Guerra de Canudos

Os urubus eram tantos que formavam nuvens negras e nem assim davam conta de devorar os milhares de cadáveres. Muitos secavam ao sol, impregnando o sertão de um cheiro indescritivelmente podre. Cachorros, cujos donos também jaziam mortos por ali, acostumaram-se a comer carne humana e apavoravam os poucos desavisados que ousassem visitar a região. Do arraial, restavam escombros, onde antes havia duas igrejas, e montes de cinza, no lugar das casas de barro.

Cento e dois anos depois, a paisagem é certamente menos aterrorizante, mas tão desolada quanto a daqueles dias depois de 5 de outubro de 1897, quando Canudos foi destruída. Em setembro passado, a falta de chuvas secou o açude que inundou, nos anos 60, o velho campo de batalha, revelando suas ruínas. O palco exposto de uma das maiores guerras civis de nossa história, que deixou 10 000 mortos e mobilizou quase todo o contingente militar da nação, atraiu historiadores como ímã. A SUPER também foi lá. O que nós vimos sobre a lama não foram os restos de um antro de fanáticos nem os destroços de uma comunidade socialista, mas uma pobre vila, igual a tantas outras do sertão da Bahia.

© Flávio de Barros/Arquivo Histório do Museu da República
Triste memória
Única imagem de Antônio Conselheiro, esta foto célebre foi feita em 1897, quinze dias após sua morte. De Canudos, sobraram lembranças mórbidas, como a cruz abaixo que marca o lugar onde uma dezena de soldados e centenas de jagunços foram enterrados. Agora, tudo está novamente debaixo d'água.

 

O bandeirante que descobriu os incas


Estes documentos estão publicados na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, número 5, primeiro trimestre de 1852. Ambos foram transcritos pelo historiador Francisco A. de Varnhagen.

O original da Carta de Luis Ramirez foi encontrado por Varnhagen na Biblioteca Alta do Escorial, em Portugal, e o original da Memoria de la Navegación, de Diego Garcia de Moguer, no Archivo das Indias, em Sevilha, na Espanha.

Memoria de La Navegación
O documento fala da expedição de Diego Garcia, que partiu em 1526 e explorou a região do Prata. A seguir, alguns trechos:

Sobre o Bacharel de Cananéia:
"E daqui fomos a tomar fresco em São Vicente, que está a 24 graus, e ali vive um Bacharel e uns genros seus desde muito tempo, há bem 30 anos, e ali estivemos até 15 de janeiro do ano seguinte de 1527...

De aqui partimos em meados do mês de janeiro deste dito ano.."

Sobre a Ilha de Santa Catarina, onde ele se encontrou com Sebastião Caboto:
"E andando no caminho chegamos a um rio que se chama o Rio dos Patos, que está a 27 graus, que há uma boa geração (gente), que fazem muito boa obra aos cristãos, e se chamam os carrioces (carijós), que ali nos deram muitos víveres, que se chamam milho e farinha de mandioca... porque eram muito bons índios. E ali (na Ilha de Santa Catarina) chegou Sebastião Caboto morto de fome, neste tempo em que eu estava ali, e os índios lhe deram de comer e de tudo o que sua gente tinha necessidade para seguir viagem."

Sobre Aleixo Garcia e as riquezas da serra de prata:
"Há muito ouro e prata e grandes riquezas e pedras preciosas e é isso tudo o que sabemos deste descobrimento; e estes sinais de prata trouxeram um homem dos meus (Aleixo Garcia) que deixei lá da outra vez que descobri este rio há 15 anos (refere-se à viagem de Solis, da qual ele e Aleixo Garcia participaram), de uma caravela que se nos perdeu (a embarcação onde estava Aleixo Garcia, que naufragou na Ilha de Santa Catarina), foi por terra deste rio do Paraguai e trouxe duas ou três arrobas de prata e as deu aos índios e cristãos que estavam naquela terra (a Ilha de Santa Catarina).


Carta de Luis Ramirez
Luis Ramirez era um tripulante da expedição de Sebastião Caboto, que chegou à Ilha de Santa Catarina em 1526 e de lá partiu para explorar a região do Prata. A carta traz os depoimentos que os náufragos da Ilha de Santa Catarina fizeram a Caboto sobre a aventura de Aleixo Garcia. Nessa época, além dos náufragos da expedição de Juan Dias de Solis, de 1516, havia também um grupo de europeus que faziam parte da tripulação de Dom Rodrigo de Acuña. Leia alguns trechos:

A chegada de Caboto à Ilha de Santa Catarina e o contato com os náufragos:
"Em 19 do dito mês (outubro de 1526), chegamos a uma ilha... e vimos vir uma canoa de índios, os quais viram à nau capitã e por sinais nos deram a entender que havia ali cristãos. No outro dia de manhã vimos chegar outra canora de índios e um cristão dentro dela, o qual deu nova ao senhor capitão general (Caboto), dizendo que estavam naquela terra alguns cristãos que eram 15 os que iam à especiaria na expedição de que ia por capitão Dom Rodrigo de Acuña, e porque a dita armada se havia desbaratado no estreito (Estreito de Magalhães), e eles não quiseram voltar à Espanha, seu capitão os havia deixado ali; e também disse de outros cristãos, que se deciam Melchor Ramirez, vizinho de Lepe (espanhol da vila de Lepe) e Henrique Montes. Os dois fizeram parte de uma armada de Juan Dias de Solis.... e havia mais de 13 ou 14 anos que estavam naquela terra....

