O desenho animado como Habitus estético-televisual
Prof. Ms. Alexandre Silva dos Santos Filho
Universidade Federal do Pará
assf@ufpa.br

RESUMO
O desenho animado é o mais cativante das programações infantis na televisão, não existe criança que não se encante com eles. As famílias vivem sob o efeito estético dos desenhos animados, herança cultural construída pela indústria televisual que promove, ainda hoje, fortes laços de consumo com os novos tipos de animação na televisão. Então, convive-se com o efeito estético televisual que mantém firme a promessa da experiência com o belo e encontra os padrões definidos na forma de recepção deste, através da serialização e repetibilidade da narrativa gráfico-visual. Pretende-se, portanto, refletir sobre a recepção estética do desenho animado formador de habitus televisuais na infância.

Palavras-Chave: Televisão. Desenho animado. Campo televisual.  Habitus estético


O Campo e o Habitus Televisual

Para existir um campo é condição necessária que haja autonomia, interesses próprios e pelo menos dois agentes, que no seu interior disputam por uma melhor posição na estrutura deste. O campo televisual, portanto, será caracterizado pelas disputas entre as emissoras pela audiência e domínio sobre os outros. Conseqüentemente, configurar-se-á através de uma estrutura invisível que não é percebida pelos telespectadores e nem pelos profissionais que trabalham na TV, analisa Boudieu (1997). Mas o campo televisual é dependente das áreas econômica e política, assim como da produção cultural. Um campo é um espaço social estruturado, afirma Bourdieu (1997), um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço (p. 67). Logo, é peculiar no campo televisual a luta pela audiência travada pelas emissoras, já que concorrem entre si em busca de uma fatia do mercado, sendo o telespectador objeto dessa firmação.
É nesse domínio que a idéia estética se fixa, pois é atributo também do poder simbólico, já que a conquista de anunciantes caracteriza uma situação dominante que dita valores televisuais com o objetivo de capitalizar um modelo e promover a dominação econômica. Tal dominação ocorre por meio da dependência dos anunciantes que se inscrevem como usuários dos serviços de publicidade disponibilizados pelas emissoras, por meio de um leque de opções em sua programação e de acordo com o produto e/ou serviço a ser veiculado.
Pode-se identificar os agentes atuantes desse campo como sendo os profissionais de televisão (produtores, diretores, jornalistas, apresentadores, animadores, publicitários, etc.), anunciantes (empresários) e os televidentes (telespectadores ligados à televisão, responsáveis pela audiência). Os telespectadores mirins são os agentes que passam maior parte do dia em frente à TV, nesta condição estão subsumidos pela estrutura objetiva da televisão, pois nunca podem manifestar-se diretamente no ato pedagógico da televisualidade. Para cumprir tal ato pedagógico, as apresentadoras se vestem atraentes aos padrões da criançada, capazes de cativá-las com seu visual, brincadeiras esdrúxulas e estereotipadas; pretendem chamar a atenção das crianças, ancorando-se nos desenhos animados e filmes fantasiosos, abrindo espaço também, e principalmente, para veicular anúncios de produtos destinados ao público infantil (brinquedos, alimentos, roupas, calçados).
A dominação econômico-técnica e simbólica na qual a emissora investe, tornar-se modelo, fonte de idéias e fórmula para a realização de novos empreendimentos nesse mercado, destinada à criança. Nesse sentido, o desenho animado será o recurso mais preponderante da televisão para prender a garotada num horário específico. Em vista de que a liderança do mercado é traçada pelas conquistas constantes de audiência para poder ter mais anunciantes, mais capital financeiro, mais poder e mais predominância no campo social.
