O LIVRO DERRADEIRO
Cruz e Sousa
DISPERSAS
Parte 4
Sumário:
AVANTE
AWAY!
POESIA
SAUDAÇÃO
A IMPRENSA
VERSOS
AO DECÊNIO DE CASTRO ALVES
ENTRE LUZ E SOMBRA
SETE DE SETEMBRO
TRÊS PENSAMENTOS
PARANAGUADAS
QUESTÃO BROCARDO
SEMPRE
BEIJOS
QUESTÃO BROCARDO
[Pinto, pinta -- ponta à ponta ]
PIRUETAS
AS DEVOTAS
[De claque, casaca e luva, ]
[MEUS ESPLÊNDIDOS...]
[Nunca se cala o Callado]
[Estoure como o champagne]
[Parece um céu estrelado]
[Levantem esta bandeira]
OLHARES
[Nas explosões de bons risos]
[Triolé -- pega estes zotes ]
GRITO DE GUERRA
[Da Lua aos raios prateados]
[Teus olhos belos por dentro]
ADALZIZA
[TEUS OLHOS]
SER PÁSSARO
O BOTÃO DE ROSA
[Ó Adalziza dos sonhos;]
[Enquanto este sangue ferve]
[Como um cisne, estalma frisa]
[Merece o bom do Vidal]
[Zulmira dos meus amores,]
[Deixai que a minh'alma escassa]
[Quando ela está de colete,]
[Ó cintilante Quiquia,]
[Olhos pretos, sonhadores]
[Se estala a estrofe de fogo,]
AMOR!!...
[Ó Flora, ó ninfa das rosas,]
[Morena dos olhos pretos]
[Embora eu não tenha louros]
[Ó Alzira, Alzira, Alzira,]
[Aos relâmpagos sulfúreos]
[À sombra espessa de um álamo]
ROSA
[Quando estás de laçarotes]
[Da idéia nos mares jônios]
[-- Como um assombro de assombros]
[-- Como fortes gargalhadas]
[Da bruma pelos países]
SAUDAÇÃO
FRÊMITOS
GUSLA DA SAUDADE
SMORZANDO
GIULIETTA DIONESI
FILETES
VERSOS À INFÂNCIA
TRISTE
FONTE DE AMOR
NAUFRÁGIOS
CASTELÃ
ARTE
ARTE [variação]
O DUQUE
A ESPADA
O SOL E O CORAÇÃO
SAPO HUMANO
DIANTE DO MAR
BRUMOSA
SGANARELO
DESMORONAMENTO
CLARÕES APAGADOS
MENDIGOS
ASAS PERDIDAS
ANJO GABRIEL
CRIANÇAS NEGRAS
VELHO VENTO
MARCHE AUX FLAMBEAUX
O ÓRGÃO
DISPERSAS
AVANTE
(17 set. 1880)
Ao distinto e talentoso jovem
José Arthur Boiteux
......................................................... .
Avante, sempre nessa luz serena,
Empunha a pena, sem temor, com fé!...
Eleva as turbas as idéias doiro,
Que um tesouro tua fronte é!...
Eia, caminha nessa senda nobre
Na pátria pobre, no teu berço aqui!...
Prossegue altivo, sem parar, constante,
Faz-te gigante, diz depois: Venci!...
Imita os grandes, incansáveis vultos
Que lá sepultos no pó negro estão!...
Anda, romeiro dos vergéis divinos,
Mergulha em hinos a gentil razão!...
Eia, que sempre na brasílea história
De alta glória colherás o jus!...
O livro augusto do Porvir descerra,
Sê desta terra o precursor da luz!...
Índice
AWAY!
A meu distinto amigo e talentoso jovem José Arthur Boiteux
O livro, esse audaz guerreiro,
Que conquista o mundo inteiro,
Sem nunca ter Waterloo!...
(Castro Alves)
Avante, sempre, nessa luz serena,
Empunha a pena, sem temor, com fé!...
Eleva as turbas as idéias douro,
Que um tesouro tua fronte é!...
Eia, caminha nessa senda nobre,
Na pátria pobre, no teu berço aqui!...
Prossegue altivo, sem parar, constante,
Faz-te gigante, diz depois -- Venci!...
Ala-te à glória num voar titâneo,
Burila o crânio de fulgor sem fim!...
E entre o livro dimortais perfumes
Calca os ciúmes dimbecil Caim!
Imita os grandes, incansáveis vultos
Que lá sepultos no pó negro estão!...
Anda, romeiro dos vergéis divinos,
Mergulha em hinos a gentil razão!
Estás na quadra radiante e linda,
É cedo ainda para enfim descrer!
És jovem... pensas... és portanto um bravo
Ser ignavo... é sucumbir... morrer!
Vamos, caminha, mesmo embora exangue
Da fronte o sangue vá rolar-te aos pés!
Agita a alma qual febris as vagas,
Que dessas chagas brotarão lauréis!
Além do livro, colossal, enorme,
Que nunca dorme perscrutando os céus!.
Acima dele supernal, potente
Está somente, tão-somente Deus!
Vai! ... vai rasgando, percorrendo os ares,
Novos palmares, meu gentil condor!
Depois de teres pedestal seguro
Lá do futuro te erguerás senhor!...
Qual Ney ousado que, ao vibrar da lança,
Nutre esperança de ganhar, vencer,
Assim coa idéia vai lutar, trabalha,
Vence a batalha do dinal saber.
Eia que sempre na brasílea história
De alta glória colherás o jus!...
O livro augusto do porvir descerra,
Sê desta terra precursor da luz!!!
Índice
POESIA
C'est la musique la poesie de lâme;
et la gloire est Dieu, ce sont les
deux choses les plus charmantes, les
plus belles, les plus grandes de la vie!
(Do Autor)
Da música escutando preclaras harmonias
Vendo em cada lábio brilhar ledo sorriso
Vendo luz e flores e tanto entusiasmo
Julguei-me transportado ao célico Paraíso!
Foi sonho na verdade -- mas hoje realizado
Vos dá, distintos sócios, venturas mais de mil,
A vós que à frente tendo Penedo, grande, forte,
Subis, alistridente, qual ave mais gasil!
E quando executais as vossas belas peças
As notas quais gemidos vagam namplidão
Parece que o infinito derrama sobre vós
Centelhas sublimadas só dinspiração!
Da arte de Mozart vós sois grandes romeiros
Lutais como nas vagas o triste palinuro,
Os olhos tendes fitos na glória que dá brilho
No livro tricolor e ovante do futuro!
Hoje que os sorrisos assomam em vossos lábios
Que da Guarani alçais áureo pendão,
Eu humilde e fraco -- com flores inodoras
Somente aqui vos venho fazer uma ovação!
Quando há só coragem, força, intrepidez
Quando se alimenta no peito divo ardor,
O homem não recua, caminha pro progresso
Coa fronte sempre erguida, sem ter menor temor,
Sem ter algum trabalho jamais salcança trono
Sem ter valor e força jamais se tem lauréis
Pra vossa grande glória, além do grã futuro
Deus já tem erectos milhares de docéis!
Mas dentre vós vulto sereno se destaca
Qual Rodes portentoso, imenso, verdadeiro
Que nunca recuou sequer um só momento
Que sempre em trabalhar foi pronto companheiro!
E este vosso sócio, digno diretor
Que forte não pensou jamais em recuar!
É José Gonçalves -- águia valorosa
A quem, altivamente, eu ouso aqui louvar!
Vencendo mil tropeços, altiva os derribando
A bela Guarani se mostra triunfante
Foi como esses heróis -- na mão sustenta o gládio
-- O gládio da vitória serena e radiante!
Portanto erguei ridente a fronte ao infinito!
Erguei ó grandes bravos a fronte toda luz!
Eis, a senda é bela, sublime, é grandiosa
Avante pois nessarte, avante, avante, sus!
E agora concluindo palavras pobrezinhas
Que eu pronunciar humilde vim aqui,
Saúdo fervoroso -- do imo de minhalma
A essa tão gentil, simpática Guarani!
Índice
SAUDAÇÃO
(Desterro, 14 nov. 1880)
Qual o que não exulta ao ler uma epopéia!
Qual o que a ver dor não lhe estremece o crânio,
Em confusões cruéis?! Qual o que tem fresca, sublime, pronta a
idéia,
E do altar da caridade no supedâneo,
Não deixa alguns lauréis?!
(Do Autor)
Ontem, grande desgraça
Que o povo se abraça
DItajaí em geral!
Ontem, o cetro divino
Que se tornando ferino
Tudo esmaga afinal!
Ontem, prantos e dor. . .
Grandes gritos d'horror...
A fatal confusão!
Ontem, lampas perdidas
De centenas de vidas,
Que nas águas lá vão!
Ontem, negras as vagas,
Os belos céus, essas plagas,
-- Onde existe o Senhor!
Ontem, -- fatalidade!
A pobrezinha cidade
Toda envolta em negror!
Hoje, oh! Deus sempiterno!
-- O teu gládio superno
De bonança a irradir,
Veio ao povo esmagado
Ao tredo peso do fado
Fazer do caos ressurgir!
Hoje, o íris brilhante
Lá nos céus, radiante,
Já se faz divulgar!
E todo o povo prostrado
Te agradece arroubado
Mas ainda a chorar!
E corações caridosos
Farão a dar pressurosos
Os seus globos gentis!
Dai! é doce a esmola!
Ela aos pobres consola,
Torna-os ledos, gasis!
A miséria chorava
Em delírio bradava
Por um pouco de pão!
E eles foram dizendo
-- Ide, pois vos mantendo,
Aqui tendes a mão!
E vós -- lá no tablado,
O mor rasgo, elevado,
De fazer acabais!
E um rasgo de glória
De brilhante memória
Pros vindouros anais!
Vós fazeis do cenário
Um dinal santuário
Trabalhando pra pobres!
Mostrais bem que nas almas
Possuís celsas palmas
De ações muito nobres!
Pra louvar amadores,
Tantas lutas, labores,
Tanta excelsa virtude!
Ah! me falta uma lira
Que um poema desfira...
Ai! me falta alaúde!
Só Deus pode dar louros
De mil glórias, tesouros,
Como vós mereceis!
Pois que feitos são divos,
Tão imensos, altivos
Só dheróis ou de reis!
Amadores briosos!
Vós sois tão valorosos
Qual os bravos na guerra!
Sois os nautas valentes
Socorrendo ridentes
Quem cá gema na terra!
Amor, Deus, Caridade
-- E a sublime trindade
Radiante de Luz!
Donde vós, amadores,
Lá colheis os fulgores,
De mil graças a flux!
Índice
A IMPRENSA
(Desterro, 21 nov. 1880)
A Imprensa e brilhante como o meteoro,
sublime como os arrebóis do cerúleo
infinito!
(Do Autor)
A lâmpada gigantesca
Das glórias do porvir,
Turíbulo majestoso
No mundo a irradir,
É a imprensa tesouro
E c'roa de verde louro
A fronte do escritor!
E centelha sublimada
Que vem do céu arrojada
A treva dando fulgor!
-- O homem nasceu pequeno
Mas com as letras cresceu
Foi como o vulto de Rodes
Que lá tão alto sergueu!
Foi preciso -- estudando
Coa própria idéia lutando
Mergulhar-se na luz!
Foi preciso ter glória,
Brilhante, leda memória,
Colher renomes a flux!
Foi preciso mil lutas
Mil labores insanos
P'ra descobrir nesses mundos
Da diva luz os arcanos!
Foi preciso que um bravo
Não mostrando-se ignavo
Mas inspirado por Deus!
A pedra bruta talhasse
E a luz então derramasse
Qual seiva santa dos Céus!
Foi preciso os séculos
Ainda um pouco nas trevas
Erguessem as frontes bem alto
E devastassem mil selvas!
Foi preciso que o mundo
Sentisse abalo profundo
Ao desvendar- se o saber!
Foi preciso que os entes
Ou se erguessem potentes
Ou tombassem a morrer!
Mas não! -- o homem ergueu-se,
Quase, quase com Deus
Tirou a fronte da treva
E só pregou-a nos Céus!
Viu o futuro de louros
E quis colher os tesouros
Que dão renome sem fim!
Sonhou, sonhou coa vitória
E o gládio teve da glória
Qual o grão Bernardim!
