CONCEITO GRAMATICAL DE RAIZ NO PORTUGUÊS

 

Ana Cristina Fernández & Vera Lúcia Natale (FFLCH - USP)

 

ABSTRACT: A presente comunicação se propõe ao estudo da conceituação, explícita ou não, do termo raiz -desde a antigüidade, passando pelo século XIX, até nossos dias- para melhor entendimento da funcionalidade do termo na gramática.

 

 

 

KEY WORDS: Raiz,conceito gramatical, língua portuguesa.

 

Embora o conceito de raiz já estivesse subjacente nos estudos de autores gregos e latinos, a acepção gramatical explícita do termo surge apenas no século XIX (época do descobrimento de sânscrito). Todavia, foi também o século XIX, sem uma definição clara e coerente de raiz, que ocasionou a confusão terminológica que hoje encontramos nos dicionários e gramáticas da língua portuguesa.

1. Etimologia e definição

A palavra raiz origina-se do termo latino ra#dI#x. Battisti e Alessio (1957) ressaltam que ra#dI#x se liga à ·£dix que significa "ramo de árvore ou de planta". Segundo Antônio Geraldo da Cunha (1982) , o termo raiz em português, aparece, no sentido botânico, por volta do século XIII ("rayz") e XIV ("reyz"). E no sentido gramatical, de acordo com José Pedro Machado (1967), apenas no século XIX.

Uma conceituação de raiz que nos parece adequada é a de J. Dubois et al. (1973):

 

"D’une manière générale, on appelle racine l’élément de base, irréductible, commum à tous les représentants d’une même famille de mots à l’intérieur d’une langue ou d’une famille des langues. (...) elle est porteuse des sèmes essentiels, communs à tous les termes constitués avec cette racine".

Vejamos agora a biografia do termo raiz no seu aspecto gramatical.

 

2. Conceituação (implícita e explícita)

 

Dionísio Trácio (170-90 a.C.) é autor da Tšcnh Dionus…on Grammatikoà (cuja tradução latina é "Dionysii Thracis Ars Grammatica", "A Arte da Gramática de Dionísio Trácio"), primeira gramática ocidental. O autor não menciona explicitamente o termo raiz. Mas pelas observações sobre a classificação das palavras em simples, sintéticas e parassintéticas se refere a um núcleo significativo que forma a palavra, seja esta derivada ou não (Uhlig 1883, apud Bassetto 1993:24):

 

"Sc»mata d Ñnom£twn ™stˆ tr…a, ¢ploàn, sÚnqeton, parasÚnqeton, ¢ploàn mn oon Mšmnon, sÚnqeton d oon 'Agamšmnwn, parasÚnqeton d oon 'Agamemnon…dhj".

("As formas dos nomes, porém, são três: simples, sintéticas e parassintéticas; simples como Mšmnwn [nome próprio], sintéticas, como 'Agamšmnwn [nome próprio], e parassintéticas, como 'Agamemnon…dhj [filho ou descendente de Agamêmnon]" [trad. apud Bassetto 1993:24].)

 

Esse núcleo significativo, a que se refere Dionísio Trácio, ou semantema (como o chama a lingüística moderna) está representado pela célula primitiva da palavra, a raiz, segundo Meillet e Vendryes (1953:154):

 

"Le semántème s'exprime grammaticalement par ce qu'on appelle la racine."

 

Dionísio Trácio reflete, pois, uma certa preocupação com o aspecto semântico das palavras.

Prisciano (século V d.C.), autor latino, não criou nenhuma terminologia para designar o termo raiz, nem fala de núcleo significativo da palavra como o faz Dioníso Trácio; mas se ocupa dele de maneira implícita:

 

"Sunt tamen quædam quorum simplicia in usu frequenti non sunt, ut 'defensor', 'repleo', 'compleo', 'suppleo', 'deleo', 'releo', 'defendo', 'offendo', 'respicio', 'aspicio', 'suspicio', 'despicio', quod autem rationabiliter simplicia quoque horum possunt dici, ostendum nomina ex eis nata: 'plenus' quasi a 'pleo' verbo, 'letum' quasi a 'leo' verbo et 'leor'; 'specto' etiam quasi a verbo 'spicio' natum est frequentativum" (Keil 1866; apud Bassetto 1993:71).

