que a título oneroso refere-se somente a concessões incondicionais de liberdade obtidas através da compra." (p. 517). Eisenberg, ao produzir uma tabela sobre as alforrias onerosas, inclui nela as alforrias concedidas em troca de pagamento em dinheiro ou mercadoria, prestação de serviços ou alguma combinação entre elas.

[32] - Eisenberg, op. cit., p. 282.

[33] - idem, ibidem, p. 301.

[34] - 1º Ofício do TJC, Caixa 55, Processo nº 1396, Ano de 1831. Inventariado: Rev. Joaquim José Gomes. Inventariante: Ana Eufrosina Gomes.

[35] - 1º Ofício do TJC, Caixa 82, Processo nº 1943. Inventariado: Inácio Góis Maciel. Inventariante: Izabel Maria de Jesus.

[36] - Para os escravos Clemente, Ana e Rosa ver nota 11. Para Caetano: 1º Ofício do TJC, Caixa 531, Processo nº 9688, Ano de 1834; Inventariado: Rev. Joaquim Joaquim Teixeira Nogueira; Inventariante: José Teixeira Nogueira. Para a escrava Gertrudes: 3º Ofício do TJC, Caixa 264, Processo nº 6684, Ano de 1837; Inventariado: Antonio Teixeira de Camargo; Inventariante: Ana Rufina de Almeida.

[37] - Ver nota 35.

[38] - 1º Ofício do TJC, Caixa 257, Processo 6638, Ano de 1829. Inventariados: Antonio da Silva Leme e Escolástica Paes Ferraz. Inventariante: Francisco de Sampaio Goes e Barros.

[39] - Para Eva, ver nota 38. Para Benedita, ver nota 34.

[40] - Ver nota 36, Processo nº 9688.

[41] - Ver nota 36, Processo 6684.

[42] - Ver nota 12, Processo nº 1819.

[43] - Isso se verifica pela análise da avaliação dos escravos do inventário de Antonio da Silva Leme e Escolástica Paes Ferraz. Ver nota 39.

[44] - Ver nota 35.

[45] - Inferimos tal valor a partir de uma tabela elaborada por Karasch com equivalência entre "mil-réis" e "doblas", op. cit., p. 346.

[46] - Ver nota 35.

[47] - Em verdade, teríamos as alforrias onerosas com 50,92% e as gratuitas com 49,08%.

[48] - Slenes, p. 513-518.

[49] - Eisenberg, op. cit., p. 262.

[50] - idem, ibidem, p. 323-339.

[51] - De resto, tal assertiva já havia sido verificada por Eisenberg, op. cit., p. 260.

[52] - ver nota 21.

[53] - Slenes, op. cit. p. 484.

[54] - idem, ibidem, p. 530.

[55] - idem, ibidem, p. 538-541.

[56] - 1º Ofício do TJC, Caixa 58, Processo nº 1468, Ano de 1832. Inventariada: Ana Eufrosina Gomes. Inventariante: Joaquim José Soares de Carvalho.

[57] - Tal direito dos ex-senhores está previsto nas Ordenações Filipinas, Livro IV, Título 63. Ver Perdigão Malheiro, op. cit., p. 132-139.

[58] - Ver, por exemplo, Manuela Carneiro da Cunha, "Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e lei positiva nas alforrias de escravos no Brasil no século XIX", in: Antropologia do Brasil, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1986, p. 137. As alforrias, na interpretação da autora, seria uma das peças do mecanismo de formação de uma população de trabalhadores livres dependentes. A possibilidade de suas revogações seria mais um elemento de coerção dos libertos. Ver também Sidney Chalhoub, Visões da Liberdade, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 136-143, onde o autor demonstra que a possibilidade de revogação das alforrias foram se tornando mais difíceis ao longo do século XIX.

[59] - Extraído de Perdigão Malheiro, op. cit., p. 132. Grifos nossos.

[60] - Entre eles, ver Chalhoub, op. cit.; Sílvia Lara, Campos da Violência, Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1988; Regina Célia Xavier Freire, Histórias e Vidas de Libertos em Campinas na Segunda Metade do Século XIX, Dissertação de Mestrado apresentada ao Depto. de História da Unicamp, 1993; Hebe Maria de C. Mattos de G. Castro, A Cor Inexistente, Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.

[61] - Jefferson Cano, "O Direito e as Alforrias no Brasil do Século XIX", mimeo. Para uma investigação similar a de Cano, porém, com outras fontes, ver Eduardo Spiller Pena, "Um Romanista entre a Escravidão e a Liberdade", mimeo. Para outra crítica à idéia de uma rígida separação entre direito costumeiro e direito positivo, ver Keila Grimberg, Liberata, a lei da ambiguidade, Rio de Janeiro, ed. Relume-Dumará, 1994.

[62] - Marechal Daniel Pedro Muller, Ensaio d'um Quadro Estatístico da Província de São Paulo, São Paulo, Tipografia de Costa Silveira, 1923, 1º edição de 1838, p. 130.

[63] - Eisenberg, op. cit, p. 266.