Em 1970, quando meus pais foram para a Europa levaram uma máquina fotográfica Olimpus Trip com a qual tiraram 1000 slides. Agora, você consegue imaginar, na volta para a casa, a projeção numa paredinha clara de 1000 fotografias? Ou já dormiu antes de chegar ao 500º slide?

O que estou tentando mostrar é que, quando vieram de lá, não só trouxeram lembrancinhas para os filhos, como garantiram, para o prazer ou pavor de toda família, sessões completas e ilustradas desse giro pela Europa, que começava em Lisboa e, 32 dias e
trocentos slides depois, terminava em Paris.

A sessão devia durar algo entre algum tempo e uma eternidade, dependendo de quem a via.  Tinha uma parada para o lanche. Minha mãe era quituteira de mão cheia - e eu acredito que era esse o verdadeiro motivo da família estar presente à sessão.

Ela fazia tortas, doces, sorvetes, e começava a servir quando chegava a Áustria - coisa que devia acontecer entre o sexto e sétimo carretel.

Para a geração da fotografia digital que nunca ouviu falar em carretel, essa geringonça de plástico em formato de roda tinha capacidade de armazenar 100 slides, uns 50 minutos de paciência e nada mais. Imagine 10 carretéis, todos numerados e catalogados para facilitar a projeção que ficava – vejam só – com apenas umas sete ou oito horas de duração.

A apresentação, tortura para alguns, era para mim, aos 11 anos de idade, o evento mais esperado da semana. Era dia de rever tios, tias, primos, primas, ver fotos e ouvir repetidas vezes os relatos da minha mãe que, com a mesma habilidade para salgados e doces, sabia temperar palavras e contar histórias. Tudo muito gostoso.

Mas, quem disse que eu conseguia chegar acordado até Paris? Logo após o lanche, os olhos começavam a pesar. Até o mais interessado dos espectadores tinha que se levantar e dar uma volta antes da Cidade Luz. A penumbra, aquela conversa  melodiosa e o sono me pegava desde Milão. Quando chegava Munique, já pescava feio e a história de cervejarias embebedava o raciocínio e embalava o meu corpo estirado num canto daquele cinema em casa.

Londres, o meu destino predileto, era o último a me pegar acordado. Paris, um passo antes de voltar ao Brasil, ficava sempre para a próxima vez. E a próxima vez sempre começava do começo, ou seja, Lisboa, Madri, Florença, Roma, Milão, um cochilo, Veneza, Viena, muito sono, Munique, Frankfurt, acho que Amsterdã, Londres e lá ia eu de novo, roncando para Paris.

Passei meses, mesmo sem ver Paris, de olho em outros novecentos e tantos slides.
A conseqüência disso não poderia ser outra: tornar-me um viajante com vontade de fotografar e contar histórias.

Mas uma coisa a vida e as viagens têm me ensinado. Quando você fala de sua viagem, diz muito mais de você mesmo. Por trás do Coliseu está o gosto pela humanidade. Das areias de Marrakesh, pode elevar uma tempestade de sentimento e emoção. Enfim, cada destino ao ser relatado  tem sua origem no coração de quem conta.

Assim como também é possível, ao mostrar suas fotos, perceber muito mais daqueles que as vêem. Existem os seguidores da linha “su casa, mi casa” na versão “sus fotos, mis fotos” Eles agem assim: “Aqui é o Times Square”, você diz. “Parece Toronto”, a visita retruca. “Você já foi a Toronto?”, ela pergunta, fecha seu álbum e continua falando do Canadá até o fim da noite. É um tipo perigoso.

Existe aquele do “se você não viu isso, você não viu nada”. É assim: Você vai para Londres. Nada pelado no Tâmisa - coisa que ninguém faz; bebe de suas águas – coisa que ninguém deveria pensar em fazer; é preso por violar códigos da moral – coisa que não acontece no Brasil; é interrogado pela Scotland Yard – órgão que não existe aqui; e é liberado só porque é brasileiro- coisa que jamais aconteceria por lá.

Depois da sua história mirabolante, a visita pergunta se você foi ao Museu Britânico e quando você diz que não, ela diz: “Ah, então você não viveu Londres”.

E existem aqueles para quem eu nem mostro fotos porque sei que não querem ver e eu respeito. Simples assim. Preciso deixar claro que isso não inclui você. Psiu! Você mesmo que está lendo esse texto e navegando no site. Quero que leia tudo e veja tudo.

Minha mãe queria contar histórias até o milésimo slide. Sou filho dela. Também sou assim.
Opa, opa e nem pense em desligar o computador e ir dormir.

Ah, quanto aos slides de Paris, seis ou sete anos mais tarde, quando meus pais já tinham conhecido novos destinos e suas fotografias eram reveladas em papel, encontrei o projetor abandonado num canto, catei escondido o carretel número 10 e fui direto a Paris, sem escalas.
FOTÓGRAFO FILHO DA MÃE
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