("Há, contudo, alguns cujas formas simples não estão em uso freqüente, como 'defensor' ['protetor'], 'repleo' ['encher de novo'], 'compleo' ['concluir'], 'suppleo' ['preencher'], 'deleo' ['destruir'], 'releo' ['reapagar'], 'defendo' ['defender'], 'offendo' ['bater'], 'respicio' ['olhar para trás'], 'aspicio' ['examinar'], 'suspicio' ['olhar para cima'], 'despicio' ['olhar de cima par abaixo'], mas que podem ser ditas também as formas simples deles, com razão, mostram os nomes nascidos deles: 'plenus' [cheiro'] como que do verbo 'pleo' ['encher'], 'letum' ['passamento'] como que do verbo 'leo' ou 'leor' ['apagar']; 'specto' ['olhar'] também como que do verbo 'spicio' ['ver'] nasceu como freqüentativo" [trad. apud Bassetto 1993:71].)

 

As ditas "formas simples que mostram os nomes nascidos deles" nos indica que o autor latino percebeu a relação entre a palavra e seu semantema.

Prisciano preocupado com os processos de formação léxica afirma que esses nomes, tidos como simples ou primitivos, formam os denominativos:

 

"Denominativum appellatur a voce primitivi sic nominatum, non ab aliqua speciali significatione, sicut supra dictae species. habet igitur generalem nominationem omnium formarum,quae nomine derivatur. nam et patronymica et possessiva et comparativa et superlativa et diminutiva praeter verbalia et adverbialia et ea, quae ex praepositionibus fiunt, ex maxima parte denominativa sunt, id est a nominibus derivatur" (Keil 1855:117)

("A coisa nomeada assim chamada denominativo a partir do som primitivo, não de alguma parte especial de significado, assim como as coisas ditas acima. Tem, portanto, nome geral [de denominativo], de todas as formas, as quais [são] derivadas de nomes. Na verdade, patronímicos e possessivos e comparativos e superlativos e diminutivos além dos verbos e advérbios e daquelas que se formam de preposições, isto é, [são] derivados de nomes".) (Trad. nossa)

 

Pelo parágrafo anterior, observamos que Prisciano confunde o plano formal e o semântico, pois coloca como derivados dos nomes, os advérbios, as preposições, os adjetivos, os patronímicos e os possessivos. Malgrado a confusão, é interessante notar a preocupação do gramático na verificação das classes de palavras envolvidas nos processos lexicológicos. E sem dúvida, sabemos que a classe dos nomes, ou substantivos, é no caso muito produtiva.

Assinalamos porém que por falta de dados, ainda não podemos saber os motivos da não conceituação. Entretanto, podemos deduzir que não foi necessária, pois o processo de designação não é aleatório; a linguagem é fruto da necessidade de comunicação entre os homens. Se o conceito de raiz apareceu em um determinado momento foi para atender às necessidades culturais de um povo e de uma época.

Já encontramos o termo raiz em contexto gramatical em um trecho do prefácio do Dictionnaire de l'Académie Française (1694), porém formulado segundo a concepção normativa ou, do "bom uso" da língua:

 

"Comme la langue française a des mots primitifs et des mots dérivés et composés, on a jugé qu'il serait agréable et instructif de disposer le Dictionnaire par racines, c'est-à-dire de ranger tous les mots dérivés et composés après les mots primitifs dont ils descendent, soit que ces primitifs soient d'origine purement française, soit qu'ils viennent du latin ou de quelque autre langue". ( apud Le Grand Robert 1985) (O grifo é nosso)

 

Como acabamos de mencionar, essa tentativa de descrever o léxico refletiu necessidades culturais do período. Entre elas, destacam-se a de preservar o uso do latim literário, e também a de facilitar a aquisição das "novas" línguas nacionais, depois chamadas de línguas românicas (Rey 1970:21).

