EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) DOUTOR(A) JUIZ(A) DA VARA FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DO ESTADO DE GOIÁS - Veja também ação do estado de Minas Gerais

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pela Procuradora da República signatária, no uso de suas atribuições legais e constitucionais, vem, com fundamento no art. 129, III, da Constituição Federal e nas Leis nºs 7.347/85 e 8.078/90, ajuizar a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA

em face da

I- UNIÃO FEDERAL, na pessoa do Dr. Roberto Rodrigues de Oliveira, Procurador Chefe da Procuradoria da União em Goiás, situada na Rua 82, nº 179, Setor Sul, Goiânia-GO;

II- AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA (ANEEL), na pessoa do seu Diretor-Geral Dr. José Mário Miranda Abdo, com endereço na SGAN 603 Módulo J, Brasília-DF, CEP 70830-030;

III- CENTRAIS ELÉTRICAS DO ESTADO DE GOIÁS (CELG), com sede na Avenida Anhangüera, nº 5.105, Setor Oeste, Goiânia-Go, representada pelo seu Diretor-Presidente JOSÉ WALTER VAZQUEZ; e

IV - COMPANHIA HIDRELÉTRICA VALE DO SÃO PATRÍCIO (CHESP), com sede na Avenida Presidente Vargas, nº 618, Ceres-GO, CEP: 76.300-000, representada pelo seu Presidente RICARDO DE PINA MARTIN,

pelas razões de fato e de direito a seguir expostas:

 

I - DOS FATOS

No início do mês de maio de 2001, a população brasileira foi surpreendida com a notícia de que a carência da produção energética no país alcançara proporções tais que, já a partir do mês de junho, far-se-ia necessária a adoção de racionamento de energia.

Perdidos meses preciosos nas negativas, o Governo Federal foi atropelado pela realidade inevitável e na última hora divulgou um plano para economizar energia que previa a cobrança de multa para os consumidores que não reduzissem seu consumo energético mensal em 21%, transferindo ao consumidor a responsabilidade pela sua ineficiência.

Cresceram as declarações governamentais acerca da inevitabilidade dos apagões programados, e todas as suas conseqüências deletérias, aos quais só poderiam ser evitadas transferindo-se coercitivamente o ônus para o consumidor.

No dia 22 de maio de 2001, o Comitê criado pela citada Medida Provisória, estabeleceu, por meio de Resolução (Resolução nº 04), a chamada sobretarifa (artigo 4º) e ainda o corte do fornecimento aos consumidores residenciais (art. 3º, § 2º).

Após todos os embates judiciais travados em torno dessa questão, em que pese a patente ofensa aos princípios da dignidade humana, da continuidade do serviço público, do devido processo legal, da eficiência, da isonomia, da razoabilidade, do desvio de finalidade e do caráter confiscatório das medidas, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC nº 09-DF, considerou constitucional a MP nº 2.152-2, de 1º de junho de 2001, caindo por terra todas as ações judiciais que questionavam sua aplicabilidade.

Agora vem, novamente, o Governo Federal, patrocinando o interesse das concessionárias de energia elétrica, por meio da MP nº 14, de 21 de dezembro de 2001, regulamentada pela Resolução nº 71, de 7 de fevereiro de 2002, da ANEEL, onerar os consumidores residenciais, rurais e comerciais com o aumento das tarifas sob a forma camuflada de "encargos emergenciais", transferindo, aleatoriamente, os ônus concernentes à omissão dos investimentos no sistema energético brasileiro à própria população, isentando as grandes corporações de tal mister.

 

Dispõem os arts. 1º, 2º e 4º da MP nº 14, de 21/12/2001, verbis:

"Art 1º. Os custos, inclusive de natureza operacional, tributária e administrativa, relativos à aquisição de energia elétrica e à contratação de capacidade de geração ou potência pela Comercializadora Brasileira de Energia Emergencial – CBEE serão rateados entre todas as classes de consumidores finais tendidas pelo Sistema Elétrico Nacional Interligado, proporcionalmente o consumo individual verificado, mediante adicional tarifário específico, segundo regulamentação a ser estabelecida pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL."

"Art. 2º. Parcela das despesas com a compra de energia no âmbito do MAE, realizadas até dezembro de 2002, decorrentes da redução da geração de energia elétrica nas usinas participantes do mecanismo de realocação de energia e consideradas nos denominados contratos iniciais e equivalentes, serão repassadas aos consumidores atendidos pelo Sistema Elétrico Interligado Nacional, na forma estabelecida por resolução da GCE ou, extinta esta, pela ANEEL."

"Art. 4º. A ANEEL procederá à recomposição tarifária extraordinária prevista no art. 28 da MP 2.198-5, de 24 de agosto de 2001, sem prejuízo do reajuste tarifário anual previsto nos contratos de concessão de serviços públicos de distribuição de energia elétrica.

§1º. A recomposição tarifária extraordinária de que trata o caput será implementada por meio de aplicação às tarifas de fornecimento de energia elétrica dos seguintes índices:

I – 2,9% para os consumidores integrantes das Classes Residencial e Rural; e

II – 7,9% para os demais consumidores." (destacamos)

Regulamentando a MP nº 14/2001, a Resolução nº 71, de 7/2/2002, estabelece:

"Art. 2º. O rateio de que trata o art. 1º será feito mediante encargo tarifário definido e processado na forma deste artigo e denominado de "encargo de capacidade emergencial".

§1º. O encargo tarifário previsto no caput será estabelecido pela ANEEL, em R$/kWh, com base no custo associado à contratação de capacidade de geração ou potência previsto pela CBEE para o ano e no consumo realizado de energia elétrica, no ano anterior, pelo consumidor final atendido pelo Sistema Elétrico Interligado Nacional, excetuada a classe residencial classificada como de baixa renda.

§2º. O valor correspondente ao encargo tarifário a ser despendido em função do consumo individual verificado, referente ao rateio de que trata o caput do art. 1º deverá ser individualizado e identificado na fatura de energia elétrica do consumidor, sob o título de "encargo de capacidade emergencial".

