GRUPO ROUGE NÃO É BANDA
Fenômeno da música jovem se autopromove através de uma função que não exerce


As cinco garotas do Rouge - Elas cantam, elas dançam, elas brincam, mas, salvo uma integrante que toca violão, não tocam instrumentos e só depois do primeiro disco passaram a compor suas músicas.

Em 2002, um grupo de cinco garotas começou a fazer sucesso nas rádios, a partir de uma música dançante que aparentemente junta elementos de música eletrônica e pop oriental, sem todavia representar um híbrido entre estas duas tendências.

Esta música tem um título estranho, "Ragatanga", que na verdade é uma versão de outra mais estranha ainda, "Asereje", do grupo vocal Las Ketchup. Este trio espanhol participa da versão brasileira, que aproveita o refrão original, que é uma tradução balbuciada dos primeiros versos de "Rapper’s Delight", sucesso do grupo Sugarhiil Gang, em 1979.

O grupo brasileiro em questão é o paulista Rouge, formado por cinco garotas selecionadas em testes feitos pela sucursal brasileira de uma rede de programas dedicados aos adolescentes, Popstars. Este programa, sediado nos EUA, teve sua versão brasileira produzida pelo SBT.

Anunciado com alarde como sendo uma "banda", o Rouge no entanto não cumpre este papel. As cinco moças apenas cantam e dançam, fazendo um arremedo de dança do ventre. As músicas que elas cantam a princípio não são compostas pelas integrantes (elas tiveram que pedir autorização do empresário para compor parte do repertório) e nem nas seções de estúdio as meninas aventuraram tocar um instrumento, com a exceção de uma única integrante, que toca violão.

Chega a ser risível a reação dos fãs do Rouge a este texto, com uma irritação que, tempos atrás, só se via entre fãs de punk hardcore. Hoje em dia, fãs de pop também são "esquentadinhos" e mesmo "farofeiros" do rock, como os ouvintes da Rádio Cidade do Rio de Janeiro (aquela que diz ser "A Rádio Rock"), na sua alienada incapacidade de ter senso crítico e indignação digna, hoje usam de sua irritabilidade um esporte para disfarçar o ócio (ou o tédio).

Entendemos que o Rouge tem uma instrumentista e que as cinco meninas agora se esforçam a compor, mas o fato de haver somente uma instrumentista não carateriza, ainda, o grupo como uma "banda". O Rouge teria que ter pelo menos três instrumentistas, o ideal que fossem quatro. Esses critérios vem de especialistas em música e devem ser considerados. Senão, a coisa vai bagunçar e daqui a pouco qualquer suposta boy band vira "banda" só porque seus integrantes tocam punheta nos bastidores, ou qualquer grupo de ginástica fitnessvira "banda" porque os integrantes tocam os pés no chão. E aí vai um aeróbico dizer: "como não toco alguma coisa? Meus pés tocam no chão". Vamos disciplinar os conceitos, em nome da informação.

O que é ridículo, nesse processo, é que elas são anunciadas como "banda" em vários sites da Internet, em várias páginas e colunas de jornais, mas poucos (como nós do "Boys Not Band") estranham. Mas vamos transportar este "normalíssimo" costume para quarenta anos atrás (em relação a 2003, quando este texto foi escrito) e veremos a reação da claque da época.

Digamos que, lá pelos idos de 1963, um mestre de cerimônias de um bar bem lotado anuncie que, dentro de alguns minutos, se apresentará uma nova "banda". Ele comenta, no seu anúncio, de que o referido grupo é um grande sucesso e o público se sente curioso e estimulado em suas expectativas. No entanto, entra no palco cinco moças e no referido recinto não há um instrumento sequer, nem um baixo, um órgão ou uma baqueta. As cinco moças tornam a cantar e dançar um repertório que, de cara, parece ter sido escrito por terceiros (em geral os produtores e o empresário do grupo). O público fica sabendo que aquele grupo musicalmente ocioso (por simplesmente não contar com instrumentistas nem compositoras, mas tão somente de cantoras e dançarinas) é a tal "banda" anunciada.