Por outro lado, é curioso notar que a acepção gramatical explícita, nas línguas românicas em geral, tenha surgido somente no século XIX. Segundo J. Mattoso Câmara (1975), isso ocorre em virtude dos estudos lingüísticos terem recebido um grande impulso com a descoberta do sânscrito e da gramática e cultura indianas.

A visão diacrônica da língua foi amplamente fundamentada naquele século, ligada ao estudo da história interna das línguas, ou seja, das principais transformações ocorridas na transmissão de uma língua através do tempo. Também através do método comparativo, lingüistas e filólogos postularam a origem comum das línguas em um troco único: o indo-europeu. E, em especial pela leitura da gramática de Panini, os pontos-chaves dos estudos lingüísticos passam a ser o estudo fonético e o estudo de raiz.

Merecem destaque os irmãos Schlegel. F. Schlegel (1772-1829) na obra Über die Sprache und Weisheir der Inder ("Sobre a Língua e a Sabedoria dos Hindus"), de 1808, explicitou a noção de raiz, emprestada ao sânscrito, considerando o termo como "espécie de germen vivo". Seu irmão, A. Schlegel classificou as raízes em férteis e estéreis, ou produtivas e improdutivas. Noção essa que levou para outros campos, por exemplo, a caracterização das línguas em perfeitas ou imperfeitas, por terem ou não determinadas raízes.

A. Schleicher (1821-1868) também se dedicou à reconstrução do indo-europeu; tinha como referência as idéias de F. Bopp (1791-1867) que pensava "a palavra primitiva como raiz pura" (apud Câmara Jr., 1975:54). Recebeu ainda, nítida influência da teoria evolucionista de Darwin, chegando a comparar a língua a um organismo natural. Baseando-se nessa linha evolucionista, ao mesmo tempo atendo-se à estrutura da palavra, idealizou uma classificação tipológica das línguas.

As pertencentes ao primeiro estágio foram chamadas de isolantes, pois cada raiz equivalia a uma palavra, sendo as funções sintáticas expressas pela posição do termo; no segundo estágio, das línguas aglutinantes, os elementos gramaticais ligavam-se à raiz que, no entanto, permanecia invariável. O ápice do desenvolvimento lingüístico era o estágio das línguas flexionais, no qual "os elementos formais assimilados juntos e a raiz adquiria a capacidade de modificação interna, como no caso do Ablaut indo-europeu e das alternâncias vocálicas nas raízes semíticas" (Câmara Jr., 1975:54).

Em geral, apesar das contribuições sem dúvida positivas, o enfoque dado ao termo raiz não foi claro e teve seus equívocos. A visão historicista do século XIX, que priorizou na análise o fator tempo, propiciou, a nosso ver, que gramáticos e lingüistas contemporâneos recorressem a várias definições de raiz, em virtude de um conceito ora diacrônico, ora sincrônico; ora privilegiando o aspecto formal, ora o semântico.

Dentre os vários tipos de definições que encontramos nos dicionários contemporâneos, tanto de língua geral como nos especializados (lingüísticos, etimológicos, gramaticais), nos deparamos com os seguintes pontos:

1. Muitas definições atuais se utilizam do fator tempo como elemento central na elaboração do conceito:

 

"Raiz - ou semantema (v.) como parte básica da estrutura das palavras (v.) aqui se chega pela análise morfológica sincrônica (v.). Ao lado desse conceito sincrônico, há o conceito diacrônico, da gramática histórica indo-européia, que considera raiz o segmento fônico originário correspondente a um semantema do indo-europeu" (Câmara Jr., 1978: s.v.).

 

Importa a nós, em primeiro lugar, um conceito geral de raiz, no qual o fator tempo seja apenas um dos elementos da análise e não o interesse central que leva à uma visão unilateral dos fatos. Em segundo, no estudo do português, interessa a constante referência ao latim, língua que lhe deu origem, assim como às demais línguas românicas: além do grego, que exerceu grande influência sobre a língua e a cultura latina.