§3º. O encargo tarifário a ser cobrado do consumidor, a título de "encargo de capacidade emergencial", para o ano de 2002, a vigorar a partir do mês de março, será de R$ 0,0049/kWh.

§4º. O valor do encargo tarifário referido no §3º será revisado e publicado pela ANEEL ao fim de cada trimestre."

"Art. 3º. Os custos, inclusive de natureza operacional, tributária e administrativa, incorridos pela Comercilizadora Brasileira de Energia Emergencial – CBEE, na aquisição de energia elétrica contratada serão rateados entre os consumidores finais de energia elétrica atendidos pelo Sistema Elétrico Interligado Nacional, de forma proporcional ao consumo individual verificado.

Parágrafo único. O rateio de que trata o caput não se aplica:

 

Aos consumidores da classe residencial classificados domo de baixa renda; e

 

Aos consumidores das classes residencial B1 e B2 com consumo mensal abaixo de 350 Kwh/mês."

"Art. 4º. O rateio de que trata o art. 3º será feito mediante encargo tarifário definido e processado na forma deste artigo e denominado de "encargo de aquisição de energia elétrica emergencial".

§ 1º. O encargo tarifário previsto no caput será estabelecido, para cada mês, pela ANEEL, em R$/Kwh, com base no custo projetado de aquisição de energia elétrica emergencial para aquele mês e no consumo projetado de energia elétrica, no mesmo período, para o consumidor final atendido pelo Sistema Elétrico Interligado Nacional, excluídos os consumidores referidos no parágrafo único do art. 3º.

§ 2º. O valor correspondente ao encargo tarifário a ser despendido em função do consumo individual verificado, referente ao rateio de que trata o caput do art. 3º deverá ser individualizado e identificado na fatura de energia elétrica do consumidor, sob o título de "encargo de aquisição de energia elétrica emergencial."

§ 3º. O valor do encargo tarifário referido no § 1º será revisado e publicado pela ANEEL, ao final de cada mês, para vigorar no mês seguinte.

§ 4º. Para permitir o cálculo do encargo tarifário de que trata o § 1º, ficam estabelecidas as seguintes condições:

 

o Operador Nacional do Sistema – ONS deverá informar, até o dia 15 do mês anterior, a previsão do montante de energia elétrica emergencial necessária para o mês seguinte;

 

a CBEE deverá informar, até o dia 20 do mês anterior, a previsão do custo a ser incorrido na aquisição de energia elétrica para o mês seguinte, bem como o valor arrecadado do consumidor e título de "encargo de aquisição de energia elétrica emergencial" no mês anterior; e

 

a concessionária de distribuição de energia elétrica deverá informar mensalmente à ANEEL o consumo previsto para o mês seguinte no âmbito do Sistema Elétrico Interligado Nacional, relativo ao mercado de energia elétrica a ser atendido, excluídos os consumidores referidos no parágrafo único do art. 3º.

§ 5º. No cálculo do encargo tarifário para o mês será considerada eventual diferença a compensar ocorrida no mês anterior, desde que devidamente comprovada pela CBEE."

"Art. 5º. Os encargos tarifários de que tratam os artigos 2º e 4º vigorarão até 30 de junho de 2006, data estabelecida na MP nº 2.209, de 29 de agosto de 2001, para o encerramento das atividades da CBEE.

Parágrafo único. No cálculo dos encargos tarifários de que tratam os artigos 2º e 4º, serão deduzidos dos custos incorridos pela CBEE, os resultados financeiros obtidos pela empresa, conforme disposto no § 3º do art. 1º da MP nº 14, de 21 de dezembro de 2001."

"Art. 7º. O custo relativo à parcela prevista no caput do art. 2º da Medida Provisória nº 14, de 21 de dezembro de 2001, de despesa com a compra de energia elétrica no âmbito do MAE realizada pelas distribuidoras e decorrente da redução da geração de energia elétrica nas usinas participantes do Mecanismo de Realocação de Energia – MRE, denominada de energia livre, será rateado pelos consumidores finais de energia elétrica atendidos pelo Sistema Elétrico Interligado Nacional, de forma proporcional ao consumo individual verificado.

Parágrafo único. O rateio de que trata o caput não se aplica:

I – aos consumidores da classe residencial classificados como de baixa renda; e

II – aos consumidores das classes residencial B1 e rural B2 com consumo mensal abaixo de 350 kWh/mês."

"Art. 8º. O rateio de que trata o art. 7º será feito mediante encargo tarifário definido e processado na forma deste artigo e denominado "encargo de energia livre adquirida no MAE".

§1º O valor do encargo tarifário será calculado com base no montante de energia elétrica adquirida a título de energia livre, nos termos do art. 7º, e valorado pela diferença positiva entre o preço do MAE, Pmae, e o valor de R$ 0,04926/kWh." (destacamos)

 

O encargo de capacidade emergencial (art. 2º da Resolução nº 71/2002) destina-se a ratear os custos com a contratação de capacidade de geração e potência. O valor de tal encargo será estabelecido pela ANEEL, em R$/KWh, excluindo da tarifação extra somente os consumidores de baixa renda. Ressalte-se que, no ano de 2002, já foi estabelecido pela ANEEL o valor do encargo, o qual, a partir do corrente mês de março, será de R$ 0,0049/KWh e vigorará até 30 de junho de 2006 (art. 5º).

O encargo de aquisição de energia elétrica emergencial (art. 4o da Res. nº 71/2002) , por sua vez, ressalvados os consumidores de baixa renda e aqueles denominados consumidores de classe residencial B1 e rural B2 que possuam um consumo mensal menor do que 350KW/h, será rateado pelos consumidores de energia elétrica, conforme valor estipulado mês a mês pela ANEEL, e terá por finalidade custear a aquisição de energia elétrica contratada, e também vigorará até 30 de junho de 2006 (art. 5º).

