REINALDO JOSÉ LOPES
da Folha de S.Paulo, em Curitiba
Se decidisse abusar da sinceridade, a organização da COP-8 (8ª Conferência das
Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas), que começa
hoje em Curitiba, teria de trocar seu estiloso logotipo oficial por um imenso
ponto de interrogação. Não parece haver praticamente nenhum acordo sobre o
principal objetivo do encontro, que é estabelecer regras para que as regiões do
globo donas de uma grande variedade de espécies passem a ganhar algo com isso.
O evento, que será aberto hoje às 10h pela ministra brasileira do Meio Ambiente,
Marina Silva, discute a criação de um regime internacional de acesso a recursos
genéticos derivados da biodiversidade e de repartição dos benefícios oriundos
desses recursos.
Por trás da linguagem diplomática complicada, o conceito é relativamente
simples. Os seres vivos do planeta são uma das principais fontes de novos
produtos em diversas áreas, em especial para indústrias milionárias como a
farmacêutica e a de cosméticos. E existe uma assimetria clara entre os países
chamados megadiversos (donos de uma imensa variedade de espécies e geralmente
pobres) e as nações desenvolvidas cuja economia lucra com os produtos derivados
da biodiversidade. Hoje, os países megadiversos ganham pouco ou nada com seus
recursos genéticos.
A idéia é mudar esse quadro criando regras para o acesso às espécies com
potencial para gerar um produto lucrativo. Em princípio, seria um sistema
internacional, capaz de definir compensações, financeiras e/ou de outro tipo,
que seriam dadas aos "donos" da biodiversidade que está rendendo dinheiro. Isso
geraria, além do mais, recursos para preservar a própria variedade de espécies
do planeta, que anda mal das pernas.
Mar de colchetes
Parece um bocado fácil no papel, mas a única coisa clara quando se lê o esboço
desse regime internacional é que os 188 países signatários da CDB (Convenção
sobre Diversidade Biológica) não chegaram a acordo nenhum sobre como colocar o
plano em prática. A indefinição é exemplificada pela densa população de
colchetes no texto (frases entre colchetes são as que ainda não alcançaram o
consenso).
Uma das questões mais delicadas é a dos direitos das chamadas populações
tradicionais, que podem ser indígenas, mas que incluem também povos de
composição étnica mista, como os caboclos da Amazônia brasileira.
Boa parte do conhecimento "aplicado" sobre a biodiversidade, como o uso de
determinada planta contra doenças, faz parte da sabedoria tradicional desses
povos. Será que eles devem ser contemplados pela repartição de benefícios, ao
lado do governo do país de onde a espécie é originária, ou mesmo no lugar dele?
E se a tribo ou comunidade estiver espalhada por mais de um país, coisa que
acontece o tempo todo com populações tradicionais?
Tampouco há acordo sobre o alcance de um mecanismo de acesso e repartição de
benefícios --ele valeria apenas para o uso inicial, "bruto", de uma espécie, ou
também se aplicaria a substâncias ou produtos sintéticos que, em última
instância, foram derivados dela? Para patentear um produto derivado da
biodiversidade, seria necessário primeiro cumprir todas as exigências do
mecanismo internacional? E, falando nisso, que punição impediria os mais
afobados ou espertinhos de não seguir as regras e lucrar com isso?
Hecatombe à vista
Para os que defendem o regime internacional, o sucesso significaria um passo
importante para cumprir o objetivo da CDB, que é "impedir uma perda
significativa da biodiversidade do mundo" até 2010. Em declaração oficial antes
do início da COP-8, o argelino Ahmed Djoghlaf, secretário-geral da CBD, chamou
atenção para o risco existente hoje.
"A humanidade passa por um momento decisivo. Nunca antes na história do nosso
planeta vimos tamanha taxa de diminuição da biodiversidade. Estamos à beira da
maior crise de extinção desde que os dinossauros desapareceram milhões de anos
atrás. Devemos agir agora", disse Djoghlaf.
A frase apocalíptica do secretário-geral se refere às estimativas mais recentes
sobre o desaparecimento de espécies no mundo. Muitos biólogos consideram que a
ação humana e seus efeitos indiretos, como o aquecimento global, estão perto de
produzir a chamada "sexta extinção". É uma referência às outras cinco extinções
em massa da história da Terra, desencadeadas por causas naturais (como o
asteróide que teria acabado com os dinossauros) e responsáveis por exterminar
até 90% das espécies.
De FolhaOnline de São Paulo, 20/03/2006
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u14369.shtml