POBRE EX

  
Somente para satisfazer a curiosidade, perguntei para atendente
da agência de turismo se vôos internacionais ainda reservavam uma área para aficcionados pela nicotina como já fui.
Ela me olhou com um olhar flamejante que nesse caso não tinha a menor intenção de acender nada, exceto uma provável discussão, caso eu ainda fosse um fumante, e me disse com ênfase: “graças a Deus, não!”.

O “graças a Deus, não!” foi dito com uma fisionomia misto de nojo e repreensão
como se tivesse perguntado: “posso colocar minha barata de estimação no seu colo?”
Tudo isso me fez relembrar o quanto sofri como fumante em viagens e fora delas,
e me fez perceber o quanto o fumante ainda é perseguido e discriminado.

Longe de mim fazer uma apologia ao cigarro. Sei dos malefícios do vício desde os meus 17 anos quando dei meu primeiro beijinho na ponta branca do responsável por deixar meus dentes amarelos pelos 25 anos vindouros.
Para minha sorte, larguei o vício há três anos e, para a sorte dos fumantes que me rodeiam, não me tornei aquele ex-fumante que costuma ser dono de uma chatice superior a de qualquer ser que nasceu e permaneceu virgem do tabaco.

Parece que como para descontar, o ex-fumante largou o isqueiro mas não hesita em botar fogo em qualquer roda em que encontre alguém fumando.
O ex vai logo perguntando se o viciado já viu a foto de um pulmão danificado; se sabe que o cowboy da Marlboro morreu de câncer; e que ele mesmo ainda é um fumante passivo por culpa de quem, de quem?
CULPA SUA, SEU ASSASSINO FUMANTE!!!!
(ou algo parecido com isso)

Seu próximo passo é um longo discurso na linha alcoólatras anônimos
em que relata que hoje respira melhor, dorme melhor, sente mais o gosto dos alimentos graças ao abandono do vício e respira fundo à espera das palmas do fumante
que só não acontecem porque o ouvinte viciado tem as mãos ocupadas por cigarro e fósforos prontos a dar luz a uma encrenca.

Mais chato ainda é o que se vira para o fumante e diz “ouça meu conselho: pare agora mesmo!”. Como se palavra de ex-fumante valesse uma bituca na decisão do inveterado.

A coisa fica feia quando atinge contatos imediatos de terceiro grau no qual,
além de falar, ele age: tenta  tirar o cigarro da boca do amigo,
cortar ao meio ou esconder o maço durante uma festa - como fez uma antiga namorada que depois me disse:
“Foi para o seu bem”. Foi o fim do namoro..

Não me arrependi em nada. Casei com uma não-fumante que nunca cobrou qualquer decisão heróica de abandono do vício
e era companheira resignada do cigarro em todas as situações.

Foi ela quem me acompanhou para fora de prédios em locais em que o termômetro baixava a menos de 15 graus centígrados; ou dividiu o único quarto para fumantes que era isolado, fétido, não pelo fumo, mas porque ficava ao lado da lixeira do hotel;
ou, naquela vez, em que permaneceu ao meu lado dentro de uma área fumante e envidraçada de um aeroporto nos Estados Unidos, coberta de névoa que, do lado de fora, parecia trazer uma placa
“proibido dar fogo aos animais”.

Nem tudo foi tão horroroso assim, pois foi também companheira na França, na qual consegui uma mesa melhor no restaurante da Torre Eiffel porque fumava (vai morrer mais rápido – que tenha pela menos uma vista da cidade) ou curtiu comigo alguns países escandinavos que até no elevador tinha cinzeiro.

Mas, tudo isso é passado. Um passado apagado na coleção de cinzeiros que vive limpinha lá em casa.

Melhoras na saúde? Devo confessar que algumas.
O olfato melhorou, sem dúvida: sinto até um chato ex-fumante a quilômetros de fumaça.
E como já sofri essa perseguição, sei o que é isso!

Vale lembrar a fisionomia de terror da moça da agência de turismo...

Perguntei da ala fumante no avião porque me lembrei do quanto sofri com a proibição das companhias aéreas.
Se avião dava medo, sem cigarro era pavor na certa.
Fumava meio maço na hora posterior ao vôo e rezava para chegar logo ao destino, sair às ruas (pois nos aeroportos a proibição também existe) e tragar o bom e velho companheiro assassino.

Como disse anteriormente, longe de mim defender o vício.
Defendo sim o direito de ir e vir, de decidir  o que desejamos a nós mesmos.
Sei que faço parte de um grupo restrito que pensa assim.
E só por essa declaração, já posso ver muitos a me olhar com suspeita e dizer à meia boca: “traidor: aposto que ainda tem um isqueiro no bolso”.