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Equilibrando a cultura e a sombra

Por Robert A. Johnson em:
"Magia Interior - Como dominar o lado sombrio da psique", Mercuryo

 

É útil imaginar a personalidade como um balanço ou uma gangorra. A nossa aculturação consiste em classificar as nossas características dadas por Deus, colocando as aceitáveis do lado direito da gangorra e as não aceitáveis do lado esquerdo. É uma lei inexorável que nenhuma característica possa ser descartada; só pode ser transferida para um ponto diferente da gangorra. Uma pessoa culta é aquela cujas características desejáveis são visíveis do lado direito (o lado correto) e as proibidas ficam ocultas do lado esquerdo. Todas as nossas características devem aparecer em algum lugar nesse inventário. Nada pode ser omitido. (...)

Possuir a própria sombra é alcançar um lugar sagrado — um centro interior — impossível de alcançar de outra maneira. Falhar nisso é falhar com a própria santidade e perder o propósito de vida.

A Índia tem três palavras para descrever esse lugar de santidade: sat, chit, ananda. Sat é a matéria existencial de vida (o lado esquerdo da balança, principalmente); chit é a capacidade ideal (o lado direito da balança, principalmente); ananda é a beatitude, a alegria, o êxtase da iluminação — o centro da gangorra. Quando sat e chit são unidos e suficientemente conscientes, cria-se ananda, a alegria de vida. Isto se obtém quando se possui a própria sombra.

Quando agimos na extrema direita, teremos de equilibrar esse ato, consciente ou inconscientemente, com algum ato do lado esquerdo. Nem precisamos voltar a cabeça para saber que criamos um conteúdo igualmente escuro. É por isso que tantos artistas muitas vezes são pessoas muito difíceis na vida particular. Há, porém, um tipo mais amplo de criatividade que faz das trevas um produto acabado e encontra plenitude na sombra. Essa criatividade é pura genialidade. Seus atributos são plenitude, saúde e santidade. Estamos falando também da santidade no sentido original da palavra — abraçar de todo o coração a nossa própria humanidade, não uma bondade unilateral que não possui nem vitalidade nem vida.

Recentemente um amigo me perguntou por que tantas pessoas criativas passam por tanto sofrimento. Encontramos na história uma profusão de condutas chocantes ou excêntricas dos grandes. A criatividade limitada sempre traz consigo uma sombra limitada, enquanto talentos mais amplos evocam uma porção maior do escuro. Schumann, o compositor, ficou louco; o mundo conhece o lado muito escuro da vida de Picasso; e todos ouvem histórias sobre gênios locais e seus hábitos incomuns. Enquanto aqueles que têm talento maior sofrem mais que os outros, todos nós temos de ter consciência de como usamos a nossa criatividade — e do lado escuro que acompanha os nossos dons. Criar uma obra de arte, dizer algo bondoso, ajudar os outros, enfeitar a casa, proteger a família todos esses atos terão um peso igual do lado oposto da balança e podem nos levar ao pecado. Não podemos recusar a nossa criatividade ou parar de nos expressar dessa maneira; no entanto, podemos ter consciência dessa dinâmica e fazer um gesto pequeno mas consciente de poder compensá-lo.

A Dra. Marie-Louise von Franz e Barbara Hannah, que moravam juntas em Küsnacht, Suíça, costumavam exigir uma da outra que quem tivesse tido uma sorte especialmente grande levasse o lixo para fora durante uma semana. Este é um ato simples, mas poderoso. Simbolicamente falando, elas estavam transformando o lado escuro em algo positivo. O Dr. Jung costumava saudar um amigo com a pergunta: “Você teve algum sucesso terrível ultimamente?”, porque ele também tinha consciência da proximidade entre a luz e as trevas.

Lembro-me de um fim de semana no qual tive de suportar alguns hóspedes muito difíceis que ficaram vários dias a mais do que tinham sido convidados. Exercitei uma paciência e cortesia hercúleas e dei um grande suspiro de alívio quando eles se foram. Achando que havia merecido algo de bom com a minha virtude, fui até a loja de jardinagem comprar alguma coisa bonita para o meu jardim. Sem saber o que estava acontecendo, meti-me numa briga com o atendente e dei um espetáculo deplorável. Como eu não havia apanhado minha sombra de maneira consciente, descarreguei-a naquele pobre estranho. O equilíbrio foi atingido, mas de uma maneira desajeitada e estúpida.

Muitas mulheres ficam sobrecarregadas pagando pelo lado escuro de um homem criativo; muitos homens ficam esgotados ao carregar o lado escuro de uma mulher que é o subproduto de sua criatividade. O pior de tudo é que as crianças muitas vezes são obrigadas a carregar o lado e curo de seus pais criativos. E notório que o filho de um pastor será uma criança difícil e que o filho de um homem rico corre o risco de levar uma vida insignificante.

