Castro Alves - janeiro/2001
( retrato realizado por Luciano Moraes)
Neste texto Castro Alves explica o que é
a poesia
I
Um dia, em quanto mirava a fumaça azulada de um cigarro, pensava eu tristemente no desanimo que se tem apoderado dos moços, e fazia a mim mesmo estas reflexões:
A mocidade é cheia de sentimentos.
É a lira sonora do belo.
É a flor que desabotoa para receber as gotas do orvalho.
É a ave implume que abre o biquinho para aspirar os perfumes da alvorada.
É a brisa, que geme nas madeixas das florestas, e também ruge nas cumiadas das serras.
É a gazela que mira, tímida e amorosa, a sua sombra no riacho.
.........................................................................................................................................................................
E depois eu me perguntava:
Porque a flor desfalece? Porque a ave tirita? Porque a brisa é muda? Porque a gazela se esconde nas selvas?...
E um pensamento me anuviava a fronte.
É o materialismo que invade?
É a crítica, que mata?
Não! O materialismo é o apanágio dos espíritos blasés.
Mas a crítica?
E eu ia dizer talvez que a crítica faz retroceder o passo a muito talento modesto, quando vieram entregar-me um volume de poesias.
II
A Poesia é um sacerdócio. - Seu Deus - o belo - Seu turibul&aacutte;rio - o Poeta.
Grande e sublime profissão!...
Debalde Peletan lançar-lhe-á o seu Consummatun. A voz do autor do Monde Marche é altíssona, porém mais forte grita a consciência da humanidade, abraçando-se ao poeta nas horas de agonia.
Platão não lhe lançou o anátema, ele que fora poeta?
Cícero não a achou perversora?...
Mais hei-la sempre a virgem da Poesia, atravessando os séculos, cada vez mais bela, porque traz mais flores em sua coroa de martírio.
E ela há de sempre viver, porque o sentimento há de existir, porque o belo nunca há de morrer no mundo...
Eu sei que ás vezes a turba lhe lança um riso de escárnio, ás vezes nem se digna de vê-la.
É a gratidão.
Duvidais?
O que seria da Grécia antiga sem Homero? Um montão de ruínas sem significação, um covil de reptis, sepulcro de uma geração sem nome - um problema lançado na história.
E o que é? Palco gigante de uma raça ainda mais gigante, onde entre os destroços das colunas mutiladas, das divindades confusas com o pó, a imaginação parece descobrir as pegadas de algum Ajax, em luta com os Deuses; na relva, que treme, figura o perpassar das roupagens de Helena, nas nuvens, que se elevam no Levante, as pandas velas de Agamennon.
O que é a Grécia? O deserto mais povoado do mundo.
Mas, dir-me-eis : Ela jaz morta.
Loucos! ela dorme, mas tem por campa a gloria, por capitel a imortalidade.
Um dia; era nos mares da Índia; o gênio das tempestades açoitava com as longas asas a face da terra. O céu era negro.
O mar era negro. Lutavam os dois infinitos.
Quando o fragor da tempestade rareava, moviam-se gritos de agonia.
A manhã correu o reposteiro das nuvens, que encobria o céu, e então alumiou os topes dos mastros de um navio, que por instantes apareceram, como cruzes, naquele imenso cemitério.
Mais próximo à praia, um homem lutava para salvar-se, ou antes para salvar sua pátria, porque ele era Camões.
A rainha do Ocidente em breve depôs o cetro pesado em sua mãos trêmulas.
E hoje, quando espraia os olhos pela superfície dos mares, vendo as velas estrangeiras cruzarem o horizonte, sente uma lágrima tremer-lhe nas pálpebras, abaixa os olhos, e a mão, que ia enxugar essa lágrima, leva entusiástica um livro ao coração - Os Lusíadas.
Fumegam os restos de Jerusalém ... Nabucodonosor - o gênio da destruição - fez da cidade maldita - um cemitério.
Como é belo, como é triste ouvir-se esta lamentação de Jeremias! "Ei-la sentada solitária a cidade outrora tão cheia de povo...
Debalde chora à noite, porque ninguém lhe enxuga o pranto...
Suas portas estão derribadas, seus sacerdotes gemem, suas virgens estão manchadas...
Ó vós todos que passais, considerai e vede se há dor, que se compare à minha?!"
Parece o grito da andorinha, que perdeu seu ninho, ou o soluçar de uma mãe solitária junto á cruz de um cemitério.
Sempre o poeta derramando uma lágrima pelas desgraças do mundo.
É que para chorar as dores pequenas, Deus criou a afeição, para chorar a humanidade - a poesia.
Quando o braço da fatalidade nivela os pórticos soberbos com a poeira humilde do chão, quando o tempo - esse Átila eterno - faz debaixo das patas do seu corcel ddesaparecerem as nacionalidades, ouve-se um gemido triste, como triste deve ser o soluçar dos anjos, e um grito melancólico se ergue entre as ruínas.
E os pórticos se alevantam...
E as nacionalidades surgem...
Não esses pórticos, que a fúria do vendaval desboroa. Não essas nacionalidades, que a morte atira ao nada, mas os pórticos e nacionalidades eternos, porque o poeta desarma o tempo, com o condão de seu gênio.
Quando, porém, a humanidade sente-se abrasada na chama de um pensamento grande, o poeta pega da lira, que treme de entusiasmo, e arrasta as turbas encantadas ao heroísmo.
Então ele é Tasso, ensinando a morte por seu Deus; Béranger, a morte por sua pátria; Antonio José, cantando entre as chamas da Inquisição; Chénier, selando com seu sangue a redenção da França no Gólgota do patíbulo.
Grande e imorredoura profissão, apesar dos espinhos, apesar dos martírios e do desprezo.
Deixai, porém, que a turba vocifere.
Cristo não foi o apedrejado de Jerusalém?
O poeta pode ser o da humanidade!....
Recife, 1864