CICLO DE PILATOS

Inclui o evangelho Mors Pilati

Arco do Triunfo romano
MORS PILATI

HOUVE INTENSA ESCRITURA de evangelhos diversos nos primeiros tempos da Igreja. Podemos contar bem uns 50 ao menos. Uns, ''Da Infância'' - literatura do Menino Jesus; outros, ''Da Cruz'' - literatura da Paixão.

UM destes ciclos apresenta percurso peculiar, pode ser rastreado ao longo dos tempos, ao oposto dos outros. E' o Ciclo de Pilatos, um corpus de literatura, de evangelhos da cruz. A sua peculiaridade é alimentar o curioso, o pitoresco. Podemos defini-lo como a literatura da Paixão ''em que o nome do procurador Pôncio Pilatos ocupa um lugar destacado'' (Otero pag. 394). Essencialmente, formado pelo Evangelho Segundo Nicodemos ou Gesta de Pilatos (um extenso evangelho); textos narrativos, micro-evangelhos (Morte de Pilatos, Vindicta, Rol de J.de Arimateia, Paradosis, Anaphora); um texto complementar (Descenso) editado com a Gesta; Cartas diversas: o Veredicto.

A UNICA referência arqueológica sobre Pilatos é um lajedo em Cesareia. As citas propriamente historiais, documentais, no caso oriundas de cronistas, são Filon, Josefo, Tácito.

MAS podemos aceitá-las, porque nestes cronistas o agente histórico ''Pilatos'' contextualiza eventos dificeis de entender sem admitir a sua existência histórica real.

O NT e os apócrifos fazem literatura, como textos poéticos, não escritos com o intento de documentar, mas de filosofar. Ali, a personagem ''Pilatos'' tem papel de relevo na Cruz. Juntando arqueologia, cronistas e literatura, a possibilidade de Pilatos ter existido fica razoavelmente demonstrada.

ALGO parecido a um verdadeiro evangelho canónico veio a ser mencionado apenas por Orígenes em 254, contudo, o nome tradicional que identifica o Ciclo de Pilatos, a saber, Actas de Pilato, foi citado, com essa forma, bem antes, por volta do ano 100; grego, Akton Pilatou.

JUSTINO escreveu por volta do ano 150 (Apologias) e demonstra haver conhecido umas Actas de Pilatos a respeito da Cruz: ''Pontiou Pilatou genomene akton'' (actas de P.Pilatos sobre os factos ocorridos).

TERTULIANO menciona, ca. 200, um relato que ''Pilatos iam sua conscientia christianus'' (já cristão em sua consciência) teria feito a Roma. ''ea omnia super Christo Pilatus, et ipse iam pro sua conscientia christianus, Cæsari tum Tiberio nunciavit'' (Apologetica).

ea omnia super Christo= todas as coisas sobre o Cristo
Pilatus= Pilatos
et ipse= e mesmo
iam pro sua conscientia christianus= já cristão em sua consciência
Cæsari tum Tiberio nunciavit= ao César, pois, a Tibério anunciou.

PanteonPARECE que antes de morrer em 37 o imperador propusera ao Senado o reconhecimento (recusado) do cristianismo como religio licita i.e. ''culto permitido'' e, parece, elevar Jesus ao Panteon (recusado), a partir do rol enviado pelo procurador. Tertuliano: ''Tibério submeteu ao Senado os fatos que lhe tinham sido anunciados a partir da Síria-Palestina, fatos que haviam revelado a divindade do Cristo, e manifestou o seu parecer favorável'' - Apologet. [Todas as divindades do Império todo eram recolhidas ao Panteon].

EM 311 ou 312, Maximino Daia fez circular umas Actas de Pilatos tidas como injuriosas a Jesus, cf. Eusébio, ''a falsidade das Memórias divulgadas recentemente contra nosso Salvador'' (HE I,9.3). Explica-se: ''oficialmente'' a aristocracia romana era anti-supersticiosa, assim, o relato de ''milagres'' e curas, de que está apinhado o Ciclo de Pilatos actual, visava retractar Jesus como mago, feiticeiro. Produziu, claro, o efeito oposto: a alta-sociedade de Roma era magística ao extremo e dada ao espiritual. Um outro elemento do Ciclo, o retrato de Jesus barbado e de cabelo longo, agradou menos, horrorizou; mas com o tempo a curiosidade em torno da sua figura pessoal cresceu, divulgando o Retrato de Jesus e o Retrato do Salvador, como eram conhecidas as Cartas de Nicéforo Calixto e Públio Lêntulus. Mesmo nas catacumbas, muito antigas, temos uma figura de Jesus barbolongicapilo; na iconografia romana oficial, no entanto, ele era um jovem imberbe com o rosto de Apolo menino e portava um cordeiro a os ombros.

