“A” REVISTINHA DE GESSY

 

Nunca imaginei que um dia viesse a, já velho, me tornar um “colecionador” de revistinhas, tantas são as que compro e guardo zelosamente para minha filhota Joanna.

Quando era criança posso dizer que era um privilegiado, pois em meio à pobreza em que vivíamos todos, vez por outra sempre estava com algum trocado que, claro, resultava numa corrida até a venda do Gessy, na esquina da 2 de Julho com a Praça da Catedral, a fim de comprar um gibi.

As revistas e outras publicações demoravam bastante para chegar na cidade, quando chegavam. Assim, era preciso ir de vez em quando, saber das possíveis novidades. Lembro-me da vez em que, brincando com os amigos Val (Florisval José Bonfim Jr.) e Marcos (Klemens Marcos Azevedo), convidei-os a ir até a venda do Gessy.

Lá, constatamos haver sido lançado o primeiro número de “O Homem de Ferro”. Custava míseros 20 centavos de Cruzeiro, e não tinha esta fortuna. Os companheiros, idem.

Subimos para nossas casas, desapontados, pois havia apenas um único exemplar, e não seria nosso.

 

A venda de Gessy não era uma banca, pois ficava num cômodo de velho casarão. Atrás de imenso balcão o vendedor, gorducho, de cara vermelha, grandes óculos de aro de tartaruga. As revistas e jornais, muitos encalhados, ficavam pendurados, espalhados por todo lado, em meio a pôsteres e cartazes. Perto do forro, em bandeirolas amarradas num barbante no alto, as letras formando a enigmática frase: “O ZORRO É UMA ZORRA”.

 

A gente evolui: naquele tempo sombrio do começo dos anos 70, Zorro era-me um pirulito que todas as crianças adoravam. Depois, foi o herói do cavalo Silver, com seu amigo Tonto. Aí apareceu o outro, alter-ego de Don Diego. Só já mais velho foi que soube ser este o nome dado a uma espécie de raposa do deserto mexicano. Mas, a tal da zorra, eu não tinha idéia...

 

Bem, voltando à narrativa, subíamos a praça os três amigos, desanimados. Morávamos na rua Barão, minha casa logo na esquina, a deles mais acima. Despedimo-nos, na certeza de que não poderíamos jamais adquirir aquela novidade, cuja capa namorávamos embevecidos, na expectativa de novos e desconhecidos superpoderes serem desvelados, mais e mais vilões sendo eliminados...

Sem muita esperança, fui até meu pai, pedir-lhe os tais 20 centavos. Após longa explicação, em que lhe ponderei como era importante a compra da revista número um, cujo único exemplar poderia ser vendido a qualquer momento, ele me dá uma vistosa e grande moeda de 50 centavos, com a recomendação de devolver-lhe o troco.

Era inacreditável! Eu conseguira o capital!

Saí em disparada para a rua e, mal coloquei os pés para fora, topo com os dois companheiros de antes: Val e Marcos.

Eles disfarçaram, eu idem, mas estávamos apressados indo para o mesmo lugar. Numa nervosa troca de idéias, ficamos sabendo que eu e eles tínhamos reunido o dinheiro. O detalhe era que havia uma única revistinha disponível...

Mais novo, mais gordo, menos ágil, mesmo assim enfrentei-os numa desabalada carreira até a venda. Não seria derrotado, não depois de toda a cantilena junto a meu pai. Mas, e os gordinhos têm sempre de amargar isto, correr não é o nosso forte, mesmo ladeira abaixo. Val entrou primeiro, já pedindo ao Gessy o exemplar de “O Homem de Ferro”.

Derrotado, ainda perguntei se não teria um outro volume por ali. Nada. Vitoriosos, ambos passavam das mãos de um para o outro o troféu, o gibi número um do mais novo super-herói que até então desconhecíamos.

Mas, e agora vem a zorra: a história foi uma decepção completa para as mentes infantis que tanto disputavam-na! Uma zorra maior que o letreiro de Gessy...

Valzinho conseguira 10 centavos, Marquinhos os outros 10. Ambos, decepcionados, frustrados, olhavam sem graça as páginas, as figuras de um industrial que, entediado, resolve fabricar uma roupa que o tornava invulnerável, a fim de prender bandidinhos furrecas... uma babaquice que nenhum de nós engoliu.

Cansados, ainda vislumbraram uma salvação: André queria a revista, talvez a comprasse, poderiam recuperar o prejuízo. Nada feito: eles, que tinham se esforçado tanto por me vencer, mereciam um prêmio daqueles...

Voltei pra casa satisfeito, devolvendo ao meu pai a mesma cintilante moeda de 50 centavos, explicando-lhe feliz que a revista já tinha sido vendida... o velho recebeu o dinheiro, sem compreender como isto me deixava alegre.

 

E foi assim que, nos idos dos anos 70, onde os centavos de Cruzeiro valiam grandes explicações para nossos pais, compreendi que o Homem de Ferro, assim como o Zorro, também é... uma zorra.

 

Textos de André Koehne - Academia Caetiteense de Letras – Caetité – Bahia – 2004 – Direitos do Autor

 

VOLTAR