O encargo de energia livre adquirida no MAE (art. 8o da Res. nº 71/2002), por seu turno, será fixado pela diferença positiva entre o preço do MAE e o valor de R$ 0,04926/ KWh e vigorará entre o término do Programa Emergencial de Redução do Consumo de Energia Elétrica, em cada submercado, e 31 de dezembro de 2002 (art. 9o. da Res. nº 71/2002).

Assim, 03 (três) são os encargos cobrados pelas concessionárias de energia elétrica, com o aval do Governo Federal, veementemente repudiados pelos consumidores: o encargo de capacidade emergencial (também denominado de seguro apagão), o encargo de aquisição de energia elétrica emergencial e o encargo de energia livre adquirida do Mercado Atacadista de Energia.

De se ressaltar que referidos reajustes dar-se-ão sem prejuízo do reajuste tarifário anual previsto nos contratos de concessão de serviço público de distribuição de energia elétrica (art. 4º da MP nº 14/2001).

Em 01/04/2002, matéria publicada no periódico "O Popular" (exemplar em anexo) alertou os consumidores para a ilegalidade dos aumentos em questão. Na matéria intitulada "Seguro contra apagão é questionável", demonstra-se claramente o engodo armado pelo governo federal que, pressionado pelas concessionárias do ramo elétrico, autorizou os mencionados aumentos, mais uma vez jogando para a população a responsabilidade pelos desmandos com a coisa pública. Como bem lembrado pelo advogado Sidney Stahl, "não há o mínimo sentido de haver um investimento do contribuinte na iniciativa privada. Vale lembrar que, embora as hidrelétricas sejam públicas, a distribuição da energia elétrica é feita por empresas privadas que detêm a concessão do serviço. Estamos falando de investimento em setores que hoje são privatizados. Quando uma empresa tem problemas financeiros, ela vai buscar ajuda num banco, vai buscar dinheiro em outros lugares, mas não vai fazer uma vaquinha pública para resolver a situação."

Sem sombra de dúvidas o que se verifica é o interesse estatal em recompor as margens de lucro das concessionárias, que alegam ter sofrido grandes prejuízos com a diminuição do consumo energético durante o segundo semestre do ano de 2001, período em que toda a população brasileira foi obrigada, sob pena de sofrer cortes no fornecimento de energia, ou pesadas sobretarifas, a poupar o seu consumo.

Com a Resolução nº 71/2002, mais uma vez, os custos da crise energética, gerada pela omissão do próprio governo, serão revertidos ao consumidor, através de abusivas medidas que violam flagrantemente o nosso ordenamento jurídico.

Busca o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, via ação civil pública, a proteção de toda uma gama de lesados, na qualidade de consumidores de energia elétrica. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de se afigurar legítima a atuação do Parquet para a propositura de ação civil pública/ação coletiva, no interesse da proteção de direitos difusos e individuais homogêneos. No Resp nº 57.465-0/PR, o eminente Ministro Demócrito Reinaldo assim se pronunciou, verbis:

"É certo, todavia, que o art. 21 da Lei nº 7.347/85, introduzido pelo art. 117 do CDC, inclui, como passíveis de proteção através da ação civil pública ‘os interesses ou direitos individuais homogêneos’. Não é menos certo, entretanto, numa interpretação sistemática da legislação supracitada, que ‘os interesses e direitos individuais homogêneos’ somente hão de ser tutelados pela via da ação coletiva quando os seus titulares sofrerem danos na condição de consumidores...".

Assim, seguem os fundamentos de Direito.

 

II – DO DIREITO

 

II.1 - DA RELAÇÃO DE CONSUMO

É indiscutível que a ação civil pública ora ventilada versa sobre uma relação de consumo entre a coletividade de usuários do serviço público de energia elétrica e seus respectivos fornecedores (concessionárias), agraciadas com as benesses estatais ora questionadas.

De fato, há inafastável incidência do Código de Proteção ao Consumidor. O art. 3º do referido Diploma Legal define o conceito de fornecedor de modo a abranger, expressamente, os serviços prestados pelas rés. In verbis:

"Art. 3º – Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. (...) § 2º - Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista." (destacamos)

Por sua vez, os contratantes do serviço de prestação de energia elétrica enquadram-se na definição de consumidor, conforme prescreve o art. 2º da Lei de proteção ao consumidor.

Sendo pólo e contrapólo das relações litigiosas consumidores e fornecedores, respectivamente, plenamente aplicável ao caso o Código de Defesa do Consumidor.

Observa-se no procedimento das rés uma conduta reprovável sob todos os aspectos e incompatível com os princípios norteadores das relações de consumo. Em especial, foram violados os princípios da boa-fé, da transparência, do respeito à dignidade do consumidor e da proteção de seus interesses econômicos.

Neste sentido, há que se transcrever a incomparável lição de Celso Antônio Bandeira de Melo, sobre o status e a importância dos princípios de um ordenamento jurídico:

"Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra". (Elementos de direito administrativo, Revista dos Tribunais: São Paulo, 1984, p. 230).

A esse respeito, a eminente jurista Cláudia Lima Marques asseverou, com propriedade, que, seguindo a inteligência das nominadas leis intervencionistas, o CDC fixou parâmetros mínimos de boa-fé e transparência nas relações de consumo, dos quais o julgador não poderá prescindir de considerar na apreciação do caso concreto.

"Na formação dos contratos entre consumidores e fornecedores o novo princípio básico norteador é aquele instituído pelo art. 4º, caput, do CDC, o da Transparência. A idéia central é possibilitar uma aproximação e uma relação contratual mais sincera e menos danosa entre consumidor e fornecedor. Transparência significa informação clara e correta sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré-contratual, isto é, na fase negocial dos contratos de consumo." (Contratos no Código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 1992, p. 104/105) (destacamos).