O estudo sincrônico não explica, a não ser por meio de exceções, a várias razões das diferentes formas do verbo trazer (trago, trouxe, trarei). O ideal é recorrer à pancronia (equilibrando a abordagem formal e a semântica), bem como delimitar até onde se quer chegar: se obter as raízes das línguas românicas, por exemplo no verbo cantar, a raiz latina é can (com as variantes cen/cin), mas a raiz românica é cant; ou ainda, as raízes indo-européias.

2. Também não julgamos nem necessário, tampouco válido, classificar as raízes em simples, compostas, corruptas, puras, etc., como o fez C. Góes (1936:12-15). Afirmar que uma raiz é composta, seria, para nós uma contradição dos próprios termos, segundo o que entendemos por raiz (definição de Dubois et al., dada no item 1).

3. O uso do termo "base", ou ainda da expressão "elemento de base", como sinônimo de raiz também não é muito adequado. Entendemos, pela etimologia, que a raiz sustenta e suporta as plantas , dá-lhes a base; segundo A. Nascentes (1932:s.v.), do grego B£sij, pelo latim "base", significa primeiramente planta do pé, daí a conotação posterior de tudo que serve de fundamento ou apoio, como os pés o são para o homem. Nesse sentido, o termo "base" é válido, porém muito genérico, para ser usado como sinônimo de raiz.

 

Concluindo, reiteramos a definição de Dubois et al., já citada, entendendo o termo raiz como o último elemento formal a que pode ser reduzida uma palavra -"irredutível"- sem perder significado, pois que "carrega" os semas fundamentais da palavra. Lembremo-nos na matemática, dos processos de radiciação: para se obter a raiz quadrada de um número, temos que decompor esse número de tal forma que o resultado final seja irredutível, capaz de não ser mais dividido, sob pena de perder a identidade, ou seja, não ser mais a raiz quadrada e sim, um número qualquer. O caso também serve para a raiz das palavras; não se reduz a essência, sintética, de natureza resumida.

O assunto certamente sugere muitas outras questões, a serem pesquisadas e discutidas. Entretanto, dado a amplitude do tema e o espaço de que aqui disposmos para vergar sobre o mesmo, ainda não chegamos a conclusões propriamente ditas, mas a certas considerações que acabamos de elencar.

Compete, agora, aos professores das novas gerações tornar funcional o conceito de raiz, além de outros termos a ele relacionados (radical, alomorfia, termos cognatos, etc.), para um estudo sério e profundo da origem do léxico e dos tipos de formação vocabular de uma determinada língua.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

BASSETTO, B. F. (1993). A Parassíntese: teoria e prática. Essen: Die Blaue Eule.

BATTISTI, C. e ALESSIO, Giovanni (1957). Dizionario Etimologico italiano. Firenze: G. Barbera Editore, , vol. 5.

CÂMARA Jr., J. M. (l975) História da lingüística. 2ª ed. Petrópolis: Vozes.

_____ (1978). Dicionário de Filologia e Gramática Referente a Língua Portuguesa. 4ª ed. revista e aumentada. Petrópolis: Vozes, .

CUNHA, Antônio Geraldo da (1982). Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

DUBOIS, J. et al (1973). Dictionnaire de Linguistique. Paris: Larousse, .

GÓES, C (1936). Dicionário de Raízes e Cognatos da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Alba.

KEIL, Henri (1855). Grammatici Latini. Lipsiae: Aedibus B.G. Teubneri,vol. 1.

MACHADO, J.P (1967). Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. 2ª ed. Lisboa, Brasil: Editorial Confluência/Livros Horizonte.

MEILLET, A. e VENDRYES, J (1953). Traité de Grammaire Comparée des Langues Classiques. 2ª ed. Paris: Librairie Ancienne Honoré Champion.

NASCENTES, A (1932). Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Francisco Alves.

REY, A (1970). La Lexicologie. Lectures. Paris: Klincksieck.

ROBERT, Paul (1985). Le Grand Robert de la Langue Française. Dictionnaire Alphabétique et Analogique de la Langue Française. Paris: s.e.