O homem, gênio sublime,
Caminha, com seu bordão
Até achar o brilhante
A luz, a luz da razão!
Tropeça um pouco, se tomba
Ergue-se, voa qual pomba
E indo a luz descobrir,
Busca ouvir no infinito
Do eco ao longe este grito:
Trabalha para o porvir!
Quando os povos modernos,
Sentirem no coração
Uma ardente centelha
Que caia lá d'amplidão!
Deixarão esses vícios,
Insanos, negros, fictícios
Que dão só noite ao viver!
E irão curvados a ela
Depor-lhe verde capela
Farão então por crescer!
Camões, Milton, Abreu,
Já da vida sem lampas,
Erguei-vos crânios altivos
Espedaçai essas campas!
Dizei -- se o homem caminha
Se na treva definha
A quem se deve louvar?!...
Sas letras seguem ovantes
Dizei ó nobres gigantes
A quem se ergue alcaçar?!!...
E Guttemberg esse herói,
Essa vergôntea dinal,
Que co'escopro na destra!
Foi das letras fanal!
Ao descobrir a imprensa
Essa epopéia imensa
Para toda a nação,
Com glória ingente sonhava
Na luz por certo nadava
Já tinha os louros na mão!
VERSOS
(Desterro, 9 abr. 1881)
Admirai Carrara, Canova, Rafael,
Murillo, Mozart e Verdi e tereis
as sublimes, mais que sublimes,
as divinas encarnações da arte!
(Do Autor)
Bravo, prole bendita
Pois à glória infinita
O lutar vos conduz!
É assim -- trabalhando
Sempre e sempre estudando
Que se alcança mais luz!
Contemplai estas flores
Estes tantos lavores
Contemplai o painel!
Repetindo orgulhosos
Estes feitos briosos
São dum belo pincel!
Eia, jovens, avante!
Ser artista é brilhante,
Trabalhar é uma lei!
Não são só os croados
Que merecem em brados
Ter as honras de rei!
O artista qu'é pobre
É tão rico, é tão nobre
Qual potente césar!
E a glória bem cedo
Lhe murmura o segredo
-- És artista -- és sem par!
Não temais os pampeiros
Sois gentis brasileiros
Deveis pois progredir!
Quem vos traça na história
Vossa augusta memória
É um deus -- O Porvir!
Levantai-vos potentes
Altanados, ingentes
E fazei-vos Criseus!
Só quem pode vergar-vos
E pensar obumbrar-vos
Mais ninguém -- é só Deus!
Não fiqueis ignavos
Que o futuro dá bravos
Vos dizendo -- estudai!
Sois humanos -- portanto
Se há de trevas um manto
Apressai-vos, rasgai!
Nossa pátria querida
Necessita mais vida,
Necessita crescer!
É preciso contudo
Que tenhais como escudo
Quem vos mostra o saber!
E de obreiros altivos,
Que sereis redivivos
Que sereis imortais,
Achareis vossos nomes
Vossos grandes renomes
Nas mansões divinais!
Perdoai-me estas flores
Que tão murchas, sem cores
Nada podem valer!
São ofertas sinceras
Arrancadas deveras
Para vir vos trazer!
Palinuros -- à frente
Esse trilho é ridente
Dás-vos honra, louvor!
Quem o braço vos guia
Nunca, nunca entibia --
-- É artista... e pintor!
É a vós a quem falo
E se hoje eu não calo
Estas vãs expressões!
É que a louca alegria
Em minh'alma irradia
Com fulgentes clarões!
O trabalho enobrece
Glorifica, engrandece
Aos artistas quais vós!
Que zombando da sorte
Têm a tela por norte
Os pincéis por faróis!
Eia! nessa carreira
Qual a nau sobranceira
Indo o mar a fender!
Quando há negros abrolhos,
Mil cachopos, escolhos
É mais belo o vencer!
Se o lutar é dos grandes
Que são gêmeos dos Andes
Que não sabem tombar!
Colhereis uma glória
Mais suprema memória,
Trabalhando, a lutar!
Deus, o Deus sublimado
Disse ao homem num brado,
Da sidérea mansão!
-- Vai depressa arrimar-te
Aos arcanos da arte,
Que terás um bordão!
Onde há braços dartista
E seu ponto de vista
Decepar escarcéus!
E seu gládio seguro
Vai cavar o futuro
Vai rasgar negros véus!
E lá quando os vindouros
Vos c'roarem de louros
Vos erguerem docel!
Bradarão altaneiros:
-- Exultai brasileiros,
Ressurgiu Rafael!
Não temais os insanos,
Insensatos humanos
Bajulantes e maus!
Trabalhai muito embora!
Há de vir uma aurora
Pra arrancá-los do caos!
Away, estudantes
Sois vergônteas pujantes
A lauréis tendes jus!
Caminhai com coragem,
Questa é a romagem
Dos apóstolos da luz!!!...
AO DECÊNIO DE CASTRO ALVES
Quem sempre vence e o porvir!
No espadanar das espumas
Que vão à praia saltar!
Nos ecos das tempestades
Da bela aurora ao raiar,
Um brado enorme, profundo,
Que faz tremer todo o mundo
Se deixa logo sentir!
E como o brado solene,
Ingente, celso, perene,
É como o brado: -- Porvir!
Pergunta a onda: -- Quem é?...
Responde o brado: -- Sou eu!
Eu sou a Fama, que venho
Croar o vate, o Criseu!
Dormi, meu Deus, por dez anos
E da natura os arcanos
Não posso todos saber!
Mas como ouvisse louvores
De glória, gritos, clamores,
Também vim louros trazer.
Fatalidade! -- Desgraça!
Fatalidade, meu Deus!
Passou-se um gênio tão cedo,
Sumiu-se um astro nos céus!
As catadupas didéias,
De pensamento epopéias
Rolaram todas no chão!
Saindo a alma pra glória
Bradou pra pátria -- vitória!
Já sou de vultos irmão!
Foi Deus que disse: -- Poeta,
Vem decantar a meus pés.
Na eternidade há mais luz,
Dão mais valor ao que és.
Se lá na terra tens louros,
Receberás cá tesouros
De muitas glórias até!
Terás a lira adorada
Co divo plectro afinado
De Dante, Tasso e Garret!
Então na terra sentiu-se
Um grande acorde final!
O belo vate brasíleo
Pendeu a fronte imortal!
O negro espaço rasgou-se
E aquele gênio internou-se
Na sempiterna mansão.
A sua fronte brilhava
E o áureo livro apertava
Sereno e ledo na mão...
E o mundo então sobre os eixos
Ouviu-se logo rodar!
É que ele mesmo estremece
A ver um vulto tombar.
É que na queda dos entes
Que são na vida potentes,
Que têm nas veias ardor,
Há cataclismos medonhos
Que só sentimos em sonhos
Mas que nos causam terror!...
E o coração s'estortega
E s'entibia a razão!
No peito o sangue enregela
E logo a história diz: -- Não!
Não chore a pátria esse filho,
Se procurou outro trilho
Também mais glórias me deu!
E quando os séculos passarem
Se hão de tristes curvarem
Enquanto alegre só eu?...
Oh! Basta! Basta! Silêncio!
Repousa, vate, nos Céus!
Que muito além dos espaços
Os cantos subam dos teus!
Se nesta vida d'enganos
Não são bastante os humanos
Pra te render ovações!
Perdoa os fracos, ó gênio,
Que pra cantar teu decênio
Somente Elmano ou Camões!
ENTRE LUZ E SOMBRA
Ao dia 7 de Setembro
Libertas Lux Dei!!...
Surge enfim o grande astro
Que se chama Liberdade!...
Dos sec'los na imensidade
Eterno perdurará!...
Como as dulias matutinas
Que reboam nas colinas,
Nas selvas esmeraldinas
Em honra ao celso Tupá!...
Eram só cinéreas nuvens
Os brasíleos horizontes!
Curvadas todas as frontes
Caminhavam no descrer! --
As brisas nem murmuravam...
Os bosques nem soluçavam...
Os peitos nem se arroubavam...
-- Estava tudo a morrer!...
De repente, o sol formoso
Vai as nuvens esgarçando.
As almas vão palpitando,
Cintilam magos clarões!...
E o Índio fraco, indolente
Fazendo esforço potente
Dos pulsos quebra a corrente,
Biparte os acres grilhões!...
Por terra tomba gemendo
O vão, atroz servilismo...
Rui a dobrez no abismo...
Eis a verdade de pé!...
Enfim!... exclama o silvedo
Enfim!... lá diz quase a medo
Selvagem, nu Aimoré!...
Assim, brasílea coorte,
Falange excelsa de obreiros,
Soberbos,.almos luzeiros
De nossa gleba gentil,
Quebrai os elos descravos
Que vivem tristes, ignavos,
Formando delas uns bravos
-- P'ra glória mais do Brasil!...
Lançai a luz nesses crânios
Que vão nas trevas tombando
E ide assim preparando
Uns homens mais p'ro porvir!
Fazei dos pobres aflitos
Sem crenças, lares, proscritos,
Uns entes puros, benditos
Que saibam ver e sentir!...
Do carro azul do progresso
Fazei girar essa mola!
Prendei-os sim, -- mas à escola
Matai-os sim, -- mas na luz!
E então tereis trabalhado
O negro abismo sondado
E em nossos ombros levado
Ao seu destino essa cruz!!...
Fazei do gládio alavanca
E tudo ireis derribando;
Dormi, coa pátria sonhando
E tudo a flux se erguerá!
E a funda treva cobarde
Sentindo homérico alarde,
Embora mesmo que tarde
Curvada assim fugirá!...
Enfim!... os vales soluçam
Enfim!... os mares rebramam
Enfim!... os prados exclamam
Já somos livre nação!!...
Quebrou-se a estátua de gesso...
Enfim!... -- mas não... estremeço,
Vacilo... caio, emudeço...
Enfim de tudo inda não!!...
SETE DE SETEMBRO
Liberdade! Independência!...
Eis os brados grandiosos
Que quais raios luminosos
Fulguraram lá nos céus!...
Eis a mágica -- Odisséia
Que duns lábios rebentando,
Foi o povo transformando,
Foi rompendo os negros véus!...
As colinas, prados, montes,
As florestas seculares
-- Os sertões, os próprios mares
Exultaram com fervor!
E os brados retumbaram
Pela lúcida devesa,
Pela virgem natureza
Com homérico clangor!...
Qual artista consumado,
Qual um velho estatuário
Do Brasil no azul sacrário,
Essa data vos traçou,
-- O triunfo mais pujante,
A eleita das idéias,
A major das epopéias
-- Q'inda igual não se gerou!...
Mas embora, meus senhores
Se festeje a Liberdade,
A gentil Fraternidade
Não raiou de todo, não!...
E a pátria dos Andradas
Dos -- Abreu, Gonçalves Dias
Inda vê nuvens sombrias,
Vê no céu fatal bulcão!...
Muito embora Rio Branco,
Esse cérebro profundo
Que passou por entre o mundo,
Do Brasil como um Tupã!...
Muito embora em catadupas
Derramasse o verbo augusto,
Da nação no enorme busto
Inda a mancha existe, há!...
É preciso com esforço,
Colossal, estranho, ingente,
Ir o cancro, de repente
Esmagar que nos corrói!...
É preciso que essa Deusa,
A excelsa Liberdade,
Raie enfim na Imensidade
Mais altiva como sói!...
Sai da larva a borboleta
Com as asas auriazuis
E um disco vai -- de luz
A deixar onde passou!
No entanto o grande berço
Das façanhas de Cabrito
Inda espera um novo grito
Como o -- Basta -- de Waterloo!...
Eu bem sei que Guttemberg
Que esse Fulton primoroso
Faust, Kepler grandioso
Trabalharam té vencer!
Mas embora tropeçassem
Acurando os seus eventos,
Tinham sempre tais portentos
A vontade por poder!...
Eia! sim! -- pra Liberdade
Irrompei qual verbo eterno,
Como o -- Fiat -- superno
Pelos ares a rolar!
Eia! sim! -- que nossa pátria
Só precisa -- mas de bravos...
E em prol desses escravos
Seu dever é trabalhar!!...