Além de tudo isso, sofremos por causa das nossas invenções culturais. Estamos vivendo no século mais criativo da História, com milagres da tecnologia, facilidade de viajar e uma nova libertação das labutas da vida. Os pesquisadores avaliam que numa casa de família média, vinte e oito empregados seriam necessários para realizar apenas uma parte do trabalho que é realizado por nossos ajudantes mecânicos. Que era maravilhosa!

 

 Mas sua sombra aparece, inevitavelmente, na forma de tédio e solidão os opostos exatos da sociedade eficiente que fizemos. Em nível global, temos feito a guerra e a contenda política para tornar iguais nossas visões de utopia e de um Corajoso Mundo Novo. A alta criatividade da nossa sociedade moderna só pode ser mantida se reconhecermos a sombra que a acompanha e pagarmos por ela de uma forma inteligente.

Como, então, podemos produzir algo belo ou bom sem provocar a mesma porção de desastre? É possível viver nossos ideais, fazer o melhor que podemos, sermos gentis, ser mos bem sucedidos no trabalho e viver uma decente vida civilizada com a condição de reconhecer ritualmente essa outra dimensão da realidade. O inconsciente não consegue distinguir um ato “real” de um ato simbólico. Isso significa que podemos aspirar à beleza e à bondade — e pagar pelas trevas de uma maneira simbólica, fazendo a compensação do lado esquerdo da balança. O costume bíblico afirma que se conseguirmos atingir isto antes do pôr-do-sol ou pelo menos antes do Sabbath, manteremos a nossa harmonia interior.

Exemplo: se fizer a compensação pela minha sombra depois de ter hóspedes difíceis, não vou descarregá-la em algum estranho que nada tem a ver com isso. Devo honrar a minha sombra, pois é uma parte integrante de mim; mas não preciso empurrá-la sobre outra pessoa. Uma cerimônia de cinco minutos ou um reconhecimento do acúmulo de minha sombra depois que meus hóspedes partiram a teriam deixado satisfeita e salvado meu ambiente das trevas.

Há certos momentos em que a sombra brota na profissão da pessoa. Faço um grande esforço em elaborar a melhor apresentação possível nas minhas palestras e nos meus livros por meio da disciplina e do trabalho árduo. O mundo cultural inteiro desabaria se não mantivéssemos essa disciplina. Mas isso evoca o pior em mim e ativa minha sombra. Mantenho-a oculta da melhor forma possível e quando ocasionalmente este lado se mostra fico terrivelmente perturbado. Contudo, tenho de pagar o preço infernal se deixar a sombra no inconsciente e não tomar nenhuma providência inteligente. Se não revestir esse desequilíbrio rapidamente, logo serei rude com alguém, farei vir à tona um lado extremamente maldoso da minha personalidade ou cairei numa depressão. A sombra reivindicará o que é de direito, seja de forma inteligente ou estúpida.

Será que isso significa que tenho de ser tão destrutivo quanto criativo, tão escuro quanto sou luz? Sim, mas tenho algum controle de como e onde pagarei o preço escuro. Posso realizar uma cerimônia ou um ritual logo depois de ter feito um trabalho criativo e assim reconstruir meu equilíbrio. O melhor é fazê-lo na privacidade, pois não preciso magoar meu ambiente nem alguma pessoa próxima. Posso escrever um conto de trovões e sangue de baixa qualidade (não terei de procurar longe os personagens, pois o outro lado da minha gangorra já foi acionado) ou ativar um pouco a imaginação, o que honrará o lado escuro. Esses atos simbólicos servem para equilibrar minha vida, não causam dano algum e não magoam ninguém. A maior parte das cerimônias religiosas tem o propósito de manter o lado esquerdo da balança funcionando de forma compensatória. (...)

O Dr. Jung salientou que é necessária uma sociedade sofisticada e disciplinada para participar de uma guerra tão comprida e complicada como a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Ele disse que os povos primitivos em poucas semanas teriam se cansado de sua guerra e voltado para casa. Eles não teriam grande acúmulo de sombra, já que vivem vidas mais equilibradas e nunca se aventuram para tão longe do centro como nós. Coube a nós, povo civilizado, levar a arte da guerra ao seu auge. E assim, quanto maior a civilização, tanto mais empenhada ela está na sua própria destruição. Que Deus permita que essa evolução continue com suficiente rapidez para que cada um de nós possa pegar seu lado escuro, combiná-lo com a luz que conquistamos com muito trabalho, e fazer disso tudo algo melhor do que a oposição dos dois. Isso seria a verdadeira santidade.

 

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