E a reação da platéia na época seria de quê? De tranqüilidade, de alívio, de alegria ou de comoção solidária? Nada disso. A reação, seria, na mais perfeita exatidão de sentido, uma revoltada e ruidosa vaia, para não citar o atrevimento de alguns mais irritados em lançar objetos ao palco, expulsando as cinco garotas de sua supérflua apresentação. Os presentes, inevitavelmente, fariam indagações do tipo "cadê os instrumentistas?", "essas garotas não tocam bulhufas, é?". As "instrumentais" se limitam a um vinil hi-fi tocado nos bastidores, prática que se tornou famosa sob o nome de playback.

Mas hoje, quando a democracia foi diluída pelo capitalismo em prol da difusão e da banalização da burrice humana, doença a assolar as tendências popularescas mundiais, poucos são os que reagem contra essa rotulação equivocada. Afinal, a expressão banda foi durante séculos a um coletivo de instrumentistas, de gente que participa da execução e até mesmo da elaboração de músicas.

Só porque temos pessoas imbecis em funções de comando e de influência na nossa mídia, principalmente no Brasil onde se atreveram a abolir a exigência de diploma de jornalismo, sob o pretexto de dar o direito de semi-analfabetos expressarem sua falta de conhecimento ao público, não há como encarar com naturalidade essa mania globalizada de chamar grupos meramente vocais de "bandas". Até porque muitos músicos passam anos e anos ensaiando instrumentos, dedicando seu raciocínio a cansativas elaborações musicais, vendo quais versos soam melhor, qual melodia é mais acertada, quais serão os arranjos a serem tocados pelos vários membros da banda, que combinam suas performances em cansativos ensaios nas garagens ou lugares outros, incomodando até vizinhos e mesmo parentes.

Todo o trabalho feito para depois todos os louros acabarem se voltando para pessoas cujo único esforço é cantarem durante o banho sob o chuveiro, pessoas que comodamente cruzam os braços esperando que outros componham, toquem instrumentos e façam arranjos, já que a tal "banda" só precisa ensaiar sua coreografia e suas mímicas para quando fizerem playback nos programas de auditório ou até em apresentações públicas "ao vivo".

Nada temos contra o sucesso do Rouge, mas ele se trata de mais uma edição da triste prática da indústria fonográfica para com os grupos femininos, que existe há cerca de 25 anos. Desde as Harmony Cats e A Patotinha, grupos duvidosos de mulheres cantoras infestam o mercado e todos eles com caraterísticas comuns, variando apenas conforme as tendências de sucesso de cada época. Tivemos Meia Soquete, Paquitas, Banana Split, Sublime, entre mil outras que caíram no mais duro esquecimento, todas não passando de grupos fabricados por espertos produtores, em geral um executivo de gravadora com supostos conhecimentos musicais e dois músicos ou produtores de estúdio.

De que adianta botar essas mulheres para gravarem discos, se o que elas cantam é feito por um grupo de homens, se os instrumentos são coisa também de outros homens (mas se tiver outra mulher envolvida não faz diferença, pois não será alguma das intérpretes)? Ainda que nas performances ao vivo (ou quase isso, vide o "pleibeque") um grupo desses só aparecesse cantando e dançando, seria pelo menos razoável que, nas sessões de estúdio, a maioria das integrantes pudesse tocar instrumento, fazer arranjos e compor. Como ocorria na soul music, quando seus grupos vocais mostravam integrantes que, nas gravações dos seus discos, tocavam um ou mais instrumentos cada um.

Mas o conservadoríssimo mercado fonográfico brasileiro, que sempre aposta na decadência da música em prol do sucesso fácil e do igualmente fácil faturamento empresarial, ainda aposta nesses grupos que, por trás da aparente simpatia e carisma de seus integrantes, esconde todo um processo de exploração, manipulação por parte de seus "descobridores" e "produtores", pressões e falta de autêntica autonomia dos intérpretes. Só para se ter uma idéia, é por causa de manipulações e pressões assim que o mundo perdeu o grandioso ídolo do rock Elvis Presley.

 

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