Somos filhos dessa gleba
Majestosa aonde o gênio
Como o astro do proscênio
Solta as asas, mui febril!
Dos selvagens Tiaraiús
E dos brônzeos Guaicurus...
Somos filhos do Brasil!...
Esperemos, tudo embora!...
Pois que a sã locomotiva,
Do progresso imagem viva
Não se fez a um sopro vão!.
Aguardemos o momento
Das mais altas epopéias,
Quando o gládio das idéias
Empunhar toda a nação!...
Esperemos mais um pouco
Qinda há almas brasileiras
Que se lembrarão, sobranceiras,
Que é preciso progredir!...
Inda há peitos valerosos
Que combatem descobertos
Por florestas, por desertos,
Mas c'os olhos no porvir!...
Inda há lúcidas falanges
Lutadores denodados
Que se erguem transportados
Burilando a sã razão!...
Inda há quem se recorde
Do Egrégio Tiradentes
Que do sangue as gotas quentes
Derramou pela nação!!...
Já nas margens do Ipiranga
Patrióticos acentos
Vão alados como os ventos
Pelos páramos azuis!!...
Vamos! Vamos! -- eia! exulta,
Jovem pátria dos renomes...
-- Vibra a lira, Carlos Gomes!
Bocaiúva, espalha luz!!...
TRÊS PENSAMENTOS
Nasceste no Brasil -- filha dAmérica,
Tu sabes conservar nas débeis veias
No lúcido pulmão
O sangue efervescente e purpurino
A força de subir ao céu da história.
As lutas da razão!...
Nasceste no Brasil -- em meio às plagas
Da grande natureza mais pujante
E cheia de arrebol!...
E sabes obumbrar os astros fulvos
E lanças raios mil por toda a parte,
Soberba como o sol!...
Nasceste no Brasil e o eco ovante
Das glórias sublimadas que tu colhes
Por este céu azul,
Vem férvido, viril e acentuado
Assaz repercutir com mais verdade
Aqui... aqui no sul!...
PARANAGUADAS
Que importa que tu fales
Que importa que tu files
Que importa que não cales,
Que importa que tu fales
Que importa que te rales,
Que importa-me essa bílis
Que importa que tu fales
Que importa que tu files.
QUESTÃO BROCARDO
-- Pife, pufe, pafe, pefe
Pafe, pefe, pife, pufe --
A cacholeta no chefe --
-- Pife, pufe, pafe, pefe
Estoure como um tabefe
E o ventre de raiva entufe --
-- Pife, pufe, pafe, pefe
Pafe, pefe, pife, pufe!
SEMPRE
Se é certo que o amor é um bem profundo
Se é certo que o amor é um sol ardente,
Eu hei de amar-te sempre neste mundo
E sempre, sempre, sempre -- eternamente.
BEIJOS
Nesta Tebaida infinita
Da vida, na sombra oculto,
Eu gosto de olhar o vulto
De uma criança bonita.
Porque afinal as crianças,
Como eu deslumbro-me ao vê-las,
Cintilam como as estrelas,
Florescem como esperanças.
Dentro de mim se projeta
A luz cambiante dos prismas
E batem asas as cismas
Qual passarada irrequieta.
E batem asas e ruflam,
Pelas artísticas plagas,
As auras que as grandes vagas
Dos fundos mares insuflam.
E digo, ó mães, se uma aurora
Fosse a minhalma sincera,
Os clarões todos eu dera
A uma criança que chora.
Porque se a luz fortalece
Arbustos e as andorinhas,
Também por certo às criancinhas
Conforta, avigora, aquece.
E eu que aplaudo e que rimo
Tudo isso que a luz se regre,
Na vibração mais alegre
As criancinhas estimo.
Portanto, assim, sem refolhos
Beijando a Olga, beijando
Meus sonhos vão, irradiando,
Se derramar em seus olhos!
QUESTÃO BROCARDO
Triolé fura essa pança
Do Delegado -- es um russo,
Revolução nesta dança...
Triolé fura essa pança,
Fura, fura como a lança
Ou como no boi um chuço;
Triolé fura essa panca
Do Delegado -- és um russo.
__________
Pinto, pinta -- ponta à ponta
Tanta ponta, Pinto pinta
Que pinta se pinta a pinta
Pinto -- pinta -- ponta à ponta.
Pinto é ponto mas não ponta
Mas se pinta por um pinto
E já que o Pinto se pinta
Eu pinto-lhe a pinta ao Pinto.
PIRUETAS
Finou-se um tal inglês
Gastrônomo e patife
Que tanto -- de uma vez
Comeu, comeu e esparramou-se em bife;
Que um dia de jejum,
Pela pança rotunda e quixotesca,
Teve um parto... comum,
Um feto original... de came fresca.
AS DEVOTAS
I
Enquanto o sino bimbalha,
Bimbalha, bimbalha e tine,
Lançai do olhar a migalha
-- Enquanto o sino bimbalha --
À raça que se amortalha
No horror que não se define...
Enquanto o sino bimbalha
Bimbalha, bimbalha e tine.
II
Perto da Igreja a senzala,
O Cristo junto aos escravos
E, pois, deveis visitá-la,
Perto da Igreja, a senzala
E procurar transfarmá-la
Da luz às palmas, aos bravos!...
Perto da Igreja a senzala,
O Cristo junto aos escravos.
III
E tão-somente por isto
Enquanto o sino bimbalha,
Bem antes de terdes visto
-- E tão-somente por isto --
Todo o martírio do Cristo,
O vosso amor que lhes valha,
E tão-somente por isto,
Enquanto o sino bimbalha.
__________
De claque, casaca e luva,
De luva, casaca e claque
Ao rendezvous da viúva,
De claque, casaca e luva,
Tu vais -- arrostas a chuva
No macadam -- plaque, plaque...
De claque, casaca e luva,
De luva, casaca e claque.
[MEUS ESPLÊNDIDOS...]
Meus esplêndidos desejos
Emigram, como beijos,
Pelo azul espaço, em curvas,
Rasgando essas brumas turvas;
Pelo sol das primaveras,
Batendo as asas brancas,
Como, batem, quimeras...
...............................................
Voai, andorinhas francas!
__________
Nunca se cala o Callado
E sempre o Callado, fala
Callado que não se cala,
Nunca se cala o Callado,
Callado sem ser calado,
Callado que é tão falado...
Nunca se cala o Callado
E sempre o Callado, fala.
Índice
__________
Estoure como o champagne
O triolé -- pule e salte
E como os gatos arranhe,
Estoure como o champagne
E a cara dos erros lanhe
E como o sol nunca falte...
Estoure como o champagne
O triolé -- pule e salte.
__________
Parece um céu estrelado
Esta vida de nós dois
Depois daquele passado...
Parece um céu estrelado
Largo, puro, undiflavado
Depois do pesar, depois,
Parece um céu estrelado
Esta vida de nós dois.
__________
Levantem esta bandeira
Da posição de farrapo;
Da terra azul brasileira
Levantem esta bandeira
Que sente o horror da esterqueira
Da escravidão -- negro sapo.
Levantem esta bandeira
Da posição de farrapo.
OLHARES
Teus traquinantes olhinhos
Continhas, Ziza, parecem;
Zigzagam sempre, tontinhos
Teus traquinantes olhinhos;
Tão pretos, tão redondinhos
Olhinhos que me embevecem,
Teus traquinantes olhinhos
Continhas, Ziza, parecem.
__________
Nas explosões de bons risos
Os triolés petulantes
Chocalhem, tinam, precisos
Nas explosões de bons risos,
Tilintem como mil guisos
Sonoros, raros, vibrantes
Nas explosões de bons risos,
Os triolés petulantes.
__________
Triolé -- pega estes zotes
E dá-lhes de baixo acima
Preso ao trapézio da rima
Na mais artística esgrima
Destouros e piparotes,
Preso, ao trapézio da rima
Triolé -- pega estes zotes.
GRITO DE GUERRA
Aos senhores que libertam escravos
Bem! A palavra dentro em vós escrita
Em colossais e rubros caracteres,
É valorosa, pródiga, infinita,
Tem proporções de claros rosicleres.
Como uma chuva olímpica de estrelas
Todas as vidas livres, fulgurosas,
Resplandecendo, -- vós tereis de vê-las
Rolar, rolar nas vastidões gloriosas.
Basta do escravo, ao suplicante rogo,
Subindo acima das etéreas gazas,
Do sol da idéia no escaldante fogo,
Queimar, queimar as rutilantes asas.
Queimar nas chamas luminosas, francas
Embora o grito da matéria apague-as;
Porque afinal as consciências brancas
São imponentes como as grandes águias.
Basta na forja, no arsenal da idéia,
Fundir a idéia que mais bela achardes,
Como uma enorme e fulgida Odisséia
Da humanidade aos imortais alardes.
Quem como vós principiou na festa
Da liberdade vitoriosa e grande,
Há de sentir no coração a orquestra
Do amor que como um bom luar se expande.
Vamos! São horas de rasgar das frontes
Os véus sangrentos das fatais desgraças
E encher da luz dos vastos horizontes
Todos os tristes corações das raças...
A mocidade é uma falena de ouro,
Dela é que irrompe o sol do bem mais puro:
Vamos! Erguei vosso ideal tão louro
Para remir o universal futuro...
O pensamento é como o mar -- rebenta,
Ferve, combate -- herculeamente enorme
E como o mar na maior febre aumenta,
Trabalha, luta com furor -- não dorme.
Abri portanto a agigantada leiva,
Quebrando a fundo os espectrais embargos,
Pois que entrareis, numa explosão de seiva,
Muito melhor nos panteões mais largos.
Vão desfilando como azuis coortes
De aves alegres nas esferas calmas,
Na atmosfera espiritual dos fortes,
Os aguerridos batalhões das almas.
Quem vai da sombra para a luz partindo
Quanta amargura foi talvez deixando
Pelas estradas da existência -- rindo
Fora -- mas dentro, que ilusões chorando.
Da treva o escuro e aprofundado abismo
Enchei, fartai de essenciais auroras,
E o americano e fértil organismo
De retumbantes vibrações sonoras.
Fecundos germens racionais produzam
Nessas cabeças, claridões de maios...
Cruzem-se em vós -- como também se cruzam
Raios e raios na amplidão dos raios.
Os britadores sociais e rudes
Da luz vital às bélicas trombetas,
Hão de formar de todas as virtudes
As seculares, brônzeas picaretas.
Para que o mal nos antros se contorça
Ante o pensar que o sangue vos abala,
Para subir -- é necessário -- é força
Descer primeiro a noite da senzala.
__________
Da Lua aos raios prateados
Que no horizonte se espargem,
Como fulguram os prados
Da lua aos raios prateados,
Há vagos silfos alados
Do rio azul pela margem
Da lua aos raios prateados
Que no horizonte se espargem.
__________
Teus olhos belos por dentro
De grandes colorações,
Parecem ter pelo centro
Teus olhos belos por dentro
A luz vital onde eu entro
E saio imerso em clarões...
Teus olhos belos, por dentro
De grandes colorações.
ADALZIZA
Tens um olhar cintilante,
Tens uma voz dulçurosa,
Tens um pisar fascinante,
Tens um olhar cintilante
Cheio de raios, faiscante
Ó criatura formosa,
Tens um olhar cintilante,
Tens uma voz dulçurosa!...
[TEUS OLHOS]
Teus olhos -- esses carinhos,
Esse casal de ilusões
Tão doces como os arminhos,
Teus olhos -- esses carinhos
Parecem ser os dois ninhos
Das minhas consolações,
Teus olhos -- esses carinhos
Esse casal de ilusões!...
SER PÁSSARO
Ah! Ser pássaro! ter toda a amplidão dos ares
Para as asas abrir, ruflantes e nervosas,
Dos parques através e dos moitais de rosas,
Nos floridos jardins, nas hortas e pomares.
Ser pássaro, cantar, subir, voar na altura,
Pelos bosques sem fim, perder-se nas florestas,
Das folhagens do campo em meio da espessura,
Das auroras de abril nas cristalinas festas.
Tecer no tronco seco ou no tronco viçoso
O quente lar do amor, o carinhoso ninho,
De onde sairá mais tarde o pipilar mavioso
De um outro mais gentil e meigo passarinho.