Diga-se isto a fim de se afastar eventuais objeções de que se pretende discutir matéria tributária nesta Ação Civil Pública, que não cuida de tributos, mas sim da defesa da dignidade humana, do direito do consumidor a não ter que arcar, de modo direto, com o aumento do faturamento das empresas concessionárias, às custas da inércia e da submissão estatal que, ao invés de se utilizar dos recursos disponíveis em caixa de forma criteriosa e planejada, evitando e cortando gastos desnecessários, prefere incluir na fatura mensal do já combalido consumidor o resultado de seus desmandos.

Só por argumentar, abordando matéria de fundo, ao dar a denominação "encargo tarifário", nada mais fez a ANEEL do que, inutilmente, tentar disfarçar a natureza tributária dos três novos encargos. Realmente, ao afirmar serem as novas exações "encargos tarifários’, quis a ANEEL caracterizá-las como um preço público, instituto que, indubitavelmente, não se aplica às três novas exações, eis que sujeitas a regime jurídico incompatível com o mesmo.

Deste conceito, extraem-se as seguintes características do preço público: a) é uma prestação; b) pecuniária; c) decorrente da livre manifestação da vontade do comprador/usuário; d) exigida pelo Estado ou entidade ligada ao Poder Público; e) em contraprestação pela aquisição de um bem material ou imaterial (serviços).

De fato, os encargos criados pela Resolução nº 71/2002 interferiram, de maneira inexorável, na relação concessionária/usuário. O consumidor não anuiu no pagamento dos encargos adicionais, os quais, como adiante será demonstrado, em nada se relacionam com a energia adquirida por aquele. Muito pelo contrário, foi compelido, sob as penas da lei, a adimplir com as novas obrigações.

Um dos fatores que diferenciam o preço público do tributo é, assim, o caráter facultativo do primeiro e o caráter obrigatório do segundo, tendo o preço público a origem no contrato, enquanto que a obrigação de pagar o tributo nasce da lei.

 

Ora, se o preço público tem natureza contraprestacional, no sentido de que o consumidor paga por aquilo que efetivamente adquiriu, como se conceber hipótese em que o consumidor é isento? Ou o consumidor usufruiu do serviço e, pois, deve pagar o preço por aquilo que efetivamente usou, ou não utilizou do serviço e, assim, não deve pagar nada, a menos que se negue o caráter contraprestacional do preço público, o que seria um absurdo!

 

A existência de isenção serve para realizar o princípio da capacidade contributiva (CF/88, art. 145, §1º), o que denuncia a natureza tributária dos novos encargos.

 

Destarte, afigura-se nítida a natureza tributária dos encargos instituídos pela Medida Provisória nº 14/2001 e pela Resolução nº 71/2002, o que fere o art. 146 da Magna Carta, por não se tratar de Lei Complementar, motivo pelo qual tais normas devem ser declaradas inconstitucionais, na modalidade incidental.

Nesse caso, impõe-se que as concessionárias assumam os riscos de sua atividade econômica, notadamente quando resta incontroversa a inaplicabilidade da teoria da imprevisão para motivar o reajuste extraordinário ora atacado. A lição precisa do jurista Celso Antônio Bandeira de Mello merece ser transcrita:

"Diante disso, cabe indagar quais os riscos que, em nosso sistema, o concessionário efetivamente tem de assumir, por não se encontrarem ao abrigo da garantia do equilíbio econômico-financeiro.

Os riscos que o concessionário deve suportar sozinho abrangem, além dos prejuízos que lhe resultem por atuar canhestramente, com ineficiência ou imperícia, aqueloutros derivados de eventual estimativa inexata quanto à captação ou manutenção da clientela de possíveis usuários, bem como, no caso de fontes alternativas de receita, as que advenham de uma frustrada expectativa no que concerne aos proveitos extraíveis de tais negócios. É dizer: não lhe caberia alimentar a pretensão de eximir-se aos riscos que todo empresário corre ao arrojar-se em empreendimentos econômicos, pois seu amparo não pode ir além do resguardo, já de si peculiar, conferido pelas proteções anteriormente mencionadas e cuja existência só é justificável por estar em causa vínculo no qual se substancia um interesse público." (in Curso de Direiro Administrativo, p. 532).

Vale destacar que, dentre os fatores que integram a constituição do preço da tarifa, enquadra-se o relativo aos investimentos a serem realizados no setor, a fim de se garantir a continuidade do serviço.

Entretanto, embora tenha o consumidor, ao longo dos anos, contribuído com o pagamento dos valores relativos àqueles indispensáveis investimentos, estes jamais foram realizados. Ora, se a parcela tarifária destinada a este fim não foi adequadamente utilizada, onde se encontram tais recursos? Penalizar o consumidor pela desídia no gerenciamento dos recursos públicos sempre foi a solução mais fácil encontrada pelos governantes.

 

II.2. DA AFRONTA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Dispõe a Constituição Federal que é incumbência do Poder Público a prestação de serviços públicos, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, e que é obrigação do Poder Público "manter serviço adequado" (art. 175).

E em seu art. 170 denota-se como um dos princípios fundamentais da atividade econômica a livre iniciativa, o que significa que a atividade econômica compreende a assunção de riscos (art.170, IV, CF/88).

Enfatiza a Lei nº 8.987 de 1995 ao dispor acerca dos serviços de energia elétrica, sobre o fortalecimento do papel regulador do Estado e o respeito aos direitos dos usuários.

"Art. 1º. As concessões de serviços públicos e de obras públicas e as permissões de serviços públicos reger-se-ão pelos termos do art. 175 da Constituição Federal, por esta Lei, pelas cláusulas legais pertinentes e pelas cláusulas dos indispensáveis contratos."

"Art. 6º. Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

§1º . O serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.

§2º. A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço."