Um dos papéis do desenho animado, no campo televisual, além, é claro, de entretenimento, é ser constituído por um meio técnico de informação de alto grau de representação que serve para transmitir interesses industriais, de produtos que serão lançados no mercado consumidor, e que é preciso desenvolver na criançada certas habilidades perceptivas e de pensamento, para processar o produto vindouro, de forma que tenha aceitação de imediato. Isso é uma intransigência ética, que representa para Bourdieu preceito ético. A televisão assume comumente este papel de instrumentalizar o gosto infantil, começa com desafio de percepção, promove atitudes irreverentes, moldar comportamento, formatar estilo, etc. Isso inevitavelmente influi na recepção da televisão pela criança, já que o peso simbólico que cada uma das formas que aparece na televisão capitaliza o papel de sensacionalismo, espetacular e/ou extraordinário, impondo suas preferências, suas maneiras de ser e de falar, seu ideal humano, critica Bourdieu (1997, p. 73).
O Campo televisual trabalha com a idéia de “efeito ônibus”, definido por Bordieu como uma das leis usadas pelo poder de difusão da televisão. Consiste em reunir um maior número de telespectadores no mesmo horário, de forma a homogeneizar a informação e/ou os assuntos, tornando-os “naturais” e corriqueiros. Temas como morte, suicídio, violência, erotismo, etc., nos filmes e, especialmente, nos desenhos animados veiculados na televisão, tende a se constituir como algo natural, já que a sua repetição contínua é banalizada e cai na homogeneização do sentido. Para Bourdieu (1997, p.60), constrói-se o objeto de acordo com as categorias de percepção do receptor, ou seja, o objeto de comunicação sensorial já existe há muito tempo na sociedade humana e é possível observar, no registro histórico, essa tendência de socializar o pensar de forma coletiva, porém, ainda no formato ingênuo de se representar no pensamento do outro.
A compreensão do campo televisual é importante porque ajuda a visualizar os aspectos fenomenais envolvidos na estrutura social que irá, de certa forma, refletir na mentalidade do indivíduo, a criança, neste caso, é a mais afetada por que não sabe diferenciar-se da estrutura imposta pela ditadura da imagem, mas é também cidadã inserida na estrutura objetiva da sociedade que se transforma à medida que novos habitus são agregados à vida, em determinado campo, aqui, especialmente, o televisual.
A palavra latina habitus vem do grego hexis que designa um processo de aprendizagem. Durkeheim, assim como Aristóteles, usou este conceito para demonstrar o estado interior e profundo dos seres humanos, que de forma consciente ou inconsciente demonstram ações duráveis. Para Bourdieu, habitus pode designar a noção de cultura, adaptação, matriz de percepção, comportamento, bem como inscrever estruturas e condicionamentos sociais, implica em subjetividade.
Habitus como sendo o sistema de disposição duráveis, também é ... estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, diz Bourdieu (op cit, p. 15). Já que as estruturas são estruturadas no agente a partir da sociedade e, a qualquer momento, dispostas a atuar como estruturas estruturantes, com efeito, as estruturas geram a prática e as representações, ambas regulamentadas por regras sociais, orquestradas e organizadas. A idéia de beleza está inserida na estrutura da mente do ator social que se estruturou a partir de sua prática na sociedade, inculcada pelas estruturas objetivas urbana e social.
A experiência estética é estruturante, atua na receptividade da criança, capaz de se formular a partir da política da televisão, com reflexo em toda a sociedade, permeando a vida doméstica por meio de um aparelho eletrônico. Sem dúvida, o poder simbólico dominante institui-se e a experiência estética disponível ao público infantil, através da imagem do desenho animado, acaba sendo a expressão do gosto do adulto e do interesse da indústria cultural, uma forma de instrumentalização do poder que deve ser apreendido como natural. Neste sistema moldante, formar telespectadores mirins implica construir preferências por programas na televisão, embora se saiba que uma programação específica ou um comercial, não é uma simples preferência, naturalmente estética, mas sim induzida pelo habitus. Os dominados sustentam o índice de audiência, legitimam o interesse da classe dominante e, dessa forma, consagram a emissora. E é por meio do habitus que o juízo estético se constitui.
O habitus estético, portanto, constrói-se objetivamente por meio da ação que regula as escolhas e o padrão vigente de percepção, é individual e se estrutura no tempo prolongado de exposição televisual. O habitus estético cria uma prática orquestrada de assistir à televisão e faz disso um objeto estético. Já a experiência estética surge dessa oportunidade, transitória, baseada no fenômeno receptivo da imagem televisual formada a partir do sentimento de prazer ou desprazer. Então, o sentimento de satisfação ou insatisfação que a criança terá ao apreciar o desenho animado, isso será o belo para ela.
