Pedaço de texto do livro
"Entre o real e o imaginário - as criaturas"
Sequência do capítulo I

...A paisagem emana paz. Adentro a moldura e me torno parte da paisagem. Agora sou personagem desta cena e começo a percorrer estes caminhos virginais lentamente. Vou caminhando um pouco insegura cativada pelas flores amarelo-dourado que acenam ao sol. Linda miragem de cores fortes. Verdel viçoso a misturar-se ao azul forte do céu. Nenhuma nuvem lá em cima. Parece um quadro emoldurado e fixo na parede da sala. Não satisfaz. Quero vida e vida em abundância. Quero o real dentro do imaginário.

Ao longe vejo a linha do horizonte movimentar-se e percebo um vulto a saltitar. Uma melodia suave se espalha no ar e já não escuto mais o som das cigarras que envolviam-me no mundo físico. Estou além, muito além do real que me rodeia e uma estranha sensação domina minha mente. “Eu já estive aqui antes”.

Esta é uma velha sensação a revelar-me antecipadamente os lugares e as situações a viver. Vem misturada com lembranças de coisas passadas, formando impressões inquietantes dentro de mim. Ouço o canto da criatura, suave e triste. “Um anjo”, concluo. Este pensamento me domina no exato instante da fatal atração: caminho de encontro à criatura. O som vai ficando mais alto e sou cada vez mais atraída por ele. É doce e envolvente.

Para surpresa minha, ao chegar bem próximo, vejo uma menina que de celestial tem apenas as formas infantis: beira os oito anos de idade. Ao ver-me tão perto tenta fugir, passa por mim, dá alguns passos e volta-se fixando-me um olhar curioso, depois começa a andar em círculos a meu redor, com olhos arregalados. Tento tocar-lhe e ela recua. Imagino cena semelhante em tempos remotos, no berço mãe-África. Ali habitavam homens-meninos, a olhar nos rios o reflexo de seus rostos, e a conhecer a cor negra, bela, forte, onde dentes alvos mostravam felicidade e do meio do mar ondas gigantescas cuspiam seres de pele branca que deitavam cordas ao vento e engoliam a liberdade; ao vento também eu estendo meu braço moreno-sol, mão aberta e sorrio. A menina continua a andar em torno de mim e a olhar-me assustada e, eu, que a criei, olho-a admirada. É bela e não sabe quem sou.

Continuo a sorrir e a rodar. A menina tropeça e cai. Abaixo-me para ajudá-la. Coloco minha mão no seu braço e puxo-a suavemente. Vejo seu joelho sangrar. O líquido flui espesso. Satisfaz-me pensar que a vida brota da minha criação. Ela se assusta ao ver o sangue jorrar e meu sorriso satisfeito se alarga. Olho seu braço branco preso em minha mão morena. Percebo o pânico em seu olhar. Solto-a. Ela desanda a correr como uma gazela assustada. Esquece a dor do ferimento. O medo a domina. Medo animal, selvagem, como todo ser-humano, curioso,perigoso, capaz de amar e odiar, dar a vida e matar...

Vejo-a ao longe fundindo-se com o verde do campo e sigo seus passos com a alma transbordante de alegria. Ando pelo pasto em direção da caça e farejo outras criaturas onde a menina se escondeu. Logo adiante a vila fervilha de dramas e isto me atrai. Sob meus pés a grama verde. A satisfação inunda minh'alma: estou pisando a minha criação.

Voltar