Não temer o verão e não temer o inverno
Para tudo alcançar na leve subsistência,
No contínuo lidar, no labutar eterno,
Que é talvez da alegria a mais feliz essência.
Viver, enfim, de luz e aromas delicados
Nascido dentre a luz, gerado dentre aromas,
Sonorizando o azul, sonorizando os prados
E dormindo da flor sob as cheirosas comas.
Voar, voar, voar, voar eternamente,
Extinguir-se a voar, no matinal gorjeio,
E ser pássaro, é ter em cada asa fremente
Um sol para aquecer o frio de algum seio.
O BOTÃO DE ROSA
A uma atriz
O campo abrira o seio às expansões frementes
Das árvores senis, dos galhos viridentes.
Caía a tarde fresca
Loira, gentil, vivaz como a canção tudesca.
A iluminada esfera
Calma, profunda, azul como um sonhar de virgem,
Dava um brilho-cetim às verdes folhas dhera.
No ar uma harmonia avigorada e casta,
No crânio uma vertigem
Duma idéia viril, duma eloqüência vasta.
Tardes formosíssimas,
Ó grande livro aberto aos geniais artistas,
Como tanto alargais as crenças panteístas,
Como tanto esplendeis e como sois riquíssimas.
Quanta vitalidade indefinida, quanta,
Na pequenina planta,
No doce verde-mar dos trêmulos arbustos,
Que misticismo, justos,
Bebia a alma inteira ao devassar o arcano
Das árvores titãs, das árvores fecundas
Que tinham, como o oceano,
Febris palpitações intérminas, profundas.
Esplêndidas paisagens
Opunhas o largo campo às vistas deslumbradas.
As múrmuras ramagens,
À luz serena e terna, à luz do sol -- que espadas
De fogo arremessava, em frêmitos nervosos,
Pelo côncavo azul dos céus esplendorosos,
Tinham falas de amor, segredos vacilantes
Finos como os brilhantes.
A música das aves
Cortava o éter calmo, em notas multiformes,
Límpidas e graves
Que estouravam no ar em convulsões enormes.
Aqui e além um rio
Serpejava na sombra, em meio de um rochedo
Áspero e sombrio.
O olhar perscrutador, o grande olhar, sem medo
E o espírito mudo,
Como um herói gigante avassalavam tudo...
Nuns madrigais risonhos
Abria-se o país fantástico dos sonhos.
Alavam-se os aromas
Leais, inexauríveis
Das largas e invisíveis
Selváticas redomas.
A seiva rebentava
Em ondas -- irrompia
Na doce e maviosa e plácida alegria
De uma ave que cantava,
Dos belos roseirais
Que ostentavam a flux as rosas virginais.
E as jubilosas franças
Dos árvoredos altos,
Rígidos, atléticos,
Derramavam no campo uns fluidos magnéticos
Dumas vontades mansas.
A doce alacridade ia explosindo aos saltos.
E toda a natureza
Robusta de saúde e estrênua de grandeza
Libérrima e vital,
Erguia-se pujante, audaz e redentora,
No gérmen material da força criadora,
Dentre a vida selvagem mística, animal...
Dos roseirais preciosos
Nos renques primorosos,
Numa linda roseira abria castamente,
Como um sonho de luz numa cabeça ardente,
O mais belo, o mais puro entre os botões de rosa.
Tinha essa cor formosa,
Tinha essa cor da aurora,
Quando ensangüentada em rubro a vastidão sonora
Era um botão feliz
Sorrindo para o Azul, zombando da matéria.
Tinha o leve quebranto e a maciez etérea
Que uma estrofe não diz.
Das pétalas macias,
Das pétalas sanguíneas,
Doces como harmonias
Brandas e velutíneas
Uns perfumes sutis se espiralavam, raros,
Pela mansão do Bem, pelos espaços claros.
Perfumes excelentes,
Perfumes dos melhores,
Perfumes bons de incógnitos Orientes.
Matéria, não deplores
O viver natural dos vegetais alegres;
Eles são mais ditosos
Que os nababos e reis nos seus coxins pomposos;
E por mais que tu regres
Ó matéria fatal, a tua vida inteira,
No rigor da higiene;
E por mais que a maneira
Do teu grande existir, desse existir -- perene
De ironias e pasmos,
Explosões de sarcasmos
Tu completes, matéria -- ó humanidade ousada --
Com a ciência altanada;
E por mais que no século,
Tu mergulhes a idéia, o prodigioso espéculo,
Será sempre maior e exuberante e forte,
Ó matéria fatal,
Essa vida tão rica
Que se corporifica
Na valente coorte
Do poder vegetal.
Era um botão feliz,
Cuja roseira, impávida,
Ébria de aromas bons, ébria de orgulhos -- ávida
De completa fragrância,
Palpitava com ânsia
Desde a própria raiz.
E entanto o sol tombara e triunfantemente
Como um supremo Rubens,
Jorrando à curvidade etérea do poente,
O ouro e o escarlate, aprimorando as nuvens,
Numa distribuição simpática de cores,
De tintas e de luzes
De galas e fulgores
Rubros como o estourar dos fervidos obuses.
O cérebro em nevrose,
No pasmo que precede a augusta apoteose
De uma excelsa visão perfeitamente bela,
De uma excelsa visão em límpidos dóceis,
Exaltava o acabado artístico da Tela
E o gosto dos pincéis.
Caíam da amplidão em névoas singulares
Os pálidos crepúsculos.
Os fúlgidos altares
Do homem primitivo -- a relva, o prado, o campo
Onde ele ia buscar a força de uma crença
Que então lhe iluminasse a alma escura e densa
Morriam de clarões -- os poderosos músculos
Da fértil mãe de tudo -- a natureza ingente --
Deixavam de bater. -- O olhar do pirilampo
Oscilava, tremia -- azul, fosforescente.
As sombras vinham, vinham
Lembrando um batalhão despectros que caminham
E a casta nitidez sintética das cousas
Tomava a proporção das funerárias lousas.
Completara-se então o mais extraordinário,
O mais extravagante
Dos fenômenos todos:
A noite. -- Enfim descera a treva do Calvário,
A treva que envolveu o Cristo agonizante.
Coaxavam negras rãs nos charcos e nos lodos.
A abóbada espaçosa, a física amplitude,
Mostrava a profundez da angústia de ataúde
De um operário pobre,
Quando se escuta o dobre
Amplíssimo e funéreo,
Sinistro e compassado,
Rolar pela mansão gloriosa do mistério,
Assim com um soluço aflito, estrangulado.
Devia ser, devia
Por uma noite assim,
Como esta noite igual,
Que derramou Maria
A lágrima da dor, -- que o célebre Caim
Sentiu do crânio as convulsões do Mal.
Mas o botão de rosa,
Traído pelo estranho zéfiro da sorte,
Rolou como uma cisma
Intensa e luminosa
Ardente e jovial em que a razão se abisma
E foi cair, cair no pélago da morte,
Em um dos mais raivosos,
Em um dos mais atrozes
Rios impetuosos,
Cheios de surdas vozes,
Sozinho, em desamparo, assim como um proscrito,
Em meio à placidez
Dos astros no infinito
E a mesma irracional e fúnebre mudez.
Depois e além de tudo,
Além do grave aspecto inteiramente mudo,
Ao tempo que morria
O cândido botão -- em um dos tantos galhos
Virentes da roseira -- alegre no ar se abria
Um outro que ostentava as pétalas sedosas,
As pétalas gracis de cores deliciosas,
De cores ideais.
As auras musicais
Passavam-lhe de leve,
Nos tímidos rumores,
De um ósculo mais breve
E dentre a exposição das delicadas flores,
Das rosas -- o botão
Aberto ultimamente as cúpulas austeras,
As plagas da esperança, a irmã das primaveras,
Pendido um quase nada, esbelto na roseira,
Mostrava aquela unção,
A ínclita maneira
De quem se glorifica
Subindo ao céu azul da majestade pura,
Da eterna exuberância,
Da fonte sempre rica,
Da esplêndida fartura
Da luz imaculada -- a egrégia substância
Que faz das almas claras
Pela fecundidade olímpica do amor,
Magníficas searas,
De onde se difunde a vida sempiterna,
A vida essencial, a lei que nos governa,
A idéia varonil do poeta sonhador.
A arte especialmente, esse prodígio, atriz,
Como o botão de rosa
Tão meigo e tão feliz,
Pode ser arrojada e brutalmente, ao pego,
Na treva silenciosa,
Onde o espírito vai, atordoado e cego,
Cair, entre soluços,
Como um colosso ideal tombado ao chão de bruços,
Ou pode equilibrar-se em admirável base
Estética e profunda,
Assim, bem como o outro, a mais radiosa altura.
Deves sondá-la bem nesta segunda fase.
Precisas para isso uma alma mais fecunda.
Precisas de sentir a artística loucura.
__________
Ó Adalziza dos sonhos;
Estrela dos firmamentos
Dos meus cantares risonhos
Ó Adalziza dos sonhos
Rasga esses véus enfadonhos
Dos teus louros pensamentos,
Ó Adalziza dos sonhos,
Estrela dos firmamentos.
__________
Enquanto este sangue ferve
Com força, com toda a força,
Palpite a fibra da verve
Enquanto este sangue ferve
Esmague-se o que não serve
Na treva o Mal se contorça,
Enquanto este sangue ferve,
Com força, com toda a força.
__________
Como um cisne, estalma frisa
O mar de luz de teus olhos,
Ó simpática Adalziza
Como um cisne, estalma frisa,
Vagueia, paira, desliza
Sem naufragar nos escolhos
Como um cisne, estalma frisa
O mar de luz de teus olhos.
__________
Merece o bom do Vidal
Que é mesmo um Joca de truz,
Ter também com o seu Fiscal,
Merece o bom do Vidal
Um banquete bambual,
De cem milhões de bambus
Merece o bom do Vidal
Que é mesmo um Joca de truz!
__________
Zulmira dos meus amores,
Zulmira das minhas cismas,
Resplandece como as flores,
Zulmira dos meus amores
Abre os olhos sedutores
Nos quais a minh'alma abismas,
Zulmira dos meus amores,
Zulmira das minhas cismas.
__________
Deixai que a minh'alma escassa
De luz -- aos astros emigre
Como gaivota que passa
Deixai que a minh'alma escassa
De amor -- na plúmbea desgraça
De atrozes garras de tigre,
Deixai que a minh'alma escassa
De luz -- aos astros emigre.
__________
Quando ela está de colete,
Espartilhada, irradiante
Vestida de azul-ferrete
Quando ela está de colete
Em mim cruzando o florete
Do seu olhar -- que elegante
Quando ela está de colete,
Espartilhada, irradiante.
__________
Ó cintilante Quiquia,
Menina dos meus olhares,
Flor azul da simpatia,
Ó cintilante Quiquia,
Rasga este céu da alegria
Dos meus risonhos cantares,
Ó cintilante Quiquia,
Menina dos meus olhares.
__________
Olhos pretos, sonhadores
Ó celeste Carolina,
Como são esmagadores
Olhos pretos sonhadores,
Como vibram dos amores
A noss'alma cristalina,
Olhos pretos, sonhadores,
Ó celeste Carolina.
__________
Se estala a estrofe de fogo,
Se explose a estrofe do Bem,
Como o verbo demagogo
Se estala a estrofe de fogo,
Não ceda o espírito ao rogo
Do Mal que os erros contêm,
Se estala a estrofe de fogo,
Se explose a estrofe do Bem!
AMOR!!...
Oferecido à Ilma. Sra. D. Pêdra
como prova de imensa amizade e profundo amor
que lhe consagra.
O Autor.
Amor, meu anjo, é sagrada chama
Que o peito inflama na voraz paixão,
Amo-te muito eu to juro ainda
Deidade linda que não tem senão!
Virgem formosa, dencantos bela,
Gentil donzela, meu amor é teu.
Vou consagrar-te mil afetos tantos
Puros e santos qual também Romeu!
Flor entre as flores, a mais linda, altiva
Qual sensitiva, só tu és, ó sim.
Esses teus olhos sedutores, belos
De mil anelos, me pedirão a mim.
Anjo, meu anjo, eu te adoro e amo.
Por ti eu chamo nas horas de dor.
Sem ti eu sofro; um sequer instante
De ti perante só me dás valor.