A televisão disponibiliza esse fenômeno de forma corriqueira, visto que ela “democraticamente” distribui a todos, sem interesse, o efeito estético, para ser experimentado por todo o mundo, por meio do efeito ônibus. É irônico, mas em se tratando de economia capitalista, o empenho é promover o esteticismo e não a livre contemplação. Haverá sempre o interesse das emissoras de televisão em promover o capital econômico e negar o capital simbólico: O capital simbólico ... não é meramente um símbolo para o capital econômico, mas o capital que existe quando são negados os interesses econômicos ... quando os agentes resistem a interesses econômicos (LOESBERG, 2000: 225).
Conseqüentemente, a televisão apodera-se desta noção e produz imagens que fornecem todo o agrado do telespectador mirim. Assim, este condicionante resulta em um feitio de dominação estético-visual que se reflete na recepção da televisão. Como não existe um conteúdo separado da forma e a forma estética é mais atrativa do que o conteúdo da mensagem, a criança preferirá a forma-imagem do audiovisual. Esta predisposição de estruturar a relação do agente telespectador à imagem sensível na televisualidade representa a estrutura estruturante capaz de gerar a prática de buscar o belo, neste caso, o belo dominante instaurado a partir do poder simbólico televisual.
Para repensar a questão sob a ótica infantil, pode-se partir da seguinte afirmativa: o habitus é uma exteriorização da interioridade da criança. Então, o habitus estético televisual na infância é construído primeiramente pela herança cultural dos pais, em relação ao habitus estético adquirido e transmitido aos filhos. Provocado pelas necessidades contemporâneas, criado no seio familiar e formatado no ambiente urbano-social: a família permite à criança passar horas diante da TV, amparada pela confiança que a televisão conquistou ao juntar em casa a família diante dela. Tudo começa na instituição familiar, ao delegar à criança o poder do zapping – ligar e desligar a TV, escolher solitariamente a programação televisual sem a assistência de um adulto, isso contribui para reprodução da ordem estético-televisual e comunicacional vigente, imposta pelo arbitrário cultural, ou seja, pela estrutura objetiva televisual e não por uma estrutura estruturante, que é a idéia estética.

Ação pedagógica no desenho animado

Pode-se dizer que o desenho animado é uma forma de poder simbólico, já que sua estrutura gráfico-visual é expressa através da simbolização de um mundo imaginário. Portanto, é impossível desvinculá-lo da prescrição de significações, visto que promove violência simbólica porque inculca nas crianças o seu modelo estético, elaborado por uma elite dominante de profissionais que compactuam da ideologia do mercado consumidor. Então, a partir disso percebe-se como a televisão disponibiliza aos telespectadores mirins significações de produtos codificados intencionalmente, impondo-os para que sejam legitimados através da sedução do grafismo televisual. Não é à toa que a homogeneização do conteúdo dos desenhos animados através da mensagem leva a criançada a se envolver com os encantamentos e fantasias, de forma que a estetização é a principal qualidade audiovisual.
Não é possível considerar o desenho animado televisual isento da dissimulação das forças travadas na sua base de construção de significações da mensagem (som e imagem), já que tais forças – surgem no próprio campo entre produtores, emissoras e anunciantes – refletem uma intenção que está, de certo modo, invisível na televisão, tendo em vista que toda a imagem dos desenhos animados é construída intencionalmente e nada que a TV veicula é por acaso. Isso confirma a TV como um conjunto complexo de trâmites técnico e burocrático: contratos, argumentos, roteiro literário, story-board, roteiro técnico, gravação, decupagem, edição, montagem, finalização, veiculação. O que, consciente ou inconscientemente, será representado na forma de um desenho animado que encantará a criança, contaminado por ideologias.