"Art. 7º - Sem prejuízo do disposto na Lei nº 8.078/90, são direitos e obrigações dos usuários:

 

receber serviço adequado;

 

receber do poder concedente e da concessionária informações para a defesa de interesses individuais ou coletivos." (destacamos)

Da análise destes dispositivos, infere-se o seguinte: a) o respeito aos direitos dos consumidores é o pressuposto da atividade estatal na regulamentação e na prestação dos serviços de energia elétrica prestados pelas concessionárias; b) incorporou a lei os princípios constitucionais implícitos da proporcionalidade e da razoabilidade, bem como o da moralidade. A atividade estatal deve, portanto, adequar-se aos fins previstos na Constituição, conjugando-se com o equilíbrio e o afastamento de soluções que, conquanto administrativamente viáveis, provoquem custos excessivos para os demais valores constitucionais, especialmente os diretamente relacionados aos direitos fundamentais e à dignidade humana.

 

II.2. DA DIGNIDADE HUMANA

Trata-se, antes de tudo, de defender a Dignidade Humana, princípio assegurado no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988.

Conforme este princípio, o ser humano não pode ser convertido em objeto de outro, muito menos do Estado, seja qual for o pretexto.

Na lição autorizada de Ingo Wolfgang Sarlet:

"Com o reconhecimento expresso, no título dos princípios fundamentais, da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado democrático (e social) de Direito (art. 1º, inc. III, da CF), o Constituinte de 1987/88, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu expressamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal. (...) O ser humano é dotado de um valor próprio que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em mero objeto ou instrumento. ... todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade.(...)Uma outra dimensão intimamente associada ao valor da dignidade da pessoa humana consiste na garantia de condições justas e adequadas de vida para o indivíduo e sua família, contexto no qual assumem relevo de modo especial os direitos sociais ao trabalho, a um sistema efetivo de seguridade social, em última análise, à proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material e à asseguração de uma existência com dignidade.O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas, onde sua igualdade relativamente aos demais não for garantida, bem como onde não houver limitação de poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças. A concepção do homem objeto, como visto, constitui justamente a antítese da noção da dignidade da pessoa humana. (A Eficácia dos direitos fundamentais, 1998, pag. 107/108,grifo do MPF) (destacamos)

A dignidade humana informa a interpretação das normas que já asseguram a continuidade do serviço público essencial para a caracterização da existência digna e reveste-se da função de defesa contra a violência estatal representada pelos aumentos abusivos nas tarifas públicas, inclusive no que diz respeito à proibição do retrocesso, no impedimento ao legislador, normal ou provisório, de abolir as posições jurídicas por ele já criadas.

É preciso pois, reintroduzir o homem, o consumidor do serviço público, no centro das propostas, perceber que a atuação estatal, por mais grave que seja a crise, tem limites, a fim de afastar as amarras políticas que impedem a adoção de soluções que dispensem a violência contra o cidadão, que preservem a dignidade humana e, pois, os direitos humanos.

 

II.3. DAS VIOLAÇÕES DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

A Lei nº 9.478/97 dispõe sobre a política energética nacional e institui o Conselho Nacional de Política Energética, dentre outras providências. Em seu artigo 1º, inciso III, em compasso com o Código de Defesa do Consumidor, assevera:

"Art. 1º. As políticas nacionais para o aproveitamento racional das fontes de energia visarão aos seguintes objetivos:

 

proteger os interesses do consumidor quanto ao preço, qualidade e oferta dos produtos;

Por sua vez, o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 22, dispõe que "os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos". E seu parágrafo único estabelece que "nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código".

Comentando tal dispositivo consumeirista, Antônio Herman Benjamin, um dos co-autores do Anteprojeto do CDC, assim aduziu:

"Cria-se para o consumidor um direito à continuidade do serviço. Tratando-se de serviço essencial e não estando ele sendo prestado, o consumidor pode postular em juízo que se condene a Administração a fornecê-lo" (in Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, Saraiva, 1991, p. 110) (destacamos)

No mesmo diapasão, esclarece o preclaro Celso Antônio Bandeira de Mello,

"Os usuários, atendidas as condições relativas à prestação do serviço e dentro das possibilidades normais dele, têm direito ao serviço e, inclusive, o de escolhê-lo dentre o de distintos prestadores, quando for o caso (art. 7º, III). O concessionário não lhes poderá negar ou interromper a prestação, salvo, é claro, nas hipóteses previstas nas próprias cláusulas regulamentares. Cumpridas pelo usuário as exigências estatuídas, o concessionário está constituído na obrigação de oferecer o serviço de modo contínuo e regular" (Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 1999, pag. 533) (destacamos)

A concessionária de serviços públicos, pois, tem o dever de manter a prestação do serviço, até porque sua responsabilidade, tal como a do próprio Estado, é objetiva (art. 37, § 6º, da Constituição Federal), dependente apenas da prova do nexo de causalidade e do dano sofrido. Pouco importam, para consideração dessa responsabilidade, a ocorrência de força maior ou caso fortuito.

Também expressamente cabível ao caso em apreço o que determinam os arts. 6º e 39 do Código Consumeirista, verbis:

"Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:

X – a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral."

"Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:

V- exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;" (destacamos)

Conclui-se que tais dispositivos devem ser interpretados conjuntamente, por se tratar de um sistema único, disciplinador dos direitos do consumidor. À eficácia na prestação dos serviços públicos deve corresponder a justa remuneração devida ao prestador. Nem o mais, nem o menos, evitando-se, assim, o desequilíbrio entre as partes.

Não é o que se observa da conduta dos requeridos. Os aumentos tarifários promovidos pelas normas retrocitadas enquadram-se como abusivos e excessivos, porquanto pautados em índices de reajustes esdrúxulos e estapafúrdios, ensejando latente desequilíbrio entre as partes. O consumidor, maior prejudicado, é obrigado a suportar todo o ônus, enquanto as concessionárias aumentam seus lucros. A ótica da política de reajustes volta-se para interesses particulares, os quais suplantam os padrões mínimos de razoabilidade, plausibilidade e moralidade, tal o seu excesso. Esquecem-se os réus que o serviço de energia elétrica é essencial, devendo seu acesso ser garantido de forma ininterrupta a todos, vedado ao fornecedor, dentre outras práticas abusivas, elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços (art. 39, inciso X, do CDC).