ESTAS Actas ou Memórias consta terem sido refundidas em 376; Eusébio em 311 também conhece o mesmo rol; outros depoimentos surgem em 500, 600... e prosseguem tempos afora, fazendo do Ciclo de Pilatos e seus ramos uma literatura peculiar; contudo, este Ciclo produziu ou incluiu ou agregou ramos: uma Carta de Tib. a Abgar, de Abgar a Jesus e de Jesus a Abgar, uma Carta Do Domingo, e material visual como a pintura Mandilion, o pano da Verónica em Oviedo (a primeira mídia integrada da História, o primeiro audiovisual), além de inspirar romances espirituais-humanistas tempos em fora, como O Manto Sagrado, Quo Vadis e Há 2000 Anos.

MORS PILATI

TISCHENDORF copiou esse texto do manuscrito de Milão; foi recolhido na Legenda Aurea de Tiago de Voragine, na Idade Medieval. E' um micro-evangelho, do Ciclo de Pilatos; resume o Vindicta, do mesmo Ciclo, um evangelho mais amplo. Editou e traduziu, Paulo Dias.

1. Tibério César, imperador de Roma, achava-se enfermo com gravidade. Soube que em Jerusalém havia um médico, Jesus, capaz de curar com apenas a sua palavra; ignorava que os judeus e Pilatos o haviam matado. [Em aramaico, jesus significa médico, yosua; em hebraico, ajudar, yeshua; substant. comum].

2. Ordenou portanto a um seu aparentado, de nome Volusiano, ''vai-te o quanto antes além-mar, e diz a Pilatos, meu amigo e servidor, que me envie este doutor para devolver-me a saúde''. Volusiano, tendo ouvido a ordem do imperador, partiu naquele mesmo instante conforme a ordem recebida. E contou ao citado Pilatos do que lhe encarregara Tib. Ces., dizendo, ''Tib. Ces., imperador dos romanos, teu senhor, ao inteirar-se de que nesta cidade há um médico capaz de curar as enfermidades com apenas a sua palavra, te roga veementemente que o envies para que cure sua própria enfermidade''. [O mesmo Volusiano é chamado em outros documentos Velosiano ou ''Públio'' ou ''Público'', dito regente da Judeia e aqui, cf. abaixo, ''núncio de Tib.''].

3. Pilatos, ao ouvir tal, atemorizou-se ao extremo, sabedor de que o havia feito morrer por inveja. Respondeu Pilatos, pois, ao citado mensageiro, [nuntius] deste modo: ''aquele homem era malfeitor e seduzia o povo''. Assim, depois de aconselhar-me com os sábios da cidade, pu-lo crucificado''. O núncio, aquando ia voltando para casa, deparou-se com certa mulher, de nome Verónica, que fora familiar de Jesus, e lhe disse, ''oh mulher, porque os judeus deram morte a um certo médico residente nesta cidade, capaz de curar os enfermos com apenas a sua palavra?'' [Verónica foi objecto de intenso culto devocional e entrou para a via-crucis; se diz que enxugou o rosto de Jesus com um pano e nele ficou estampada a sua face].

4. Mas ela começou a chorar, dizendo, ''ai do senhor meu! Meu deus e meu senhor! A quem Pilatos entregou por inveja, condenou e mandou crucificar!'' Ele, pois, embargado por dor profunda, disse, ''sinto muito enormemente e sofro, porque não vou poder cumprir o mandato que meu senhor me ordenou''. Verónica disse, ''aquando o Senhor ia pregar, sentia-me mal em ver-me privada de sua presença, por isso desejei fazer um retrato, para ao menos contemplar a sua figura; e ao sair em busca do pintor, o Senhor me encontrou; ao lhe manifestar meu propósito, pediu-me o pano e mo devolveu assinalado com sua santa face. Se o teu senhor contemplar demoradamente a face, ver-se-á de imediato agraciado com a cura''. [O costume de pintar em tela é recente].

5. Ele então lhe disse, ''um tal retrato posso-o comprar com ouro ou prata?'' Ela respondeu, ''não; farei obra de piedade, marcharei contigo a Roma, levarei a imagem para que o César a veja, depois voltarei''.

6. Veio, pois, Volusiano a Roma, com Verónica, e disse ao imperador Tibério: ''aquele Jesus a quem desejavas ver desde longo tempo foi entregue por Pilatos e os judeus à morte injusta e por inveja foi cravado no patibulum da cruz. Veio, pois, em minha compania, certa matrona que traz consigo um retrato do mesmo Jesus e, se tu o olhas devocionalmente, consegues o benefício da cura no mesmo instante''. [''Desejavas ver desde longo tempo''. Parece o início da Carta de P. Lentulus, ''sabendo quanto desejavas, como me disseste''].

7. O César fez, pois, que o caminho fosse forrado com panos de seda. E mandou que se lhe apresentassem a imagem, e mal a fitou, e recobrou a antiga saúde. [A seda era privativa dos monarcas].