É indiscutível, sob o ponto de vista de Bourdieu & Passeron (1982), que a televisão seja promotora de violência, visto que o desenho animado apresenta-se através da ação pedagógica, tendo em vista que o simbólico é comunicacional e informacional, isso denota que toda ação é estruturada objetivamente, inculca valores e normas. Para Bourdieu & Passeron (1982: 20): Toda Ação Pedagógica (AP) é objetivamente uma violência simbólica, enquanto imposição por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural. A violência simbólica de natureza estética tem sua substância, enquanto ação pedagógica, a imposição dos valores culturais dos grupos responsáveis pela produção dos produtos televisuais, capazes de inculcar um arbitrário cultural nas classes sociais de toda ordem.
Ao exibir um desenho animado à criança, a TV inculca, efetivamente, um arbitrário cultural estético porque a sua narrativa já contém um enunciado ideológico, lingüístico, artístico e estético, capaz de produzir efeito com a ação pedagógica da estrutura objetiva sobre a subjetividade da criança, agindo como estruturante, portanto, capaz de atuar na recepção estética televisual, sensorial e comunicacional entre a criança e a televisão. Todavia, isso só será possível através do desenho animado, quando a estrutura subjetiva da criança subscrever a influência simbólica. Poderá violentar a inocência por meio da ação pedagógica e quando as condições sociais estiverem dadas, como uma ação pedagógica prolongada de inculcação – deixar a criança arbitrariamente diante da televisão, sem a mediação da família e/ou escola. No caso de os desenhos animados tornarem-se modelos do mundo imaginário em função do real, serve para representar uma significação definida por um papel, num dado momento arbitrário e, em outro, como desafiador.

O desenho animado como serialização e repetibilidade

A homogeneidade do habitus estético segue o princípio, identificado por Martins (1987), como tendência de compartilhamento de disposição semelhante, ou seja, pode-se dizer que a televisão promove identidade ideológica, unicidade de gosto e modo de vida idênticos entre os telespectadores conectados às emissoras. Esta forma de compartilhar a programação, processando uma única maneira de ver e interpretar representa, em conjunto, a ação da audiência televisual diante da recepção estética. Em suma, significa que o habitus estético é habitus de grupo, já que são convenções ou modelos ditados pela emissora com o objetivo de manter as crianças presas a ela.
A homogeneização do habitus televisual resulta da obstinada forma de assistir à televisão, cuja continuidade de exposição diante da programação define a prática do usuário. Isso decorre de dois fatores que devem ser considerados a partir do efeito estético que gera habitus: estética da repetição e narrativa seriada. Disposições estas duráveis na mente dos telespectadores mirins que recebem a narrativa e o enunciado televisual como conjunto da experiência estética através da televisualidade. Interessa, portanto, conhecer o papel do desenho animado na construção da experiência de habitus estético que envolve a criança, já que esta é mais exposta à condição do grafismo televisual devido à ação prolongada de inculcação.
Analisando a narrativa seriada, difundida na televisualidade, Arlindo Machado (2003) percebe que ... o programa de televisão é concebido como um sintagma padrão, que  repete o seu modelo básico ao longo de um certo tempo, com variações maiores ou menores (p. 86). Isto significa que o telespectador está constantemente recebendo uma serialidade, isto é, a representação descontínua e fragmentada do sintagma televisual, já que as formas narrativas (o enredo) estão estruturadas em capítulos ou episódios que podem perfeitamente adequar-se aos breaks para que os comerciais sejam veiculados.
Esta forma de incorporar breaks na estrutura da televisualidade é a fórmula de se exercer poder sobre a audiência e vida econômica das famílias, representa a denegação do livre arbítrio do telespectador mirim em buscar alternativas de programação. Enquanto a televisão vincula comercial em um canal, a criança ligada a ele pode também acessar outro, porém, não quer perder a seqüência daquilo que está assistindo e acaba deixando a propaganda entrar em casa. É sempre a possibilidade que a emissora tem de capturar o desejo da criança para consumir algo.
As crianças ficam subsumidas aos poderes desta categoria de recepção, serialização e repetibilidade, e são inculcadas pela ação pedagógica da mídia televisual. Primeiro pelos tipos de narrativa seriada, cujas características se aplicam no desenho animado: personagens, vilanias, enunciados e frases prontas. Segundo, as categorias predominantes da estética da repetição, caracteriza a serialidade e onde são usadas. Enfatiza-se, portanto, que este estudo fundamenta-se na concepção analítica de Arlindo Machado, apropriada para as narrativas seriadas da televisão e para a teoria de habitus em Bourdieu, de modo a estender as conclusões ao desenho animado.