Na seara jurisprudencial, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, apreciando a questão do corte do fornecimento de energia pelo não pagamento da conta, comunga do entendimento de que:

"a energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção" (ROMS 8915/MA, Relator Ministro José Delgado, DJU 17.08.1998, pág. 23)

 

Esta inteligência foi reafirmada recentemente no RESP nº 279.502, Relator Min. Francisco Falcão, DJU 30/03/2001, pág. 252. No tocante ao fornecimento de água (antes que essa idéia também surja aos nossos luminosos administradores), destaque-se o RESP nº 201.112-SC, Relator o Ministro Garcia Vieira.

A importância desses pronunciamentos judiciais leva-nos a transcrever suas ementas:

DJU 30/03/2001 - PÁG. 252 RECURSO ESPECIAL Nº 279.502 - SANTA CATARINA (2000/0097801-9) RELATOR: MIN. FRANCISCO FALCÃO

Esta Corte vem reconhecendo ao consumidor o direito da utilização dos serviços públicos essenciais ao seu convívio diário, como o fornecimento de água, saneamento e luz.

A falta do recorrido, consistente no débito com a Companhia elétrica, não deve ser desprezada, sob pena de enriquecimento ilícito repudiado pelo ordenamento jurídico.

Entretanto, o corte de energia, utilizado pela Companhia para obrigar o usuário ao pagamento de tarifa, extrapola os limites da legalidade, existindo outros meios para buscar o adimplemento do débito. (...) Tais razões expendidas, com esteio no art. 557, caput, do CPC, NEGO seguimento ao recurso." (destacamos)

 

O mesmo entendimento é visto em dois outros arestos, também do E. Superior Tribunal de Justiça:

 

"SERVIÇO PÚBLICO. ENERGIA ELÉTRICA. CORTE NO FORNECIMENTO. ILICITUDE.

 

É viável, no processo de ação indenizatória, afirmar-se, incidentemente, a ineficácia de confissão de dívida, à mingua de justa causa.

 

É defeso à concessionária de energia elétrica interromper o suprimento de força, no escopo de compelir o consumidor ao pagamento de tarifa em atraso. O exercício arbitrário das próprias razões não pode substituir a ação de cobrança. (Resp 223.778/RJ, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, DJU 13.03.2000, pág. 143)

 

"ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENERGIA ELÉTRICA. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DE TARIFA. CORTE. IMPOSSIBILIDADE.

 

É condenável o ato praticado pelo usuário que desvia energia elétrica, sujeitando-se a até a responder penalmente.

 

Essa violação, contudo, não resulta em reconhecer como legítimo ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia e consistente na interrupção do fornecimento da mesma.

 

A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção.

 

Os arts. 22 e 42, do Código de Defesa do Consumidor, aplicam-se às empresas concessionárias de serviço público.

 

O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade.

 

Não há de ser prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios constitucionais de inocência presumida e da ampla defesa.

 

O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza.

 

Recurso improvido". (ROMS 8915/MA, Relator Ministro José Delgado, DJU 17.08.1998, pág. 23) (destacamos)

 

Por fim, cabe transcrever o já citado acórdão relatado pelo Exmo. Min.Garcia Vieira, que assim firmou:

 

"RECURSO ESPECIAL Nº 201.112 - SANTA CATARINA (99/0004398-7) RELATOR : MIN. GARCIA VIEIRA EMENTA

FORNECIMENTO DE ÁGUA - SUSPENSÃO - INADIMPLÊNCIA DO USUÁRIO - ATO REPROVÁVEL, DESUMANO E ILEGAL - EXPOSIÇÃO AO RIDÍCULO E AO CONSTRANGIMENTO.

A Companhia Catarinense de Água e Saneamento negou-se a parcelar o débito do usuário e cortou-lhe o fornecimento de água, cometendo ato reprovável, desumano e ilegal. Ela é obrigada a fornecer água à população de maneira adequada, eficiente, segura e contínua, não expondo o consumidor ao ridículo e ao constrangimento. Recurso improvido. MINISTRO GARCIA VIEIRA. Relator

"...O corte de energia como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade.

Não há de se prestigiar atuação da Justiça no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa.

O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem dele se utiliza".

Com razão o v. aresto hostilizado (fls. 142) ao decidir que: "O fornecimento de água, por se tratar de serviço público fundamental, essencial e vital ao ser humano não pode ser suspenso pelo atraso no pagamento das respectivas tarifas, já que o Poder Público dispõe dos meios cabíveis para a cobrança dos débitos dos usuários. Ademais, se os serviços públicos são prestados em prol de toda a coletividade, é medida ilegal sua negação a um consumidor, tão somente, pelo atraso no seu pagamento." Nego provimento ao recurso." (destacamos)

 

II.4. DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO FINANCEIRO DO CONTRATO

É curial que o contrato de concessão de serviços públicos envolve a execução deste pelo concessionário, pela qual recebe uma contrapartida do usuário – a tarifa.

A tarifa, fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação (art. 9º da Lei nº 8.987/95), decorre da prestação do serviço público e é definida como preço público, estando sujeita a variações conforme os aumentos autorizados pelo ente concedente, ou regulador, mas sempre sendo revertida ao concessionário como compensação justa e correspondente aos serviços prestados e ao custo de sua prestação.

Na magistral definição de José Cretella Júnior,

"Trata-se, aqui, das quantias entregues pelos particulares que se utilizam dos serviços públicos às empresas concessionárias que os distribuem" (Dicionário de Direito Administrativo, Forense, 1978, Verbete Tarifa, pags. 503/504)

Uma das possibilidades é a de que a tarifa varie conforme o uso do serviço. São as tarifas diferenciadas, "em função das características técnicas e dos custos específicos provenientes do atendimento aos distintos segmentos de usuários" (art. 13 da Lei nº 8.987/95).

Outra possibilidade, também ditada por razões de interesse público, é a de que o poder público mantenha a tarifa abaixo do patamar requerido para a justa compensação do prestador do serviço.