Meu peito em ânsias só por ti suspira
Como da lira a vibrante voz!
Te vendo eu rio e senão gemendo
Vou padecendo saudade atroz!
Amor ardente de meu coração
Santa paixão em todo peito forte
Eu hei de amar-te até mesmo a vida
Deixar, querida, e abraçar a morte!
__________
Ó Flora, ó ninfa das rosas,
Ó frescura dos morangos,
Abre as pupilas radiosas,
Ó Flora, ó ninfa das rosas,
Dá-me as estrelas formosas
Do olhar repleto de tangos,
Ó Flora, ó ninfa das rosas,
Ó frescura dos morangos.
__________
Morena dos olhos pretos
Dos olhos pretos, morena,
Escuta os vagos duetos
Morena dos olhos pretos,
Faremos ambos, tercetos,
Com esta esfera serena,
Morena dos olhos pretos,
Dos olhos pretos, morena.
__________
Embora eu não tenha louros
Como esses grandes heróis
E nem da idéia os tesouros,
Embora eu não tenha louros,
Talvez nos tempos vindouros
Traduza o poema dos sóis,
Embora eu não tenha louros
Como esses grandes heróis.
__________
Ó Alzira, Alzira, Alzira,
Estrela resplandecente,
Resplandecente safira,
Ó Alzira, Alzira, Alzira,
As vibrações desta lira,
Acorda do sono ardente,
Ó Alzira, Alzira, Alzira,
Estrela resplandecente.
__________
Aos relâmpagos sulfúreos
Na esfera zigue-zagando
Como esses pobres tugúrios,
Aos relâmpagos sulfúreos
Se douram, brilham purpúreos
Fulguram de quando em quando,
Aos relâmpagos sulfúreos
Na esfera zigue-zagando.
__________
À sombra espessa de um álamo
Quando nasceu-me a paixão,
Crescendo aos beijos do tálamo
À sombra espessa de um álamo
Que de harpas senti, que cálamo
Por dentro do coração
A sombra espessa de um álamo
Quando nasceu-me a paixão.
ROSA
a A. Moreira de Vasconcelos
Et, rose, elle a vécu ce que vivent les roses,
lespace d'un matin.
(Malherbe)
Rosa -- chamava-se a estrela
Daquelas flóreas paragens;
Era escutá-la e era vê-la
Metida em brancas roupagens
Todas de pregas e tufos,
De laçarotes e rendas,
Ou mesmo ouvir-lhe os arrufos
Ou surpreender-lhe as contendas
Nas lindas tardes radiadas
Por cores de silforamas
E sentir logo, inspiradas
Do amor, as férvidas chamas.
Ela era um beijo fundido
Ao cintilar de uma aurora,
Um sonho eterno espargido
Nos belos sonhos de Flora.
E tinha uns longes sublimes
De grande força lasciva,
A transudar, como uns crimes
Do sangue, da carne altiva.
Contava tudo... mas tanto,
Em turbilhões, em cascata,
Que recordava esse canto
Uma garganta de prata.
E quando os poetas, rapazes,
A viam passar, vibrante,
Mostrando as curvas audazes,
Do corpo todo radiante,
Diziam de entre os primores
De estrofes mais dulçurosas:
-- Tu és a gêmea das flores,
Das rosas, perfeitas rosas.
Convulsionado e sem regra
O coração nos palpita;
Andas alegre e se alegra
A gente quando te fita.
Tens umas coisas estranhas
Nas refrações da pureza...
Umas finuras tamanhas...
Uma sutil gentileza...
Ficas rosada se um tico
Alguém te diz, de mais franco...
Mas como fica tão rico,
Tão belo o rubro no branco,
Nesse grácil e tão claro,
Sereno e cândido rosto
Que é mesmo um céu puro e raro
Das alvoradas de agosto.
Depressa cobre-te o pejo
A face nova e adorada,
De sorte que sem desejo
És -- Rosa e ficas rosada.
Dos risos colhes a messe
E és doce como o conforto,
És casta como uma prece
Gemida ao lado de um morto.
Para que a dor não te obumbre
A glória de flores junca
Tua vida e, por isso, nunca
Nas mágoas terás vislumbre.
Permita o bom sol que inunda
De luz os bosques -- permita
Que sejas sempre fecunda
De gozo e sempre bonita.
Agora, quando alguém passa
Por onde a estrela morava,
Olhando pela vidraça
Bem junto da qual bordava,
Repara um silêncio triste
Na sala -- em crepes envolta,
Onde parece que existe
Profunda lágrima solta.
E sente por dentro dalma
Aquela angústia que esmaga
Bem como em noites sem calma
A vaga esmaga outra vaga.
Apenas as flores lindas
Que vendo Rosa morriam
Com brejeirices infindas
De invejas que renasciam,
Sem mais inúteis ciúmes,
Abrem os frescos pistilos,
Jogando aos céus, em perfumes,
Os seus melhores sigilos.
No entanto a luz soberana
Do amor desfilam as rimas
Dos poetas -- como um hosana
A quem já goza outros climas.
Rosa -- chama-se a estrela
Daquelas flóreas paragens;
Era escutá-la e era vê-la
Metida em brancas roupagens,
Para exclamar: -- Dentro dela
Existe a fibra gloriosa...
Ninguém viu coisa mais bela
Nem Rosa... tão bela rosa!...
__________
Quando estás de laçarotes
E de plissês e fichus,
De rendas e de decotes,
Quando estás de laçarotes,
Toilette de chamalotes,
Quanto esplendor, quanta luz,
Quando estás de laçarotes
E de plissês e fichus.
__________
Da idéia nos mares jônios
A barca das tuas cismas
Soprada por bons favônios
Da idéia nos mares jônios,
Vai livre dos maus demônios,
Batida da luz dos prismas,
Da idéia nos mares jônios
A barca das tuas cismas.
__________
-- Como um assombro de assombros
A rapariga -- um rainúnculo,
Da serra pelos escombros
Como um assombro de assombros,
Quando vê de enxada aos ombros
O noivo -- lembra um carbúnculo,
Como um assombro de assombros
A rapariga -- um rainúnculo.
__________
-- Como fortes gargalhadas
Por um templo de cristal,
Sonoramente vibradas,
Como fortes gargalhadas,
Sinto idéias baralhadas
Num frágil descomunal
Como fortes gargalhadas
Por um templo de cristal.
__________
Da bruma pelos países
Pelos países da bruma,
Longe dos astros felizes,
Da bruma pelos países,
Tu vais perdendo os matizes
Da luz e da glória em suma,
Da bruma pelos países,
Pelos países da bruma.
SAUDAÇÃO
Ao Liceu de Artes e Ofícios
Como esta luz é serena,
Como esta luz é sincera;
Como eu vejo a primavera
Num lápis e numa pena.
Que prismas de luz ardente,
Que prismas de luz suave;
Como eu sinto um canto de ave
Em cada boca inocente.
Sim! Que o estudo é como a aurora
Que nos entra pela casa,
Num vivo fulgor de brasa,
Vibrante, alegre, sonora.
Ele rasga a treva espessa,
Num só momento -- cantando;
Vai estrelas semeando
Em cada tenra cabeça.
Tira os crânios do letargo
Da ignorância -- pois entra
Como um sol e se concentra
Num esplendor muito largo.
Quem, ó Arte imaculada,
Medisse o ser da criança,
Pela alma de uma esperança
Pela alma de uma alvorada.
Quem aos páramos subindo,
Eternamente pudesse,
Dos astros a loura messe
Arrancar -- depois abrindo
Os peitos das criancinhas
Jogá-los dentro e beijá-las
Cheias de pompa e das galas
Que a luz concede às rainhas!...
Pois que a treva entre fulgores,
É como, dentre ataúdes,
Rebentar como virtudes,
As mais simpáticas flores.
Ah! Ninguém sabe, por certo,
Quanto é bom, quanto é saudável,
Sentir a crença adorável
Como um clarão sempre aberto.
Ver os germens do futuro
No campo eterno da escola
Brilhando como a corola
De um lírio cândido e puro.
Ver morrer -- como uns invernos
Da vida, os velhos colossos
E ver erguerem-se os moços
Como verões sempiternos.
Mães, ó mães tão estremosas,
Dos vossos ventres fecundos
Saem todos esses mundos
Das idéias fulgurosas.
Tudo isso quanto há escrito
De pensamento e crenças
Saiu das fontes imensas
De um grande amor infinito.
E desde a escrita a leitura
E desde um livro a uma carta,
A bondade sempre farta
Das mães -- esplende e fulgura.
Bom dia ao mestre que é guia
Das belas crianças louras!
Bom dia às mães porvindouras,
À mocidade -- Bom dia!
FRÊMITOS
I
Ó pombas luminosas
Que passais neste mundo eternamente
Só a cantar os madrigais de rosas,
Atravessados de um luar veemente,
Inundados de estrelas e esplendores,
De carinhos, de bênçãos e de amores.
II
Ó virgens peregrinas,
De meigo olhar banhado de esperanças,
Que perfumais com lírios e boninas
A aurora de cristal das louras tranças,
Que atravessais constantemente a vida
Do sol eterno, da visão florida.
III
Amadas e felizes
Gêmeas da luz das frescas alvoradas,
Vós que trazeis nas almas as raízes
Do que é são, do que é puro -- ó vós amadas
Prendas gentis do paternal tesouro,
Iriados corações de fluidos de ouro.
IV
É para vós que eu quero
Engrinaldar de tropos e de rimas,
Num doce verso artístico e sincero,
Esgrimir com belíssimas esgrimas
A estrofe e dar-lhe os golpes mais seguros
Para que brilhe como uns astros puros.
V
É só a vós, apenas,
Que eu me dirijo, límpidas auroras,
Que pelas tardes plácidas, serenas,
Passais, galantes como ingênuas Floras,
Coroadas de flor de laranjeira,
Noivas, sorrindo à mocidade inteira.
VI
Porque é de vós que deve,
De vós que o sonho eterno dulcifica,
Partir o lume quando cai a neve,
Surgir a crença poderosa e rica.
Porque afinal, o que se chama crença,
Senão o amor e a caridade imensa?
VII
Os tristes e os pequenos
Em quem descansam brandamente os olhos,
Esses humildes, rotos Nazarenos
Que vivem, morrem suportando abrolhos,
Senão nos grandes entes piedosos
Que dão-lhes força aos transes dolorosos?
VIII
Oh, sim que a força eterna
Parte dos corpos rijos da saúde,
Perante a lei da vida que governa,
O nobre, o rei, o proletário rude;
Parte dos seres fartos de carinhos
Como de paz e de alegria os ninhos.
IX
Eu peço para todos
E peço a vós que sois as fortalezas
Da esperança, da fé -- a vós que os lodos
Da miséria, do vício, das baixezas,
Não denegriram essas consciências
Castas e brancas como as inocências.
X
Nem se esperar devia
Que eu tentasse bater a outras portas,
Quando vós sois o exemplo de Maria;
Não andais mudas, regeladas, mortas
Pela noite voraz da sepultura
E escutareis os dramas da amargura.
XI
Não julgueis que eu vos peça,
Uma alvorada feita de um sorriso;
A minh'alma garante e vos confessa
Que se crê nas mansões do Paraíso,
É porque vós reinais por sobre a terra
E o Paraíso dentro em vós se encerra.
XII
A vós, a vós compete
A glória do dever -- porque assim como
A luz do sol na lua se reflete,
Também das aflições no duro assomo,
Da pobreza refletem-se nas almas,
Vossas imagens, como auroras calmas.
XIII
Portanto, a mocidade
Vossa, terá de ser de hoje em diante,
Enquanto a esmagadora atrocidade
Da peste -- nos vorar dinstante a instante,
Quem se há-de encarregar desta manobra
Do galeão da vida que sossobra.
XIV
E para isso, ó rainhas
Da juventude -- tendes as quermesses
Que dão bons frutos assim como as vinhas;
As matinées de cânticos e preces,
Os cintilantes, pródigos bazares
Onde a luz salta extravasando em mares.
XV
Enquanto a mim, na arena
Da heroicidade humana que consola,
Oh, faz-me bem a vibração da pena,
Pelo amor, pelo afago, pela esmola,
Como um radiante e fulgido estilhaço
De sol febril no mármore do Espaço!
