MEDÉIAS
  Havia, em nossa casa à rua Barão de Caetité, uma gata. Eu devia ter, à época, uns sete anos. A gata estava prenhe, e era com grande expectativa que esperava a futura ninhada afinal, pela primeira vez na vida, testemunharia o milagre da procriação.

   Entretanto, algo ocorreu que superou qualquer imaginável frustração: à medida em que seus filhos iam nascendo, a gata os ia comendo.

   Ultrapassando os ditames naturais que manda a muitas fêmeas comerem as placentas, aquele animal o fez também aos seus rebentos...

   Numa pervesão inominável, aquele felino superou todos os instintos maternais, venceu o ditame dos hormônios, e selou para si o destino que lhe seria inevitável - o sacrifício. Apesar de contrário à pena capital, deixei-me convencer aos argumentos de meu pai, que então levou a infanticida para o fundo do quintal, já quase à rua São João, onde desferiu-lhe o tiro fatal.

   Em minha memória vagueiam soltos meus sentimentos de então: a vontade de ver os filhotes, alguém explicando-me com cuidado que eles haviam perecido até a final revelação da forma como tinham morrido. Recordo-me de ter entrado na oficina de meu avô, procurar o local onde estava o ninho da gata, mirar o espaço vazio, tentando imaginar o drama ali ocorrido, embora fosse muito novo para compreender.

   Mais tarde, ao conhecer a tragédia Medéia, de Eurípedes, pude transpor o fato testemunhado na tenra infância para o plano humano: existiam mães que, por diversas razões, assassinam os filhos.

   Hoje, olhando o mar de ignorância, vendo pseudos-pais e mães relegando os filhos às drogas, às fugas no álcool, nas noitadas
rave, ensinando-lhes que na vida mais importante de tudo é ter objetos caros e dinheiro para gastar, e esquecendo que o ser humano é essencialmente um ser moral, penso estar sendo testemunha de nova espécie de genocídio: um infanticídio em larga escala!

   É patente: existem exploradores que constroem escolas de fachada para conferir um grau aos que lhes pagam. E, absurdo dos absurdos, pais que ali matriculam seus rebentos para que adquiram não um diploma, mas um atestado de óbito intelectual !

   Gente que, mesmo com os recursos granjeados, se negam a qualquer leitura, à compreensão do mundo, à preservação e conhecimento da História. Pessoas que, qual a Medéia de antes de Cristo, matam seus filhos, ensinando-lhes a fuga da vida...
Voltar ao índice