Nesse caso, no entanto, deverá recompor o equilíbrio econômico e financeiro do contrato, oferecendo subsídios, isenções, favorecer novas fontes de renda alternativa ou outros incentivos ao concessionário (da forma como ocorre, por exemplo, com o transporte coletivo urbano na cidade de Goiânia).

Poderá a Administração, igualmente, com autorização legal e contratual, dispor a tarifa de forma a subsidiar categorias mais baixas da população, criando tarifas sociais (de baixa renda) ou isenções tarifárias, compensando-se o concessionário com o cobrado das categorias superiores, o que está de acordo com o princípio da igualdade material.

É permitido, pois, à Administração fixar a tarifa em valor inferior ao devido para a compensação do concessionário. Mas o conjunto tarifário, o pagamento ao concessionário, não deverá ser superior ao necessário para a manutenção do equilíbrio econômico e financeiro inicialmente formado, sob pena de locupletamento ilícito e violação às exigências de modicidade tarifária, dentre outras.

Como se verifica, o valor tarifário não necessita corresponder idealmente à fração ideal do serviço recebido pelo usuário, mas sim, corresponder ao equilíbrio econômico da concessão, que é a moldura onde deve se enquadrar qualquer valor que se considere tarifário.

Em qualquer hipótese, tarifa é unicamente aquilo que se paga ao concessionário.

Não é possível destinar os valores ou sobrevalores denominados de tarifários para quaisquer outras finalidades que não estejam previstas originariamente no contrato de concessão e não digam respeito ao equilíbrio econômico e financeiro do contrato como, por exemplo, redução do deficit fiscal da administração, exercício do poder de polícia (fiscalização) e novos investimentos em geração de energia.

Há de haver, assim, uma necessária correlação entre o que o usuário paga e a remuneração do concessionário, sob pena de não se cuidar de tarifa, mas de multa disfarçada, ocorrendo verdadeiro desvio de finalidade.

Nesse sentido, afirma, por seu turno, Diógenes Gasparini, citando Celso Antônio Bandeira de Mello:

"No Estado de Direito, já se vê, nenhum desses poderes (da administração) é incondicionado. Nem mesmo se poderia dizer que existem sempre. Com efeito, o caráter instrumental das prerrogativas da administração desde logo lhes desenha teoricamente o perfil. Sejam quais forem os meios jurídicos especiais que ataviam o desempenho da função administrativa, nenhum existe como favor concedido à própria administração. Em verdade, são favores concedidos aos interesses públicos: à função desempenhada e não ao sujeito que a desempenha. Eis porque unicamente persistem quando relacionadas com a proteção deles". Destarte, o uso do poder só se legitima quando normal, isto é, quando aplicado para a consecução de interesses públicos e na medida em que for necessário para satisfazer tais interesses (...)"Ainda há desvio de finalidade quando a autoridade administrativa vale-se de um dado instrumental jurídico destinado por lei a alcançar um certo fim para obter outro, ainda que de interesse público. É o que aconteceria se determinada a troca semestral da cédula de identidade, cuja finalidade diz respeito à segurança pública, mediante o pagamento de certa taxa visando aumentar a receita pública, ou quando se institui a zona azul, cuja finalidade é a ordenação do tráfego e do trânsito, também com o fito de aumentar a arrecadação pública, ou, ainda, quando o agente público se vale de desapropriação para recuperar bens litigiosos, conforme já decidiu o STF".(RDA, 114:258) (...)No desvio de finalidade o ato é ilegal por inteiro. Não há como aproveitá-lo. É ato nulo e, como tal, é assim entendido pela doutrina e pela jurisprudência.(Direito Administrativo, 1992 Saraiva, pgs. 57/60) (destacamos)

 

III. DA LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

 

Sob a égide da Constituição de 1988, o Ministério Público tornou-se verdadeiramente o advogado da sociedade, incumbindo-lhe, nos termos do art. 127 da Carta Magna, "a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis".

No caso em tela, trata-se verdadeiramente de direito difuso, tendo em vista a amplitude do número de pessoas lesadas e a essencialidade do serviço de fornecimento de energia elétrica.

Ad argumentandum tantum, ainda que se tratasse se direito individual homogêneo, também nesta hipótese estaria legitimado o Ministério Público a propor Ação Civil Pública, uma vez que o art. 21 da Lei nº 7.347/85 estende o Título III do Código de Defesa do Consumidor à defesa de direitos individuais, em sua acepção mais ampla. Portanto, hoje admite-se que o Parquet esteja autorizado a figurar como autor em ações coletivas visando à defesa de interesses e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery informam em seu Código de Processo Civil Comentado que o Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo assim se pronunciou sobre o tema: "O Ministério Público está legitimado à defesa de interesses individuais homogêneos que tenham expressão para a coletividade como: a) as que digam respeito à saúde ou à segurança das pessoas, ou ao acesso das crianças e adolescentes à educação; b) aqueles em que haja extraordinária dispersão dos lesados; c) quando convenha à coletividade o zelo pelo funcionamento de um sistema econômico, social ou jurídico." (Revista dos Tribunais, 1994, p. 1.029) (destacamos)

Secundando a Constituição Federal, a Lei Complementar n.º 75/93 dispôs, em seu art. 6º, inciso VII, alínea "d", que compete ao Ministério Público da União promover a ação civil pública para a proteção dos direitos individuais indisponíveis, homogêneos, difusos e coletivos, EM ESPECIAL OS DIREITOS DOS CONSUMIDORES.

Sobre o tema, já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça:

"PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO COLETIVA. DIREITOS COLETIVOS, INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS E DIFUSOS. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. JURISPRUDÊNCIA. AGRAVO DESPROVIDO.

O Ministério Público é parte legítima para ajuizar ação coletiva de proteção ao consumidor, inclusive para tutela de interesses e direitos coletivos e individuais homogêneos." (STJ, - 4.ª T. – AGA 25 3686/SP – REL. SÁLVIO DE FIGUEIRA TEIXEIRA – J.11.04.2000)

Inequívoca, portanto, a legitimidade do Parquet no pólo ativo da presente ação.