Os tipos de narrativa seriada (serialidade) têm um papel importante na construção do habitus televisual, pois impõem a forma de ser apreciados pelos telespectadores. Pode-se categorizá-los como: única ou várias narrativas entrelaçadas e paralelas; mesma situação narrativa; e narrativa independente. A primeira expressa linearidade na sua lógica de desenvolver a história, tem como base um conjunto de fatos que justifica o aparecimento da trama que se desenrola nas séries subseqüentes, fluindo através dos capítulos de forma unidimensional, podendo desdobrar-se ao infinito, o que dependerá da receptividade do público. Como exemplo, as Tartarugas Ninjas: um lutador japonês tinha um ratinho de estimação (Splinter) que o acompanhava sem seus treinos de artes marciais, este lutador fugiu para Nova Iorque e lá foi morto; o rato passou a morar no esgoto da cidade; um dia um caminhão deixou cair um caixa com produtos radioativos quando no mesmo instante passava um garoto com um aquário, com quatro tartarugas que caíram junto com o produto radioativo no esgoto e foram encontradas por Splinter que cuidou delas; todos sofreram efeitos da radiação metamorfoseando-se metade corpos humanos e metade animais; Splinter ensinou as tartarugas artes marciais e as batizou assim: Donatelo, Michelangelo, Rafael e Leonardo.
Os enredos sempre se apresentam na gênese de um conflito social, uma situação constrangedora que serve de ação detonante para a evolução dos acontecimentos e a busca do equilíbrio para desenrolar a história ad infinitum. Os vilões aparecem, em contrapartida, como a cara metade e/ou para legitimar a existência do herói, que representa o bem, e a vilania, o mal. Para Eco (2000) o super representa a aspiração de herói positivo, capaz de interagir com a audiência, contracenando com ela, muitas vezes oprimida psicologicamente, torturada por complexos e, quem sabe, desprezada pelos seus semelhantes. Eco diz, ainda, que o consumidor estético [-visual] possivelmente fixa-se na imagem emblemática do herói e isso a torna facilmente reconhecível. Isto significa uma projeção dos desejos da criança como uma forma de nivelar as frustrações psicológicas e perturbações mentais; um complexo de inferioridade que implica combater a falta do humano (contra a máquina); uma força individual que parece inesgotável.
Mas tudo isso só tem sentido se os heróis estiverem em condições humanas, inseridos no contexto cotidiano, no presente da vida pública das pessoas. Assim, é possível que a imagem televisual possa promover uma co-ação com a atuação desses “supers” representados simbolicamente no grafismo da televisão e na vida das crianças, justificando também a dupla personalidade deles, como identidade secreta, segredo compactuado entre o herói e os telespectadores. O conjunto de vilanias é grande que comprova o quanto o herói precisa do anti-herói para se projetar na mente dos telespectadores mirins através do desenho animado.
Acompanhando a narrativa de uma história, a criança é capaz de se colocar no lugar das personagens e viver com elas os perigos, as adversidades e se apaixonar pelo enredo, como um divertimento, distraindo-se por algum tempo. Este aspecto envolvente tem uma certa magia, que contagia e encanta a mente da criança já que, como afirma Fischer (1993), é a expressão mais bem acabada da fantasia porque envolve elementos tridimensionais (som musical e palavra falada), emanados da telinha bidimensional. É aí que reside o perigoso jogo de sedução estético-televisual, capaz de impor um arbitrário cultural de inculcação. Enquanto, por um lado, os profissionais de TV travam forças entre si nos bastidores para a consagração da emissora, buscando uma fatia do mercado, por outro está a audiência, receptiva, sensível ou não, propícia para legitimar a ação pedagógica da televisualidade como uma forma de reproduzir a estrutura imposta de valores culturais.