8. Em resultado, P.Pilatos foi detido por ordem do César e trazido a Roma. Ao inteirar-se o imperador de sua chegada a Roma, sentiu-se dominado por grande furor e mandou que se lhe apresentasse. Pilatos havia trazido consigo a túnica inconsútil de Jesus, presente ao imperador. Assim que o viu, o imperador esqueceu toda ira, levantou-se de imediato e não ousou uma palavra dura. Parecia fero e terrível em sua ausência, diante dele amansou-se a certo ponto. Despediu-o, mas voltou a encolerizar-se com a ira em seu peito, e o chamou de novo.

9. E no mesmo instante o fez chamar de novo, jurando e dizendo que era digno de morte, indigno de viver sobre a terra. Contudo, assim que o viu de novo, saudou-o de imediato e esqueceu toda ira. Os circunstantes e ele mesmo estavam admirados deste humor, de que se encolerizava contra Pilatos e ao vê-lo amansava. Enfim, por inspirado divino, ou talvez por obra de algum cristão, determinou que o despojassem imediatamente daquela veste. E no mesmo instante recobrou sua ferocidade. [Notai a linguagem impositiva do imperador, conhecido, alias, pela sua selvageria; o trecho deve ser uma glosa de humor-negro].

10. Muito admirado disto, ao imperador foi dito que aquela túnica havia sido de [do Senhor] Jesus. Mandou, pois, que o metessem no cárcere, enquanto deliberava. Poucos dias depois dictou veredicto contra Pilatos, para que fosse condenado a morte ignominiosa em extremo.

11. Aquando isso chegou aos ouvidos de Pilatos, suicidou-se a um cochilo dos guardas, e com essa morte deu fim a sua vida. [Suicidar-se era desonroso, e podia ser sentenciado como pena de morte degradante].

12. Ao inteirar-se o César disso, afirmou: ''em verdade morreu ignominiosamente, pois sua própria mão o condenou''. Ordenou que o atirassem ao Tibre, com uma pedra, mas os espíritos imundos e malignos o devolveram, enchendo o firmamento de trovões e raios, a ponto de todos estarem transidos de pavor. Por isso os romanos o tiraram dali e o transportaram a Viena, que quer dizer ''caminho [via] da Gehena'' [inferno], naquele tempo um lugar maldito. E o arrojaram ao fundo do rio Ródano. Ali também os espíritos imundos assombraram o ambiente, e os habitantes não puderam suportar tão grande invasão de demónios, e lhe providenciaram sepultura em Lausana [mod. Lausana, Lausanne, Suíça]. Ainda ali os moradores, atormentados pelos demónios, arrojaram o corpo a uma fenda entre as montanhas, e se diz que ainda andam fazendo ali suas maquinações diabólicas.

Esta última parte é, claro, medieval; historicamente, Pilatos pode ter sido deportado a ''Viena das Gálias''. Em 36 chega ao Oriente, a Antioquia, o legado de Tibério, Vitélio. E o que faz ele, de imediato? Destitui (conta Flávio Josefo sem especificar o motivo), o sumo-sacerdote Caifás, o que havia condenado à morte Jesus e Estêvão. Talvez Caifás tenha sido punido por autorizar a morte de Estêvão sem direito. F.Josefo também relata outro acto de Vitélio: mandar P.Pilatos de volta a Roma.

TENDO em vista os diversos depoimentos difusos ao longo dos tempos, parece bem possível mesmo que haja existido um conjunto de documentos antigos mais ou menos neste teor, ''aos vinte e cinco dias do mês de março, oitavo das calendas de abril, do ano setecentos e oitenta e tanto de Roma, no ano dezoito de Tibério imperador invencível, no consulado de tal e tal, no pontificado de tal e tal, reinando Herodes sobre a Galileia, e tal e coisa, fez-se entrar na sala do conselho pretoriano da Cidade de Jerusalém a um certo homem que o povo chama de Jesus Nazareno, dito messias, para julgado por motim, homem descrito a seguir, anexe-se aos autos o seu retrato, ''sabendo o quanto desejavas'' e tal [carta de P.Lentulus] [carta de Calixto], sob as seguintes acusações e tal, trazidas por fulano e sicrano, e tal, practicante das seguintes magias, e tal, e mais 4 mil e tantas páginas de autos processuais, eu, P.Pilatos governador etc., (testemunhando eu, P.Lentulus de tal núncio de Tib. Cesar, eu fulano, eu sicrano) sentencio'' etc. etc. etc. ''seguindo-se o meu timbre e das demais testemunhas em sinal de veracidade'' e tal e coisa, ''eu, P.Lentulus de tal, reabro o processo em vista de tais e tais manifestas irregularidades'', e tome mais 300 mil pags. de processo; deve ter sido esse o documento original do Ciclo de Pilatos, em linguajar bem judicial. Ver Veredicto de Pilatos contra Jesus. Editou, Paulo Dias. Fonte- OTERO, Aurelio de Santos, Los Evangelios Apocrifos, BAC, La Editorial Catolica, Madri, 1985. Ciclo de Pilatos, pag 394 ss.

Carta de Públio Lêntulus
Ciclo de Pilatos
Evangelho Segundo Nicodemos
Volusiano