GUSLA DA SAUDADE
A Santos Lostada
pela morte do seu velho pai.
Nunca mais, nunca mais esses teus olhos
Palpitarão nos olhos seus honestos
Nem hão de vê-lo em ânsias por escolhos.
Ele morreu, morreu -- e os mais funestos
Lutos da dor feriram como abrolhos
Teu lar e os teus -- serenos e modestos.
Que incalculável explosão de prantos
Não inundou as almas preciosas
Dos teus irmãos, da tua mãe -- uns santos
Que peregrinam nestas lacrimosas
Sendas da vida, em mágoas, sem encantos
Como sem luz e sem orvalho as rosas.
Ah! formidável lei cruel da vida,
Lei da matéria, da mudez das lousas,
Da eterna noite atroz, indefinida;
Tens o segredo intérmino das cousas,
E nessa dura e tenebrosa lida,
Oh! nem sequer um dia só repousas.
Quem sabe, ó morte, ó lúgubre, quem sabe
O teu poder fatal, desapiedado
Onde se oculta e se resume e cabe.
Pois nem que o céu puríssimo, azulado
Cair aos pedaços, tombe e se desabe
Na profundez do abismo ilimitado
E a crença humana espavorida, em gritos,
Palpando o nada, esquálida, gemendo
Rasgue a amplidão de estranhos infinitos,
Nunca da morte saberão o horrendo
Mistério rijo e surdo dos granitos
Os corações que vivem combatendo?!...
Não! A Ciência penetrou, o estudo
Do pensador, abriu mais horizontes
Nesse problema silencioso e mudo.
O pensamento constelou as frontes,
Deu a razão o mais brunido escudo
E construiu as luminosas pontes
De onde se vai, com grande olhar, seguro,
Atravessar as regiões sonoras
Dos Ideais que irrompem do Futuro;
E sem contar dos séculos as horas,
E sem temer as mil visões do Escuro,
Alegremente ao fresco das auroras.
Mas entretanto, ó meu amigo, escuta,
Toda a saudade, a grande nostalgia
Nos deixa frios, mortos para a luta.
Porque, olha, a morte é sempre uma agonia!
SMORZANDO
O véu da tarde cai pelas quebradas
Das serras altaneiras;
As aves condoreiras
Rompem da mata em místicas risadas
O largo espaço intérmino cindindo.
A livre natureza,
Humildemente, pura, vai caindo,
Caindo de joelhos
Como esse denso véu
Cai na viril e rútila grandeza
Do sol que desce em borbotões vermelhos
Como uma mancha tropical no céu.
E vibra a Ave-Maria
Como um soluço, estranho, indefinido;
Talvez como um gemido
Dentre a escalvada e agreste serrania.
E desce e desce e desce
De toda a imensidade
A salutar carícia de uma prece,
O eflúvio da saudade
Que alaga o nosso peito heroicamente
Como o luar de um treno
Mavioso e emoliente,
Mais doce que o sorrir do Nazareno.
GIULIETTA DIONESI
(Desterro)
Ao seu violino
Ah! Giulietta! Os sons do teu violino
Choram, suspiram, rugem como o leão
Lembram sonoro rio cristalino
E tem soluços como um coração.
Ó da harmonia divinal sereia!
Rosas e estrelas e canções de ninhos
Nas cordas do violino que gorjeia
Passam cantando como os passarinhos.
Não sei que estranho espírito sereno
Para a harmonia essa alma te inspirou
Que dentro dum violino tão pequeno
A música do espaço concentrou!
Ah! peregrina do país do sonho
Flor luminosa de região sonora,
No teu suave coração risonho
Vibram triunfantes os clarins da aurora.
Tudo dentro de ti gorjeia e trina,
Como trina e gorjeia o rouxinol
Nas paisagens silvestres da campina,
Aos esplendores siderais do sol.
Quem não há de chorar e rir não há de
De amor, de saudade e de esperança,
De assombro, vendo que na tenra idade
Já és tão grande, sendo uma criança?!
Os astros do cerúleo firmamento,
As meigas flores, o infinito mar
Que digam como tu nesse instrumento
Sabes sorrir e sabes soluçar...
Domadora feliz do som profundo,
Deusa imortal de ignotas harmonias,
Vai triunfar nas vastidões do mundo,
Da glória nas eternas sinfonias.
FILETES
(Desterro)
I
Ó pérola nitente,
Ó pérola do amor,
Ó imã redolente
Das pétalas da flor;
Ó lágrima sutil,
Ó lágrima ideal,
Do côncavo de anil
Caída no cristal
Do lago transparente,
Harmoniosamente,
Aos flocos do luar...
Tu és como as essências,
Conheces as ciências
Ocultas... de matar!
II
Cintila a estrela-dalva
Bem como o olhar do crente!
Perpassa no ambiente
O fresco olor da malva.
Um tic de lirismo,
Simpático e harmônico,
Derrama no sinfônico
Riacho -- um misticismo.
Há músicas supremas,
Um mundo de problemas
Nos montes seculares.
E como um lírio roxo,
A alma em canto frouxo
Emigra para os ares.
VERSOS À INFÂNCIA
(Desterro)
Nos roseirais, ao vir da madrugada,
Desabrocham no val todas as rosas,
Nos galhos cheios de uma luz doirada,
Meigas e frescas, rubras, perfumosas,
Nos roseirais, ao vir da madrugada.
Como em bocas cheirosas e vermelhas
Pousam beijos de amor e de ventura,
O mel lhe sugam todas as abelhas
Pousando em cima da corola pura
Como em bocas cheirosas e vermelhas.
Desde os campos, o bosque, até aos montes
Tudo renasce num jardim de flores;
E pelo azul do céu, nos horizontes,
Há os mais vivos, raros esplendores,
Desde os campos, o bosque, até aos montes.
Pelos ninhos sonoros, delicados,
Cantam e trinam muitos passarinhos
Nos altos arvoredos enflorados,
A margem verdejante dos calminhos,
Pelos ninhos sonoros, delicados.
As borboletas brancas e amarelas,
Azuis, cor de ouro, cor de prata e brasa,
Leves, ligeiras, tênues e singelas,
Abrem a fine talagarça da asa,
As borboletas brancas e amarelas.
Tudo no val acorda de desejos
À musica dos cantos mais risonhos;
E as aves soltas, peregrinos beijos,
Dizem, cantando, que através de sonhos
Tudo no val acorda de desejos.
II
Na alma da infância, tal e qual roseiras,
Abrem festões de límpida fragrância
Os sonhos e as quimeras passageiras
Que são mais próprias do vergel da infância,
Na alma da infância, tal e qual roseiras.
O pequenino coração ditoso
Canta canções de uma ave pequenina;
E é um encanto ver assim radioso
No peito de uma cândida menina
O pequenino coração ditoso.
A existência de sol das criancinhas
Lembra um pomar de frutas bem serenas,
Por onde os colibris e as andorinhas
Gozam amores sacudindo as penas,
A existência de sol das criancinhas.
Não sei dizer se adore mais crianças
Ou mais também as flores de um arbusto;
Nessas tão puras, castas semelhanças
Eu, para ser bem carinhoso e justo,
Não sei dizer se adore mais crianças.
TRISTE
(Desterro)
Em junho, que é mês do frio,
Perdes todo o colorido,
Tens um tom vago e sombrio
De dor, de mágoa e gemido.
Não sei que tristeza é essa
De tão doloroso cunho
Que perdes a cor depressa
Assim que vem vindo junho.
Ficas branca e desmaiada,
Lembrando a lua serena,
Fraca, pálida e gelada,
Como frágil açucena.
Vão-se-te as rosas da face
Emurchecendo e sumindo
Num crepúsculo vivace
De tudo o que estas sentindo.
Ai! no entanto pelos prados
Onde os dias resplandecem
Risonhas como noivados
Em junho as rosas florescem...
FONTE DE AMOR
Trago-a à tua presença
Para que vejas a imensa
Mágoa atroz que a devorou.
E saibas, ó flor das flores,
Que a fonte dos seus amores
Eternamente secou.
Foste à fonte buscar água
E tinha secado a fonte.
Aí, flor azul do monte,
Tiveste a primeira mágoa.
Porém se uma alma na frágua
Das dores sem horizonte
Queres ver, sentir defronte
Dos olhos, manda que eu trago-a.
NAUFRÁGIOS
(Desterro)
I
O Mar! O mar! Quem nunca viajasse...
Quem nunca dentre dúvidas sentisse
O coração e ai, nunca embarcasse...
Oh! quem do mar as cóleras punisse!
Ora o mar e sereno, e calmo, e manso,
As vagas são melódicos arpejos
Dando à embarcação leve balanço,
Como um afago maternal de beijos.
Ora o mar franco, livre e transparente,
Tão tranqüilo que está, tão brando, rindo,
Que até parece, que até cuida a gente
Que os corações podem boiar, dormindo.
Ora ferve, rebenta, estoura, estala,
Rude, feroz, em convulsões; profundo,
Abrindo a corpos pavorosa vala
E mundos de agonia num só mundo!
II
Filho! Filho! Adeus, querido,
Vou viajar para além,
Sejas de Deus protegido...
Que sempre me queiras bem.
Vou deixar-te nesta terra,
Entregue aos destinos teus;
Filho, o que este adeus encerra
Só o pode saber Deus.
Levo as crenças em pedaços,
Como pedaços de céus.
Vou ver mar, vou ver espaços
Ver temporais, escarcéus.
Filho amado, vou deixar-te
Cá na terra, pelo mar;
Porem, crê, de qualquer parte,
Crê, meu filho, hei de voltar.
III
Adeus, noiva, vou-me embora,
Vou-me com Deus, é preciso.
Que colhas em cada aurora
Muita messe de sorriso.
Sou soldado, o meu destino
É viver bem longe, é certo,
Longe do canto divino
Da tua voz, sol aberto.
Custa bem esta partida
A mim que entanto sou forte.
Ninguém sabe o que é a vida
Para quem vive da morte.
Da morte, sim, pomba amada;
Que as minhas crenças já mortas
Tu, com essa alma estrelada
Sem tu sequer me confortas.
Perdi pai, perdi carinhos
De mãe, de irmãos e de todos.
Eu sou como a flor de espinhos
Nascida por entre lodos.
Tu vieste, ó noiva, apenas,
Como um íris de esperanças,
Dar-me alvoradas serenas,
Encher-me de confianças.
Só em ti confio, espero
Com ardor, com fé veemente,
Pomba de luz que eu venero,
Doce vésper do oriente.
Adeus, pois chegou a hora,
Vou-me com Deus, minha filha;
Não chores, que o mar não chora:
-- Olha, vê que canta e brilha.
IV
Adeus, esposa estremosa,
Vou-me, não sei para quando
Voltar -- minh'alma saudosa
Por meus filhos vai chorando.
Ficam-te eles no entretanto
Pra tirarem-te os pesares,
Para enxugarem-te o pranto
Que há de ser maior que os mares.
Maior que os mares, não minto,
Não exagero tão pouco,
Porque ai, só tu e só eu sinto
O nosso amor como é louco.
Vou-me às viagens, aos dias
Passados entre horizontes
E mares e ventanias
Sem arvoredos, sem montes.
Os dias de céus eternos
E de mar ilimitado,
Com tempo de atroz infernos
Com tempo de sol doirado.
Adeus! Cá dentro do peito
Há dois corações unidos;
Sobre um o mar tem direito,
Sobre outro -- os filhos queridos.
V
Eis as canções e adeuses de saudade
Que as desgraçadas almas palpitantes
Soluçam na sombria imensidade
Desta vida de angústias lacerantes.
Ao mar! Ao mar! Frescas aragens puras
Aflam nas ondas maviosamente.
Que balada de plácidas venturas,
Que sinfonias, que gemer dolente!
Os céus abertos, claros, luminosos
Lembram a candidez branda das virgens.
Vítreos ares, magníficos, radiosos
Onde o sol arde em férvidas vertigens.
Lindíssimos painéis, bela paisagem
Abre na vista do viajante o ouro
Da luz que salta como uma homenagem
De oriental, esplêndido tesouro.
Vai bem, vai muito bem, mesmo, o navio.
