A PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÕES AO FISCO E O DILEMA DAS EMPRESAS

Durante uma fiscalização tributária, é comum a intimação do contribuinte para que preste informações ao Fisco. Em muitas hipóteses, porém, a prestação de tais informações pode se traduzir como que na "confissão" ou na entrega de documentos comprovadores da prática de crime contra a ordem tributária. 

Nesses casos, as conseqüências vão desde a aplicação de multa tributária até a eventual proposição de ação penal. Isso porque, na grande maioria dos casos, as investigações policiais e ações penais nos crimes de sonegação fiscal têm origem em "representação" dirigida pelo agente fiscal ao Ministério Público.

Pois bem, pode a empresa encontrar-se, então, diante do seguinte dilema: ou presta as informações e produz prova contra si, ou cala-se e é multada (e, eventualmente, até processados criminalmente seus sócios), ou presta informações falsas e, com isso, incorre em ilícitos tributários e penais Embora o Fisco tenha direito a examinar livros e documentos e a solicitar da empresa as informações necessárias à regularidade da arrecadação tributária, o correspondente dever do contribuinte de atender a estas solicitações encontra-se limitado pelo direito constitucional a não colaborar na produção de provas contra si mesmo, direito este que vale em face dos agentes fiscais. 

A empresa encontra-se diante do seguinte dilema: ou produz prova contra si, ou cala-se e é multada ou presta informações falsas Dispõe a Constituição Federal (artigo 5º, inciso LXIII) que "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado". 

Como reiteradamente tem afirmado o Supremo Tribunal Federal, o texto legal está a consagrar um princípio maior: o de que ninguém será obrigado a produzir provas contra si mesmo (cf., por exemplo, HC 79.244/DF).

Por outro lado, a Constituição prescreve que "aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa" (artigo 5º, LV), do que se conclui que, não só no âmbito de um processo penal, mas diante de qualquer autoridade pública, tem-se o direito a não cooperar na própria incriminação. 

E este direito não se resume ao simples silêncio, mas se estende, até mesmo, à prestação de declarações falsas (precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça). No âmbito específico dos crimes tributários, duas recentes decisões da Sétima Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região espelham justamente este entendimento.

No primeiro destes casos, julgado em abril deste ano, o contribuinte havia sido intimado pela Divisão de Fiscalização da Delegacia da Receita Federal de Porto Alegre para prestar informações acerca da origem de recursos e rendimentos declarados por instituições bancárias. 

Nas duas oportunidades, ambas dentro de um procedimento administrativo fiscal, prestou informações falsas e, por isso, foi acusado da prática de crime contra a ordem tributária, tendo sido absolvido. Recorreu o Ministério Público e, em abril de 2002, o tribunal confirmou a absolvição. Nesta decisão, o desembargador federal Fábio Rosa afirmou, resumidamente, que "a garantia da não auto-incriminação não está limitada às hipóteses de acusado preso" e que, quando o contribuinte prestou as informações falsas, não praticou crime tributário porque "estava no exercício do seu direito de calar-se ou de negar-se a prestar informações que poderiam incriminá-lo". 

Por isso, concluiu, "a resposta dada pelo réu a uma intimação no procedimento fiscal, no qual vige o princípio constitucional de que ninguém será obrigado a produzir prova contra si mesmo (artigo 5º, incisos LV e LXIII da Constituição Federal), o exime, para efeitos de responsabilidade criminal, da obrigação de prestar declarações que o incriminem".

Já em junho, a mesma Turma retornou ao tema tendo reafirmado o entendimento anterior em caso no qual o empresário teria falseado a verdade perante auditor fiscal a respeito da data de um investimento de compra de títulos ao portador. 

Segundo o voto do desembargador José Luiz B. Germano da Silva, este comportamento "configura-se num ato de defesa do ora réu perante a autoridade pública, pelo qual não deve ser punido", "o fato pelo qual quer o Ministério Público ver o réu condenado, ou seja, a alegada prestação de declaração falsa à autoridade fazendária, isso em 21 de dezembro de 1994, em resposta à intimação da Receita Federal, já sob a égide da Lei nº 8.137/90, a meu ver, é atípico". 

É de se observar que, nos dois casos, tratou-se de prestação de declarações falsas. Com maior razão, portanto, não poderá ser responsabilizado criminalmente por crime tributário aquele que deixa de atender a pedido de informações que possam incriminá-lo. Ou seja, o empresário não é obrigado, no âmbito de um procedimento administrativo, a fornecer informações que possam gerar provas contra si.

Miguel Reale Júnior é advogado, ex-ministro da Justiça, professor-títular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto Pró-Bono.

Heloísa Estellita é advogada, mestre, doutoranda em Direito Penal pela USP e diretora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim)

FONTE: Valor Econômico – 15/01/2003