Poesias




Poesias e textos


Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente 
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos. 
Das horas que passei à sombra dos teus gestos 
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos 
Das noites que vivi acalentado 
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo. 
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente 
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo 
Não traz o exaspero das lágrimas, nem a fascinação das promessas. 
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma... 
É um sossego, uma unção, um trasbordamento de carícias. 
E só te pede que repouses quieta, muito quieta. 
E deixe que as mãos cálidas da noite 
Encontre sem fatalidade o olhar extático da aurora. 
 

Vinícius de Moraes. 
 
 

 

Soneto de Amor Total

Amo-te tanto, meu amor...não cante 
O humano coração com mais verdade... 
Amo-te como amigo e como amante 
Nunca, sempre diversa realidade. 

Amo-te afim, de um calmo amor prestante, 
E te amo além, presente na saudade. 
Amo-te, enfim, com grande liberdade 
Dentro da eternidade e a cada instante. 

Amo-te como um bicho, simplesmente 
De um amor sem mistério e sem virtude 
Com um desejo maciço e permanente. 

E de amar assim muito amiúde 
É que um dia em teu corpo de repente 
Hei de morrer de amar mais do que pude. 
 

Vinícius de Moraes. 



 
 

Purificação

Senhor, logo que vi a natureza
As lágrimas secaram
Os meus olhos pousados na contemplação
Viveram o milagre da luz que explodia no céu.
Eu caminhei, Senhor
Com as mãos espalmadas eu caminhei para a massa de seiva.
Eu caminhei
Nem senti a derrota tremenda
Do que era mal em mim.
A luz cresceu, cresceu interiormente
E toda me envolveu
A ti, Senhor, gritei que estava puro
E na natureza ouvi a tua voz
Pássaros contaram no céu
Eu olhei para o céu e cantei e cantei
Senti a alegria da vida
Que vivia nas flores pequenas
Senti a beleza da vida
Que morava na luz e morava no céu
E cantei e cantei.
A minha voz subiu até ti, Senhor
E tu me deste a paz
Eu te peço, Senhor
Guarda meu coração no teu coração
Que ele é puro e simples
Guarda minha alma na tua alma
Que ela é bela, Senhor.
Guarda meu espírito no teu espírito
Porque ele é a minha luz
E porque só a ti ele exalta e ama.
Vinícius de Moraes (1968).




Soneto de Separação

De repente do riso fez-se o pranto 
Silencioso e branco como a bruma 
E das bocas unidas fez a espuma 
E das mãos espalmadas fez o espanto 

De repente da calma fez-se o vento 
Que dos olhos desfez-se a última chama 
Da calma fez-se o pressentimento 
Do momento imóvel fez-se o drama 

De repente não mais que de repente 
Fez-se de triste o que se fez amante 
E de sozinho o que se fez contente 

Fez-se do amigo próximo o distante 
Fez-se da vida uma aventura errante 
De repente não mais que de repente. 
 
 

Vinícius de Moraes. 

Soneto de Fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento 
Antes e com tal zelo e sempre e tanto 
Que mesmo em face do maior encanto 
Dele se encante mais meu pensamento 

Quero vive-lo em cada vão momento 
E em seu louvor hei de espalhar meu canto 
E rir meu riso e derramar meu pranto 
Ao seu pesar ou seu contentamento 

E assim quando mais tarde me procure 
Quem sabe a morte, angústia de quem vive 
Quem sabe a solidão, fim de quem ama 

Eu possa lhe dizer do amor que tive 
Que não seja imortal, posto que é chama 
Mas, que seja infinito enquanto dure. 

Vinícius de Moraes. 

Soneto do amor demais

Não, já não amo mais os passarinhos 
A quem, triste, contei tanto segredo 
Nem amo as flores despertadas cedo 
Pelo vento orvalhado dos caminhos. 
Não amo mais as sombras do arvoredo 
Em seu suave entardecer de ninhos 
Nem amo receber outros carinhos 
E até de amar a vida tenho medo. 

Tenho medo de amar o que de cada 
Coisa que der resulte empobrecida 
A paixão do que se der à coisa amada 

E que não sofra por desmerecida 
Aquela que me deu tudo na vida 
E que de mim só quer amor - mais nada. 
 

Vinicius de Moraes 

 


Receita de Mulher

As muito feias que me perdoem
Mas beleza e fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de danca, qualquer coisa de "haute couture" Em tudo
isso ( ou entao Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na Republica Popular Chinesa).
Nao ha meio-termo possivel.
E preciso Que tudo isso seja belo.
E preciso que de subito Tenha-se a impressao de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor so encontravel no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e dasabroche
No olhar dos homens.
E preciso, e absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado.
E preciso que umas palpebras cerradas
Lembrem um verso de Eluard e que se acarecie nuns bracos
Alguma coisa alem de carne: que se toque
Como no ambar de uma tarde.
Ah, deixai-me dizer-vos
Que e preciso que a mulher que ali esta como a corola ante o passaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas e importantissimo.
Olhos, então Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente.
Uma boca Fresca (nunca umida!) e tambem de extrema pertinencia.
E preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rotula no cruzar das pernas, e as pontas pelvicas
No enlacar de uma cintura semovente.
Gravissimo e porem o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras
E como um rio sem pontes. indispensavel.
Que haja uma hipotese de barriguinha, e sem seguida
A mulher se alteie em calice, e que seus seios
Sejam uma expressao greco-romana, mais que gotica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade minima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz e estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente a mostra; e que exista um grande latifundio dorsal!
Os menbros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a petala e cobertas de suavissima penugem
No entanto, sensivel a caricia em sentido contrario.
E aconselhavel na axila uma doce relva com aroma proprio
Apenas sensivel (um minimo de produtos farmaceuticos!). Preferiveis sem duvida os pescocos longos
De forma que a cabeca de por vezes a impressao
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher nao lembre Flores sem misterio.
Pes e maos devem conter elementos goticos Discretos.
A pele deve ser fresca nas maos, nos bracos, no dorso e na face
Mas que as concavidades e reentrancias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37* centigrados, podendo eventualmente provocar queimaduras Do primeiro grau.
Os olhos, que sejam de preferencia grandes
E de rotacao pelo menos tao lenta quanto a da terra; e
Que se coloquem sempre para la de um invisivel muro de paixao
Que e preciso ultrapassar. Que a mulher seja em principio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos pincaros.
Ah, que a mulher de sempre a impressao de que se fechar os olhos
Ao abri-los ela nao mais estara presente
Com seu sorriso e suas tramas.
Que ela surja, nao venha; parta, nao va
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da duvida. Oh, sobretudo Que ela nao perca nunca, nao importa em que mundo
Nao importa em que circunstancias, a sua infinita volubilidade
De passaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graca de ave; e que exale sempre
O impossivel perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudivel canto
Da sua combustao; e nao deixe de ser nunca a eterna dancarina
Do efemero; e em sua incalculavel imprefeicao
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criacao inumeravel.

Vinícius de Moraes