As vagas desenrolam-se de leve.
Parece um berço por de sobre um rio
Manso, prateado, espúmeo, cor de neve.
Vive-se a bordo como em terra. -- As vagas
Nunca foram tão doces e tão meigas,
Como em desertas, viridentes plagas
É doce e meigo o mole chão das veigas.
Viver assim, na realidade, é gozo
Que até parece não haver na terra!
Tão belo é o mar, tão calmo e bonançoso,
Tal confiança nos semblantes erra!
Vogando assim a embarcação, quem pensa
Ir acordado afora pela Vida?!
Tudo é um sonho de esperança imensa
Um bom sonho de aurora indefinida.
VI
Súbito os ares enchem-se de noite
E grita e zune, zargunchando o vento
Que esbraveja, morde com rijo acoite
O mar que espuma e empola num momento.
Não estrugem os raios pela treva
Não ha trovões bravios rebentando
Como canhões que estouram, -- mas se eleva
Do oceano um vendaval que vai urrando
Com fúrias e com cóleras enormes
Como potros sanhudos relinchando
Em pinotes e berros desconformes.
Caiu talvez no mar o etéreo espaço,
Toda a cúpula azul tombou, quem sabe?
Céus! há lutas ali, de braço a braço.
Horror! Crível sera que o mundo acabe?
Ninguém calcula o que será tudo isso...
Mas os ventos elétricos, largados
Nas amplidões do mar antes submisso,
Rugindo vão como desesperados.
Deus, ó meu Deus, todas as bocas gritam,
E se afervora mais e mais a crença.
Mas, onde os astros muita vez palpitam
No céu, há noite cada vez mais densa.
Ah! que mudez de túmulo nos ares.
Nada responde, oh! nada então responde;
Mas onde está o grande Deus dos mares
E da terra, onde está, aonde, aonde?
Tudo está mudo -- a natureza inteira,
Tudo emudece e não responde nada;
E só os vendavais têm a maneira
De responder dando uma gargalhada.
Gargalhada de lágrimas atrozes,
De lágrimas de morte e de agonia
Que abafa e extingue na garganta as vozes,
Gera a coragem que e a luz do dia.
O valentes e rudes marinheiros
Vindos da pátria para pátria nova,
Que sepultais amores verdadeiros
Do tão profundo coração na cova;
Ó viajantes de longe, de países
Onde a vida cintila e canta alerta
Como um turbilhão de aves felizes
Numa campina de rosais, deserta;
Ó vós todos que vindes lá do oceano,
Entre as mais bruscas e hórridas tormentas.
Lá do mar, alto, a vela, a todo o pano,
Com as almas ansiosas e sedentas,
De chegar cedo ao porto desejado,
Calculai, calculai o quanto é triste
Ver dar à praia um pobre desgraçado
Em cuja carne a podridão existe!
À praia! À praia! Dai à praia, morto,
Rejeitado por ondas convulsivas,
Indo encontrar na sepultura o porto,
Deixando ao mundo as ilusões mais vivas.
O eterno amor de mãe, de filho, esposa,
Tanta fé, tanto riso de alegria,
Tanta coisa dourada, ai tanta coisa
Que ao recordar toda a nossa alma esfria.
Morrer no mar, os nervos contraídos,
Numa asfixia atroz, cerrando os dentes,
Num abismo de cores e gemidos,
De maldições e de uivos de descrentes;
Morrer no mar, sem o farol amigo,
Esse farol que os náufragos anima,
Fora de proteção, fora de abrigo,
Sem sequer uma luz no espaço, em cima;
Morrer no mar, sem astros no infinito,
Na solidão das águas, fria, imensa,
Enquanto a treva aura de granito,
Ri-se de tudo, com indiferença;
Morrer no mar, só e desamparado
E num terror que não acaba nunca,
Vendo rasgar o corpo enregelado
O desespero como garra adunca.
É horrível! Bem sei! Mas ai daqueles
Que morrem mesmo assim lá no mar fundo
Sem ter alguém que ao menos neste mundo
Derrame uma só lágrima por eles!
CASTELÃ
Bela e mais encantadora
Do que todas as belezas,
Graça leve de pastora
Que canta pelas devesas.
Enleios de passarinho
E brilhos de primavera,
Com magnetismos de vinho
No olhar azul de quimera.
Feita de um jorro sadio
De auroras purpureadas
Carne mais fresca que um rio
De frescas águas prateadas.
Tudo é frio e tudo é raso
Para dizer-te a capricho
Que és magnólia para um vaso,
Que és arcanjo para um nicho.
És um mito da Alemanha
Vivendo em montanha alpestre,
No castelo da montanha,
Como ardente flor silvestre.
E tens as pomas à farta
Polposas, cheias de aromas.
És assim a loura Marta
Com abundância de pomas.
Esse príncipe que te ama,
Cismando, trágico e grave,
quando o luar se derrama
Cuida ouvir-te os vôos de ave.
Ele vive, airoso e belo,
Como se vive num sonho,
No seu nevoento castelo
Junto de um lago tristonho.
E através do pó flutuante
Do luar saudoso e vago
Julga que és a garça errante
Das águas verdes do lago.
ARTE
Como eu vibro este verso, esgrimo e torço,
Tu, Artista sereno, esgrime e torce;
Emprega apenas um pequeno esforço
Mas sem que a Estrofe a pura idéia force.
Para que surja claramente o verso,
Livre organismo que palpita e vibra,
É mister um sistema altivo e terso
De nervos, sangue e músculos, e fibra.
Que o verso parta e gire -- como a flecha
Que dalto do ar, aves, além, derruba;
E como os leões, ruja feroz na brecha
Da Estrofe, alvoroçando a cauda e a juba.
Para que tenhas toda a envergadura
De asa e o teu verso, de ampla cimitarra
Turca, apresente a lâmina segura,
Poeta, é mister, como os leões, ter garra.
Essa bravura atlética e leonina
Só podem ter artistas deslumbrado:
Que souberam sorver pela retina
A luz eterna dos glorificados.
Busca palavras límpidas e castas,
Novas e raras, de clarões radiosos,
Dentre as ondas mais pródigas, mais vastas
Dos sentimentos mais maravilhosos.
Busca também palavras velhas, busca,
Limpa-as, dá-lhes o brilho necessário
E então verás que cada qual corusca
Com dobrado fulgor extraordinário.nódoa
Que as frases velhas são como as espadas
Cheias de nódoa, de ferrugem, velhas
Mas que assim mesmo estando enferrujadas
Tu, grande Artista, as brunes e as espelhas.
Faz dos teus pensamentos argonautas
Rasgando as largas amplidões marinhas,
Soprando, à lua, peregrinas flautas,
Louros pagãos sob o dossel das vinhas.
Assim, pois, saberás tudo o que sabe
Quem anda por alturas mais serenas
E aprenderás então como é que cabe
A Natureza numa estrofe apenas.
Assim terás o culto pela Forma,
Culto que prende os belos gregos da Arte
E levará no teu ginete, a norma
Dessa transformação, por toda a parse.
Enche de estranhas vibrações sonoras
A tua Estrofe, majestosamente...
Põe nela todo o incêndio das auroras
Para torná-la emocional e ardente.
Derrama luz e cânticos e poemas
No verso e torna-o musical e doce
Como se o coração, nessas supremas
Estrofes, puro e diluído fosse.
Que as águias nobres do teu verve esvoacem
Alto, no Azul, por entre os sóis e as galas,
Cantem sonoras e cantando passem
Dos Anjos brancos através das alas...
E canta o amor, o sol, o mar e as rosas,
E da mulher a graça diamantina
E das altas colheitas luminosas
A lua, Juno branca e peregrine.
Vibra toda essa luz que do ar transborda
Toda essa luz nos versos vai vibrando
E na harpa do teu Sonho, corda a corda,
Deixa que as Ilusões passem cantando.
Na alma do artista, alma que trina e arrulha
Que adora e anseia, que deseja e que ama
Gera-se muita vez uma fagulha
Que se transforma numa grande chama.
Faz estrofes assim! E após na chama
Do amor, de fecundá-las e acendê-las,
Derrama em cima lágrimas, derrama,
Como as eflorescências das Estrelas...
ARTE [variação]
Como eu vibro este verso, esgrimo e torço,
Tu, o poeta moderno, esgrime e torce;
Emprega apenas um pequeno esforço,
Mas sem que nada a pura idéia force.
Para que saia vigoroso o verso,
Como organismo que palpita e vibra,
É mister um sistema altivo e terso
De nervos, sangue e músculos e fibra.
Que o verso parta e gire como a flecha
Que do alto do ar, aves, além, derruba
E como um leão ruja feroz na brecha
Da estrofe, alvoroçando a cauda e a juba.
Para que tenhas toda a envergadura
De asa, o teu verso, como a cimitarra
Turca apresente a lâmina segura,
Poeta, é mister como um leão, ter garra.
Essa bravura atlética e leonina
Só podem ter artistas deslumbrados
Que sorveram com lábios e retina
A luz do amor que os fez iluminados.
Nem é preciso, poeta, que te esbofes
Para ferir um verso que fuzile;
Põe a alma e muitas almas nas estrofes
E deixa, enfim, que o verve tamborile.
Busca palavras límpidas e novas,
Resplandecentes como sóis radiosos
E sentirás como te surgem trovas
Belas de madrigais deliciosos.
Busca também palavras velhas, busca,
Limpa-as, dá-lhes o brilho necessário
E então verás que cada qual corusca,
Com dobrado fulgor extraordinário nódoas
Que as frases velhas são como as espadas
Cheias de nódoas de ferrugem, velhas,
Mas que assim mesmo estando enferrujadas
Tu, grande artista, as brunes e as espelhas.
Que toda a vida e sensação de estilo
Está na frase, quando se coloca,
Antiga ou nova, mas trazendo aquilo
Que soa como um tímpano que toca.
Como o escultor que apenas fez de um bloco
A estátua -- com supremo e nobre afinco
Estuda a natureza num só foco:
A prata, o bronze, o cobre, o ferro, o zinco.
Estuda dos rubins, estuda do ouro
E dos corais, da pérola e safira,
Todo esse íris febril radiante e louro
Que e a centelha de sol em toda a lira.
Estuda todos os metais, estuda,
Desce a matéria prodigiosa e vasta,
Estuda nela a natureza muda,
Os veios de cristal da origem casta.
Estuda toda a intensa natureza
Feita de aromas, de canções e de asas
E sente a luz da cor e da beleza
Rir, flamejar e arder, iriar em brasas.
Faz dos teus pensamentos argonautas
Rasgando as largas amplidões marinhas
Soprando, a lua, peregrinas flautas,
Como os pagãos sob o dossel das vinhas.
Assim, pois, saberás tudo o que sabe
Quem anda por alturas mais serenas
E aprenderás então como é que cabe
A natureza numa estrofe apenas.
Assim terás o culto pela forma,
Culto que prende os belos gregos da arte
E levarás no teu ginete, a norma
Dessa transformação por toda a parte.
Enche de alegres vibrações sonoras
A tua idéia pródiga e valente,
Põe nela todo o incêndio das auroras
Para torná-la emocional e ardente.
Derrama luz e cânticos e poemas
No verso e fá-lo musical e doce
Como se o coração, nessas supremas
Estrofes, puro e diluído fosse.
Que a abelha de ouro do teu verso esvoace,
Fulja como um fuzil numa borrasca.
Que o verso quando é bom por qualquer face
Lembra um fruto saudável desde a casca.
Com arte, forma, cor, tudo isso em jogo,
Engrinaldado e rútilo de crenças
O sonho cresce -- o pássaro de fogo
Que habita as altas regiões imensas.
E canta o amor, o sol, o mar e o vinho,
As esperanças e o luar e os beijos
E o corpo da mulher -- esse carinho --
Canta melhor, vibra com mais desejo.
Canta-lhe a sinfonia dos olhares
A cálida magnólia austral das pomas,
E quando então tudo isso enfim cantares
Em tudo põe a fluidez de aromas.
Vibra toda essa luz que do ar transborda
Como todo o ar nos seres vai vibrando
E da harpa do teu sonho, corda a corda,
Deixa que as ilusões passem cantando.