 

IV- DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL

 

A competência da Justiça Federal decorre de se tratar de requerimento de responsabilidade por lesões a direitos provocadas por órgãos da administração pública, juntamente com entes privados. Sendo a União Federal e a Aneel, esta última uma autarquia federal, titulares do pólo passivo da relação processual (art. 109, caput e inciso I da CF/88), resta determinada a competência da Justiça Federal.

Dentre as seções judiciárias da Justiça Federal, é competente a de Goiás, pois segundo o art. 2º da Lei nº 7.347, "As ações previstas nesta lei serão propostas no foro do local onde ocorrer o dano, cujo juízo terá competência funcional para processar e julgar a causa."

 

 

V- DA LEGITIMIDADE PASSIVA DOS RÉUS

 

As alegações de violações de direitos e interesses de consumidores decorrem de uma série de atos e omissões administrativas de responsabilidade da União e da ANEEL no dever de fiscalização e normatização da atividade de prestação de energia elétrica no País, em conjunto com as atividades das concessionárias regionais que atuam diretamente junto aos consumidores lesados.

Tendo que a presente ação pretende impedir o gravoso e irresponsável adicional tarifário e responsabilizar as entidades supra-referidas pela prática dos referidos ilícitos, e que essa responsabilidade é solidária, conforme regras jurídicas com sede no Código de Defesa do Consumidor que anteriormente apontamos (art. 7º, parágrafo único), é induvidosa a legitimidade passiva dos réus.

 

VI - DA TUTELA ANTECIPADA

Conclui-se que os patamares alcançados pelo novo aumento refletem diretamente no já rastejante poder aquisitivo da imensa maioria dos consumidores, que dioturnamente são responsabilizados pela incompetência e descaso governamental.

A relevância social da presente demanda é inequívoca, por se tratar de serviço público básico e fundamental à sociedade. O bem aqui postulado (o usufruto de um serviço essencial) é de insofismável relevância individual e social, cuja proteção deve prevalecer, na ponderação de valores, consoante a lição sempre memorável de Teori Albino Zavascki:

"Efetivamente, ao estabelecer que ‘o juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial’, o legislador ordinário está, sem dúvida, estabelecendo restrição ao direito à segurança jurídica, consagrado pelo art. 5º, LIV, da Constituição. Justamente por isso, e conforme evidenciam os incisos do artigo, tal restrição somente é admitida quando outro direito fundamental (o da efetividade da jurisdição) estiver em vias de ser desprestigiado. O desprestígio pode ocorrer a) quando ‘haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação’ (situação que põe em xeque a utilidade prática da futura sentença ante o possível comprometimento do próprio direito afirmado na inicial) ou (b) (...) E a opção do legislador, de adotar como técnica de solução a antecipação provisória do bem da vida reclamado pelo autor, revela claramente que, na ponderação dos valores colidentes, ficou estabelecida uma relação específica de prevalência do direito fundamental à efetividade do processo sobre o da segurança jurídica" (Antecipação da Tutela, 1997, Saraiva, págs. 73/74)

O periculum in mora é latente, uma vez que já se encontram em vigor os malfadados aumentos tarifários indevidos, os quais, quando forem assim considerados pelo Judiciário, não poderão ser revertidos com facilidade aos consumidores lesados, uma vez que em vigor o moroso mecanismo de proteção estatal – os precatórios.

Em face do exposto, requer o Ministério Público TUTELA ANTECIPADA, nos termos do art. 273 do CPC, para o cumprimento das seguintes obrigações:

 

abstenham-se as Rés de aplicarem as disposições que impliquem em majoração extraordinária, a qualquer título, das tarifas elétricas cobradas dos consumidores no âmbito do Estado de Goiás, provenientes da Medida Provisória nº 14, de 21 de dezembro de 2001, bem como da Resolução nº 71, de 7 de fevereiro de 2002, da Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica;

b) imposição solidária às Rés de multa diária no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), pela transgressão a quaisquer ordens judiciais, sem embargo da responsabilização civil e criminal aos que derem causa ao ato;

Inequívoca, no caso, a presença dos elementos consubstanciados na verossimilhança do direito alegado e no fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação (art. 273 do CPC).

 

REQUERIMENTOS E PEDIDO PRINCIPAL

 

Em face do exposto, requer o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL:

 

confirmação da tutela antecipada que venha a ser deferida;

 

a oitiva da União Federal, através de mandado de citação, e da ANEEL, por Carta de Intimação com A.R., para pronunciarem-se no prazo de 72 (setenta e duas) horas (art. 2º da Lei nº 8.437/92) e, posteriormente, acompanhar a ação em todos os seus trâmites até o seu julgamento final;

 

a citação das concessionárias CELG e CHESP, no endereço constante na inicial, para, querendo, contestar a presente a ação, e acompanhá-la em todos os seus trâmites até o seu julgamento final;

 

sejam as Rés CELG e CHESP condenadas a compensar, na fatura subseqüente, todos os valores porventura cobrados indevidamente dos consumidores em razão do aludido aumento tarifário;

 

seja ainda aplicada a penalidade constante no parágrafo único do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor, condenando a CELG e a CHESP a devolverem em dobro os valores indevidamente cobrados, atualizados monetariamente e acrescidos de juros de mora;

 

a publicação de edital no órgão oficial, a fim de que os interessados, querendo, possam intervir no processo como litisconsortes, sem prejuízo da ampla divulgação pelos meios de comunicação social (art. 94 da Lei nº 8.078/90);

 

seja declarada a inconstitucionalidade incidenter tantum das normas questionadas;

h) condenação de todas as Rés em honorários advocatícios e custas processuais.

Protesta-se provar o alegado por todos os meios admissíveis em Direito.

Dá-se à causa o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Goiânia, 16 de abril de 2002.

 

 

Mariane G. de Mello Oliveira

PROCURADORA DA REPÚBLICA