  Havia tantas aves domesticadas nas aldeias carijós que eles chegaram a ser chamados de índios patos

E logo Henrique Montes vio à nau capitã e falando de muitas coisas com os senhor capitão general (Caboto)... e da grande riqueza daquele rio onde mataram seu capitão (Solis, que morreu nas proximidades da ilha hoje chamada de Martim Garcia, onde o rio Uruguai deságua no Prata). E era que se lhe queríamos seguir, nos carregaria as naus de ouro e prata, porque estava certo de que entrando pelo rio de Solis iríamos dar em um rio que chamam Paraná, o qual é muito caudaloso e entra dentro de este de Solis com 22 bocas, e que entrando por este dito rio acima em pouco carregaria as naus de ouro e prata... e este dito rio Paraná e outros que a ele vêm a dar vão dar em uma serra aonde muitos índios estão acostumados a ir e vir; e que nesta serra havia muito metal, e que nela havia muita prata.

Neste mesmo dia à tarde veio à mesma nau capitã o dito Melchor Ramirez, companheiro de Henrique Montes... Este também disse muito bem da riqueza da terra... disse haver estado no rio de Solís como língua (tradutor) de uma armada de Portugal (a expedição de Cristóvão Jacques ao Prata, em 1521). E o capitão general (Caboto) lhe perguntou se eles tinham alguma mostra de aquele ouro e daquela prata que diziam.

Montes disse que estavam ali (na Ilha de Santa Catarina) sete homens de sua armada (a expedição de Solis), sem outros que por outra parte se haviam apartado e que desses só eles haviam sobrado ali... e os demais, visto a grande riqueza da terra e como nessa dita serra havia um rei branco que tinha barba e, vestidos como nós (visão mítica dos habitantes da serra de prata), eles se determinaram a ir lá, para ver o que era; os quais (Aleixo e outros náufragos) foram e lhes enviaram cartas, e que embora não houvessem chegado à minas, mas já tinham tido contato com uns índios comarcanos (vizinhos) à serra, e que traziam nas cabeças umas coroas de prata e uma pranchas de ouro nos pescoços e orelhas ... E lhes enviaram doze escravos e as amostras de metal que tenho dito (mensageiros enviados à Ilha por Aleixo), e que fizeram saber como naquela terra havia muita riqueza e que tinha recolhido mito metal para que fossem até lá (à Serra de Prata) com eles, os quais (os náufragos da ilha) não quiseram ir por que os outros (Aleixo e seu grupo) haviam passado por muito perigo por causa das muitas gerações (tribos) que havia nos caminhos por onde era preciso passar. E que depois havia havido notícias de que estes seus companheiros, voltando-se contra eles uma geração de índios que se dizem os guaranis (há dúvidas sobre qual grupo de índios atacou o acampamento de Aleixo) os haviam matado para tomar-lhes os escravos (os índios que acompanhavam Aleixo) que estavam carregados de metal.

 
Martim Afonso organizou a primeira grande expedição em busca do caminho de Aleixo

E logo o capitão general (Caboto) lhe pediu para mostrar (o tesouro) que teriam lhe enviado seus companheiros. Montes disse que quatro meses, pouco mais ou menos antes, que chegássemos a este porto dos Patos, que assim se chamava onde eles estavam, chegou ao dito porto uma nau, na qual vinha por capitão o dito Dom Rodrigo que a vossa mercê digo, ao qual deram até duas arrobas de ouro e prata e de outro metal muito bom... para que levasse tudo a Sua Majestade e que ele fosse informado de terra tão rica, e que ao tempo em que lhes entregaram ao batel para levá-lo à nau (...) e se perdeu tudo, e que então se haviam afogado no dito batel quinze homens e que ele (Montes) escapou a nado com a ajuda dos índios que entraram (no mar) por ele, e que por causa disso não teria metal nenhum, salvo ouro e prata, e por se a primeira coisa que naquela terra haviam encontrado, as haviam guardado para dar a Nossa Senhora Guadalupe; os quais deram (as amostras) ao senhor capitão general e as de ouro eram muito finas, de mais de 20 quilates, segundo pareceu, e que se o senhor capitão general queria tocar no dito rio de Solís que eles iriam com suas casas e filhos e nos mostrariam a grande riqueza que havia lá e o senhor capitão general respondeu que era outro o seu caminho.

Caboto logo mudou de idéia e, diante de tão entusiasmados depoimentos, decidiu ir explorar a região do Prata:

Sobre a partida da Ilha de Santa Catarina para ir ao Prata:
"Recolhida toda a gente às naus e nela, com todos os cristãos que ali encontramos, saímos com bom tempo do dito porto (dos Patos) aos 15 dias de fevereiro do dito ano de 1527."

 
Não há imagens de Juan Díaz de Solis, o capitão da frota que trouxe Aleixo Garcia à América, apenas a assinatura ao lado

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