No segundo tipo de serialidade, é comum observar a situação configurada como ação pedagógica, ou seja, uma forma eficaz de inculcação dos valores enunciados pelos desenhos animados e normas estabelecidas para a apreciação estética. Nesse tipo de narrativa os desenhos são autônomos para construir uma história completa, estruturada em um único episódio, com início, meio e fim, sem possibilidade de o enredo se prolongar, isto é, desdobrar-se em outros programas – basta um único momento, dura pouco e transmite a mensagem numa só exibição. Como exemplos, alguns desenhos clássicos da televisão: Tom & Jerry; A Pantera Cor-de-rosa; Pernalonga; Os Flinstones; Scooby Doo; Pica-pau. Todos estes desenhos têm em comum uma situação narrativa construída pelos personagens, sujeitos fixos da ação (os invariantes), como protótipos da história que contracenam com ocasionais variáveis (a vilania) que se estendem ao longo do programa.
É um erro pensar que o desenho animado fala a linguagem da criança. Não é bem assim, já que existe um interesse econômico e político da indústria cultural em vender o seu produto estético. Atualmente, os criadores e roteiristas de desenhos animados enfatizam alguns aspectos de interesse da indústria cultural para lançar novos produtos de consumo estético, como videogames e bonecos de personagens. Assim, os desenhos são capazes de promover novos desafios sensoriais para as crianças e demolir papéis estabelecidos na sociedade de tradição popular. Dessa forma, utilizam a linguagem lúdica para promover o jogo estético-visual, uma maneira de atrair este público. O jogo, a brincadeira, a ação e o movimento são aspectos envolventes contidos no desenho animado. No circuito comercial da TV brasileira, isso é uma realidade, sem possibilidade de esterilizar a ideologia, pois as forças atuantes no campo cultural da televisão estão em constantes embates. Isso significa que enquanto as editoras e produtoras de desenhos animados criam os produtos visuais infantis, adequando-os à satisfação das necessidades das crianças, o interesse comercial da indústria cultural estabelece critérios para mantê-las dentro do jogo, visto que a cada novo desenho bem sucedido surge uma diversidade de produtos a ser consumidos pelas crianças, como alimento, roupa, material escolar, etc. A magia é simples e acontece sem qualquer esforço por parte da televisão em querer encantar a criança. Pode ser que exista algum roteiro mal elaborado e ineficaz, mas isso não compromete o encantamento. A imagem é cifrada na mágica de que tudo é possível, conclui Fischer (1993).
A terceira narrativa é chamada de independente e, no formato da televisão, organiza os desenhos do acervo. Pode-se observar os programas Bom Dia & Cia., A Hora Warner, Sessão Desenho, TV Xuxa, TV Globinho, como narrativas independentes. Em torno disso, cria-se uma programação, uma vinheta que é disponibilizada ao âncora pelo script (nem sempre existe um âncora, como  A Hora Warner e a Sessão Desenho) que fala sobre os desenhos animados exibidos no programa, que são os invariantes da programação e exercem o papel de preservar, nos vários episódios, o espírito geral das histórias colocadas no ar. A história é completa e diferente uma da outra, mas agrupada por um título genérico para a programação (Sessão Desenho ou TV Xuxa, por exemplo), em que os desenhos são unidades narrativas e seguem um script para apresentação. Este tipo de programa é, geralmente, dividido em blocos e spots comerciais, em que cada bloco é apresentado por um âncora que discursa para o telespectador, lê cartas e solicita a participação das crianças. O desenho animado passa a ser, então, a força que rege a programação e os anúncios comerciais. O poder simbólico do âncora, neste caso, é secundário, pois o importante são as unidades narrativas independentes que também podem ser substituídas quando termina a série, mas a vinheta permanece.
A estética da repetição (repetibilidade) existe para disponibilizar os elementos narrativos variantes e invariantes, a fim de que o telespectador possa interpretar e compreender as narrativas televisuais propostas. São categorias predominantes da estética da repetição: variação em torno de um eixo temático; metamorfose dos elementos narrativos; entrelaçamento de situações diversas.
