Legião Urbana - A História









A HISTÓRIA
Brasília,
meados de 1978, início do processo de abertura política que botou fim na
ditadura militar. Aos 16 anos, Felipe Lemos, filho de um professor da
Universidade de Brasília, voltara de uma estadia na Inglaterra com os pais para
morar num conjunto de quatro prédios com vista para o Lago Norte, apelidado de
Colina. Os apartamentos eram espaçosos e serviam de residência para os
professores.
Numa noite,
uns amigos levaram Fê a uma festa onde a vitrola tocava músicas do Sex Pistols,
Ramones e The Clash, as mesmas que Fê Lemos ouvia na Inglaterra. Querendo saber
quem era o dono dos discos, Fê foi apresentado a um sujeito estranho, que usava
camisa social e andava segurando uma capanga numa mão e um guarda-chuva na
outra. Era Renato Russo.
"Foi
uma afinidade imediata por causa daqueles discos e ele passou a freqüentar
minha casa todo dia", lembra Fê. Logo Renato estava enturmado na Colina,
onde viria a se formar o maior núcleo da maioria das bandas de Brasília. No
começo era apenas uma turminha de garotos que gostavam de punk rock e se
reuniam para ouvir música, tomar porres de vinho Chapinha, fumar baseado e
cheirar benzina de vez em quando.
Às vezes,
o clima pesava. Renato e Fê, dopados e entediados, sentaram-se na escada de
serviço de um dos prédios para conversar. Renato no degrau de cima e Fê no de
baixo. De repente, sem aviso, Renato começou a fazer xixi nas calças.
"Fiquei chocado. Provavelmente era o que ele queria. Levantei xingando e
fui pra casa. Ele ficou lá todo molhado", conta Fê. Nessa noite, como em
muitas outras, Renato voltou para casa a pé, uma caminhada de pelo menos duas
horas na escuridão da madrugada.
Renato
ainda não tinha 20 anos. Chocar as pessoas era uma de suas prioridades.
Renato
Russo respirava música. Seu quarto era um festival de colagens, mais de 500.
Tinha tanta coisa pra ver que quem entrava ali podia ficar horas de olhos
grudados nas paredes. Havia também uma imensa coleção de discos e livros e um
aparelho de som com quatro caixas, o melhor da cidade. Era nesse quarto que ele
enfrentava o tédio nas tardes de Brasília.
Renato era
do tipo aglutinador. Ligava para todos da turma, marcava os encontros, tinha idéias
para atividades em grupo e quando começava a falar era difícil pará-lo.
Extremamente bem informado, tinha uma cultura vasta e adorava planejar o futuro
de sua própria vida. Tinha gente em Brasília que o achava chato. Pelo menos
quando bebia demais e resolvia espalhar seu excesso de amor nos bares da cidade.
Ainda em
1978, Renato conheceu André Pretorius, que andava na cidade vestido de punk e
era filho de um diplomata na África do Sul. Pretorius e Fê haviam combinado de
montar uma banda com André Muller, que estava morando na Inglaterra. Mas Renato
precipitou os acontecimentos e convidou Fê e Pretorius para formar uma bando
com ele no baixo, Fê na bateira e Pretorius na guitarra.
"A
gente tava na Colina sentado no chão, pensando qual seria o nome da nossa
banda. Eu tava com um negócio de elétrico na cabeça e alguém falou comigo
tijolo elétrico. Aí o André Pretorius falou: não, Aborto Elétrico",
recorda Fê. Segundo ele, a versão de que o nome da banda era por causa de um
cacetete elétrico, usado pela polícia de Brasília em atos de repressão, não
é verdadeira.
Renato
escreveu "I want to be a junkie" na parede do quarto, apesar de nunca
ter sequer visto drogas realmente pesadas. E começou a compor o repertório do
grupo. Estava formada a "mãe" de todas as bandas de Brasília.
Os ensaios
do Aborto Elétrico aconteciam na própria Colina e o primeiro show foi em 1980,
no centro comercial Gilberto Salomão, num barzinho chamado Só Cana. Era um
show instrumental, Renato não cantava. André Pretorius quebrou a palheta e
cortou os dedos nas cordas, continuando a tocar enquanto o sangue escorria. Foi
o primeiro e único show do Aborto Elétrico com Pretorius na guitarra. Ele foi
para a África do Sul servir ao exército de lá, naquela época dramaticamente
envolvido na manutenção do Apartheid. Quem estava no Só Cana gostou. Nos colégios
de Brasília começou a correr a notícia de que uns punks maconheiros tocavam
uma música violenta. Os playboys da cidade não gostaram. Quando as turmas se
encontravam, o pau comia.
Para Fê,
"a gente tava fazendo algo com nossas vidas, mexendo no ambiente onde a
gente vivia, e isso despertava curiosidade e inveja". Logo, outros garotos
seguiriam os passos do Aborto Elétrico, formando bandas e detonando o fenômeno
musical do rock de Brasília. Anos mais tarde, em entrevista à Sônia Maia
publicada na Bizz, Renato disse que o Aborto Elétrico acabou virtualmente
quando "Pretorius foi para a África do Sul matar negros".
Flávio
Lemos, irmão de Fê, assumiu o baixo no Aborto Elétrico e Renato pegou a
guitarra. Os ensaios aconteciam na nova casa de Fê e Flávio no Lago Norte.