Quando a ação se estrutura como estética da repetição e força, e o telespectador passa a pensar como os intelectuais do audiovisual, significa que um arbitrário cultural, sem o menor escrúpulo, está interferindo na educação sensorial e estética da criança. Portanto, a ação pedagógica da mídia televisual impulsiona a meninada a aceitar os valores e as normas codificadas de forma estética e interiorizada como única forma de ver o mundo.
A serialização de desenhos animados como Batman, Homem Aranha, Super-homem e Scooby Doo, caracteriza uma ação pedagógica em que se procura criar um jogo entre as personagens e a vilania ao longo do processo de repetição, centralizando o interesse do telespectador em se deter no papel do invariante – personagem em ação do herói.
Esse papel é infinitamente repetido, é repetibildade que conta como padrão de um modelo de atuação (roteiro), em que só mudam os oponentes do herói, mas a mensagem é a mesma, o visual é o mesmo, o cenário é o mesmo, o som musical é o mesmo, mas as falas podem ser antecipadas, assim como o final. Isso é o que a estética da repetição confirma como a variação em torno de um eixo temático: Batman espera na batcaverna um chamado telefônico ligado ao departamento de polícia; investiga o crime, persegue o criminoso; adivinha charadas, usa elementos do seu cinto de utilidades, pula, rola, pendura-se em cordas lançadas ao espaço, etc. Essa constância no eixo temático acontece com os outros heróis, em que o roteiro da série é repetido exaustivamente. Isso cria a estética do estereótipo, pois ela não possibilita pensar além daquilo que a série está disposta a dar ao telespectador, impede a emoção além dos fatos oferecidos e os acontecimentos são previsíveis.
A segunda categoria da estética da repetição, metamorfoses dos elementos narrativos, não difere das previsibilidades dos atos das personagens dos desenhos, mas acrescenta informações que exigem maior concentração para depurar a sua relação. Porém, passado este primeiro momento, fica a critério do telespectador aceitar o fenômeno. Como exemplo: “Coragem, o Cão Covarde”, ao ficar apavorado as suas tripas saem de dentro de si, seus olhos soltam, sua língua dilata, etc., quando o medo passa, tudo volta ao seu lugar; Scooby Doo é veterano em metamorfoses, encolher, dilatar, correr sem sair do lugar;. KND é fantástico nisso, o aspecto surreal da rua leva à fantasia, a ação dos meninos e meninas acaba transformada em realidade, pois tudo parte do clube no fundo do quintal, um QG. Tom & Jerry é o mais tradicional nessas transformações, Tom, ao ser violentado pelo cachorro, sofre deformações extraordinárias, morre e depois volta à vida, e o mesmo ocorre com Jerry quando submetido ao tratamento violento de Tom.
Na terceira categoria da estética da repetição, é o entrelaçamento de situações diversas, possível de observar nos desenhos animados, mas também é rara de se encontrar, já que é preciso de uma estória mais longa e envolvendo várias personagens atuando simultaneamente. Embora tenham interesses próprios na narrativa, em algum momento elas se encontram e finalizam a ação do roteiro. Como exemplo, Os Simpsons, uma família maluca em que cada um dos componentes acaba se envolvendo em tramas diferentes, mas que se completa num único final. O objetivo do desenho é mostrar todas essas implicações, assim, conta a história de cada um através da simultaneidade dos acontecimentos. Isso resulta em florescimento de tramas paralelas, a história torna-se longa e às vezes parece ter uma continuidade dos fatos em determinados episódios.
A contribuição da serialidade e repetibilidade para os telespectadores mirins tem sido primorosa, pois fornece dados para que eles possam construir maneiras de entender os elementos táteis e visuais a partir da repetição dos valores, mas também torna homogênea esta forma de relação com a sintaxe televisual, como se funcionasse naturalmente. A ação prolongada de inculcação serve para naturalizar as ações das crianças, promovendo a tecno-receptividade, ou seja, a sensibilidade através da tecnologia eletrônica, que é própria deste tipo de estética receptiva. Portanto, o gosto por desenho animado é também o desenvolvimento de habitus estéticos, ou seja, habitus construídos pelas gerações herdeiras da indústria cultural de televisualidade.

Referências Bibliográficas

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