Essa mudança para o Lago Norte também marca o começo do fim da turma da
Colina, que passou a ter um novo ponto de encontro. Na casa de Fê, cercada por
lindas árvores do cerrado, a turma fazia camisetas, cartazes e música no
intervalo entre os baseados.
Renato
sempre chegava com a idéia das letras e os acordes na guitarra. "Ficava fácil
que ele trazia floresciam na banda", lembra Fê. "Ele era um puta
baixista também". As músicas, raivosas e radicais, falavam em morte.
Renato era um catalizador de sofrimentos na sua poesia, embora fosse doce e
delicado no convívio diário.
Ainda em
1980, Pretorius voltou para umas férias em Brasília e participou dos ensaios
crucias para a criação de "Música Urbana", "Que País É
Este", "Veraneio Vascaína", "Conexão Amazônica" e
"Baader-Meinhof Blues", todas músicas eu teriam grande impacto na
história do rock brasileiro.
Em 1985,
André Pretorius morreu de overdose nos Estados Unidos.
O auge do
Aborto Elétrico aconteceu em 1981. Foram vários shows com outras novas bandas
de Brasília, todas originárias de alguma forma da Colina: Blitx, Plebe Rude,
formada pelo André Muller, Fusão, 5 coluna. No meio do ano Ico Ouro Preto
assumiu a guitarra do Aborto Elétrico e Renato passou a se ocupar apenas dos
vocais.
O cantor,
compositor e ex-guitarrista do Aborto Elétrico, Renato Russo, vivia falando de
como seria sua carreira numa banda de rock. O grupo estava em plena atividade
nas festinhas, nos colégios, e em festas de aniversário. Mas para ele era
pouco.
Renato
sonhava acordado. Fê lemos não tinha tanta urgência em deixar a inocência do
amadorismo. "Nas férias, eu ia pra praia e ele ficava em Brasília, numa
ansiedade muito grande ver alguma coisa acontecer. Eu era muito garotão, a fim
de curtir, tocar numa banda. Renato tinha outros planos. Ele desenhou até a
capa que nosso disco ia ter. Era um enforcado num bosque. Acho que essa diferença
de atitudes entre nós foi um dos motivos do fim do Aborto".
O fim do
Aborto Elétrico aconteceu em março de 1982. Na BIZZ, ainda falando à Sônia
Maia, Renato disse que o grupo terminou numa briga por causa da música "Química",
um dos primeiros clássicos da Legião Urbana. Segundo Renato, Fê lhe disse que
"Química" era muito ruim e o acusou de ter perdido o jeito de fazer música.
Renato respondeu que Fê só queria ficar fazendo camiseta e pediu o boné.
Fê lemos
concorda que foi esse o momento de ruptura, mas o clima entre os dois não
estava bom já havia algum tempo. "Achei 'Química' horrível. Não tinha
nada a ver com que a gente fazia, com o que a gente era. Pô, o Renato era ótimo
em química, eu também. Achei que ele estava forçando a barra. Que bobagem a
minha! Hoje a música é um clássico".
Aconteceram
outras brigas entre Fê e Renato. Uma delas foi no dia do primeiro aniversário
da morte de John Lennon, um dos grandes ídolos de Renato. "Fomos fazer um
show numa cidade satélite e o Renato tava super sentido. Eu fiquei com ciúmes.
Quando ele errou uma música, atirei uma baqueta nele e acertei na cabeça. Ele
me olhou com uma cara horrível e sumiu depois do show. Aí saquei o que eu
tinha feito. Fui pra casa dele e só faltou me jogar aos seus pés. Era uma
amizade muito forte, tinha um quê de mágico, porque nos conhecemos através
dos discos de punks".
Renato
Russo e Fê Lemos tinham 22 e 20 anos, respectivamente. Até aquele momento eram
os principais líderes da turma de Brasília, os fundadores do Aborto Elétrico,
a primeira banda punk da cidade, os aglutinadores do movimento. Mas o fim do
Aborto Elétrico mudou destinos e separou os amigos em banda diferentes.
"Depois que a gente formou o Capital Inicial e o Renato formou a Legião
Urbana, a coisa não era mais a mesma entre a gente. Acho que ele se sentiu traído.
Ele esperava mais, até num sentido de amor, e eu não percebia isso. Ele
guardava segredos que eu não conhecia, apesar de ter convivido com ele cinco
anos, unha e carne".
Mesmo sem
Renato Russo, Fê tentou manter o Aborto Elétrico. Afinal, eles já tinham uma
certa fama no circuito alternativo de Brasília. Como numa despedida oficial, Fê
chamou Renato para uma última apresentação com o grupo. Renato foi e o Aborto
Elétrico teve a sua derradeira aparição. Seis meses depois Fê foi convidado
para entrar no Capital Inicial. Flávio foi com ele.
Era 1982 e
a semente lançada em Brasília pelo Aborto Elétrico havia gerado muitos frutos
em forma de bandas de punk rock. Com o fim do Aborto Elétrico, Renato
intitulou-se O Trovador Solitário e, com um violão, tocava abrindo shows de
outros grupos locais e apresentando novas composições, como "Faroeste
Caboclo".
Mas Renato
não queria seguir sozinho. Ele achava que era importante ter uma banda no mundo
do rock. Nesse mesmo ano Renato formou a Legião Urbana.

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