Na alma do artista, alma que trina e arrulha,
Que adora e anseia, que deseja e ama,
Gera-se muita vez uma fagulha
Que explose e se abre numa grande chama.
Pois essa chama que a fagulha gera,
Que enche e que acende o espírito de força,
Sobe pela alma como primavera
De rosas sobe por coluna torsa.
Faz estrofes assim, de asas de rima,
Depois de fecundá-las e acendê-las
De amor, de luz -- põe lágrimas em cima,
Como as eflorescências das estrelas.
O DUQUE
Quando o duque voltava da caçada
Alegre num clarim daço vibrante
De alacridade moça e evigorada
Dum ruidoso e trêfego estudante.
Quando ele vinha com seu ar bizarro
De atravessar os vales e as colinas,
Sadio aspecto fresco como um jarro
Cheio de leite às horas matutinas.
Em toda a aristocrática varanda
Alta e vistosa, ampla, aberta em janelas,
Ele vibrava, de uma e outra banda,
Cancões de amor, nostálgicas e belas.
Do salão nobre entre tapeçarias
De Gobelins, riquíssimas e raras,
Iam vibrando aladas harmonias
Da sua voz, esplêndidas e claras.
Todas as fluidas, leves, calmas, frescas
Manhãs azuis, serenas e formosas,
Loura mulher das regiões tudescas
O seu bom dia era mandar-lhe roses.
Floria, é certo, em grande amor, floria
Gerado pelo eflúvio dessas flores,
Pois quando o duque não as recebia
Era o mais infeliz dos caçadores.
Tão doce amor lembrava aquelas lendas
Dos medievais castelos esquecidos,
Quando visões de nuvens e de rendas
Apareciam nos balcões floridos.
A caça, a caça, eternamente a caça!
Quanto melhor, mais fácil não lhe fora
A conquista das aves do que a graça
De conquistar essa beleza loura!
Para possuí-la como noiva amada,
Aceso há muito nas paixões insanas,
Arrostaria a caça mais ousada
Dos javalis nas selvas africanas.
E sempre as lindas rosas matutinas
Vinham-no perfumar todos os dias,
Quando saltava aos vales e as colinas,
Bizarro e são, dentre as tapeçarias.
Tempos passaram sobre tais amores!
Mas depois de casado fez surpresa
Saber que o duque, o rei dos caçadores,
Não tinha o mesmo amor pela duquesa.
A ESPADA
I
Cavalheiros, os tempos já passados,
De pajens, de canzéis, de fidalguia,
De castelos, de reinos brasonados.
Ar cortesão de graça e fantasia
Através dos olhares e dos beijos
-- No silêncio de cada galeria...
Foi nesse bravo tempo dos lampejos
De espadas, de punhais e de couraças
Por combater frementes de desejos.
No tempo dos floreios e das caças
Dos assaltos alegres e bizarros
Como as sonoras vibrações das taças.
Em que as almas airosas como jarros,
Cheios de vinho espumejante e ardente
Eram de glória vencedores carros!
Foi no tempo fidalgo e refulgente,
Quando o heroísmo fantasioso amava
A linha e a chama de luzida gente,
Que esta cena galharda se passava,
Quando um donzel partia para guerra
Como a nobreza do solar mandava.
O pai, um tronco transudando a terra,
Forte e viril, presença de profeta
Que no seu flanco a valentia encerra.
Barbas serenas de bondoso asceta
Em cuja alvura doce e veneranda
Vê-se a vontade e a intrepidez completa.
Fronte banhada de meiguice branda
A que o dever e os ríspidos conselhos
Dão sempre a austeridade que age e manda.
Lembra um ocaso de clarões vermelhos,
Musgoso, triste, desolado muro,
Por onde o luar abre fulgor despelhos.
E esse semblante que parece duro,
Áspero e torvo, trouxe-o dos combates,
Do torvelinho do nevoeiro escuro.
Dos pelouros sanguíneos escarlates,
De fogo aberto em turbilhões, vorazes,
Dos impulsivos, bélicos rebates.
Mas, bem olhadas, as feições audazes
Desse velho patriarca destemido
Tinha a suavidade dos lilazes.
Nos olhos, um passado consumido
Entre aventuras e colóquios belos
Como que faz um verdadeiro ruído...
Sente-se neles noites de castelos
Gozadas em amores dadivosos,
Em madrigais, em íntimos desvelos.
Cavalgadas, torneios donairosos,
Sonho feliz de rica mocidade,
Requintes ideais, cavalheirosos.
Tudo se sente na tranqüilidade
Desse deus varonil da força antiga
Feito com o rijo bloco da Verdade.
Tudo se sente nessa paz amiga
Que as crenças do passado às outras crenças
Vagas, futuras, para sempre liga.
Tudo se sente vir das névoas densas
E da ridente e cândida meiguice
Das suas barbas límpidas e imensas.
Sim! tudo da quase criancice
Que dão aos homens esses tons nevoentos
Da enregelada e trêmula velhice.
Porém, reatando aéreos pensamentos...
Comecemos na cena detalhada
Que já das eras se espalhou nos ventos.
É nada mais que a história duma espada,
História curta, mas interessante
Duma espelhante lâmina timbrada.
Não é pelo aço ou lâmina espelhante
Que irei contar, pois são comuns os aços,
Mas pelo nobre e original rompante.
Pelo ardimento que os primeiros braços
Que a manejaram com pujança e brio
Nela gravaram, com profundos traços.
II
O velho, em pé, atlético e sombrio
Diante do filho armado cavaleiro,
No aspecto dum leão ruivo e bravio.
Fala-lhe claro, dalto e sobranceiro,
Numa solene e enérgica atitude
De quem nos prélios sempre foi primeiro.
O filho, grave o escuta e atende a rude
Lhanez estóica de palavra augusta
Que dos lábios lhe sai, com tal saúde.
Calmo, sem se mover, firme a robusta
Figura solarenga do estoicismo,
O velho disse esta nobreza justa:
"Aqui tens esta espada que o heroísmo
Dos teus avós honrou nessas campanhas,
Com o mais ousado, intrépido civismo.
Freme ainda hoje em convulsões estranhas,
Palpita e anseia dentro da bainha
Sonhando a luta, as implacáveis sanhas.
Tu, para a teres, como eu sempre a tinha,
Num triunfo imortal, quase divino,
De gládio que o valor maior continha;
É necessário um grande ardor leonino,
Que sejas bem idólatra do nome
Que fez de mim o extremo paladino.
A ferrugem, tu vês, o aço consome...
Porém, neste aço que ainda aqui fulgura,
Se houver ferrugem, tira-a com o renome.
Aqui tens, pois, a lâmina segura,
Alma e brasão da nossa velha casa
Coberta de ovações, famosa e pura".
Calou-se um instante, como a ave que a asa
Fechou no voar, já quase que abatida,
Caindo exausta junto a moita rasa.
O filho, mudo e respeitoso, erguida
A valente cabeça leal de moço,
Formoso estava, porejando vida.
E enquanto o velho, impávido colosso,
Calara-se num momento, emocionado
Ficara o filho em íntimo alvoroço.
Mas de repente, como iluminado
Por um clarão de glórias já extintas,
Tornou o velho, aos poucos transformado:
"Podes partir! Porém nunca desmintas
Nas pelejas o dom da nossa fama,
Por menos força que no peito sintas.
Como um clarim, por toda a parte aclama
O vigor deste ferro e do teu pulso
No combate que ruja, ulule e brama,'.
E cada vez mais pálido e convulso,
Mais nervoso e febril e mais altivo
Bradou ainda, num tremendo impulso:
"Se tu, que és da minh'alma o exemplo vivo,
Meu filho, tens de ser como um cobarde,
Como um vilão abjeto e repulsivo;
Não faças mais de fidalguia alarde,
Pega esta espada, meu Afonso, pega
E quebra-a de uma vez, que não é tarde.
Pois em lugar de fazer dela entrega
Aos sequiosos, feros inimigos
Antes a quebre a cólera mais cega.
Ei-la, aqui tens, a leoa dos perigos,
Que como outrora em minha mão lampeja
Da bravura e da fama nos abrigos.
Se não a tens de honrar nessa peleja
Escuta bem, ó meu amado filho,
Quebra-a, e o teu nome nem manchado seja.
Como eu faria noutra idade e brilho,
Com outras energias musculares,
Segue-me tu no denodado trilho,,.
E assim falando, em gestos singulares,
E agigantado corpo retesando
E um tom sinistro esparso nos olhares;
A cabeça nos ares agitando
Numa alucinação, -- enorme ereto,
Como heróica visão, deblaterando...
Fitando bem o filho predileto,
Como se de repente lhe brotasse
A força hercúlea dum poder secreto.
O velho, qual um templo que abalasse,
A mão crispada, lívida e nervosa,
Com todo o esforço a lhe afluir na face,
Partiu no joelho a espada vitoriosa.
O SOL E O CORAÇÃO
Sol, coração do Espaço que flamejas,
O coração é qual tu, sol de utopias...
Mas, coração, dize-me: -- Que desejas?...
Foram-se já todas as alegrias,
Ó Sol! E tu, coração, que ainda adejas,
Que fazes sobre as mortas fantasias?!...
Podes brilhar, ó Sol, vivo e fulgente!
E tu, coração, que me iludiste,
Também podes bater, inutilmente.
Crença, Ilusão, Amor, já nada existe,
Não mais levarás sobre a corrente
Da tenebrosa dúvida mais triste.
Longe, mui longe, em regiões caladas,
Emudecidos pelo Esquecimento,
Estão hoje esses sonhos de alvoradas.
Foram-se, há muito, soltos pelo vento
Entre as grandes ruínas derrocadas
Do meu amargo e pobre pensamento,
Entre as profundas, tétricas ruínas
Em que o doce fantasma desses sonhos
Atravessou em lágrimas divinas.
Fantasma ideal, de cânticos risonhos
Que da vida encontrei pelas colinas
E hoje vaga entre bulcões medonhos!
Fantasma que eu amei, visão errante
Que sempre junto a mim vivia perto,
Por mais longe que eu fosse e mais distante.
Visão que era como a água do deserto
Para o meu coração sempre anelante,
Sequioso de amor e sempre aberto...
Ó pobre coração, em vão te agitas,
Em vão tu bates, coração estreito,
Tal qual tu, Sol, nos páramos crepitas.
Nada mais, para mim, de satisfeito
Brilha com o Sol nas plagas infinitas,
Como não canta o coração no peito...
Podes, enfim, sumir-te nos Espaços
Sol! E tu, coração, sempre batendo,
Quebrar da terra os "Transitórios Laços,,
Eternamente desaparecendo!...
SAPO HUMANO
A Emiliano Perneta
Oh sapo! eu vou cantar tuas misérias, sapo,
Vou tirar, nesse lodo onde habitas de rastros,
Umas vivas canções do teu nojento papo,
Da crosta esverdeada umas centelhas de astros.
E canções de tal forma e tais e tais centelhas,
Que todas possam ir, miraculosamente,
Transformadas, pelo ar, em rútilas abelhas
Com o íris voador de cada asa fulgente.
Que tu, tredo animal, tu, triste sapo hediondo,
Não és o vil, o torpe, o irracional, que a lama
Em camadas envolve o atro ventre redondo,
Dos tempos imortais nessa fecunda chama.
Não és o sapo histrião de imundas esterqueiras,
O sombrio Caim nos lamaçais errantes,
O clown gargalhador das charnecas rasteiras,
Que ri-se para o sol com riso ironizante.
Não és o sapo atroz, coaxador, visguento,
Que rouco ruge e raiva a noite os seus horrores,
E para o constelado e mudo firmamento
Faz ecoar os mais surdos e ásperos tambores.
Mas és o sapo humano, esse asqueroso e feio,
Nascido de roldão na lúgubre miséria
E que do mundo vão no pavoroso seio
Lembra o negro sarcasmo enorme da Matéria.
Mas és o sapo humano, o sapo mais abjeto
Do crime aterrador, do tenebroso vício
Mas que ainda possuis o brilho de um afeto
Que te livra, talvez, do eterno precipício.
Por ora na tua alma a noite cruel, cerrada,
Não caiu de uma vez, como terrível fora.
Nela ainda há clarões de límpida alvorada,
Um prenúncio feliz de aurora redentora.
Ainda tens coração que pulsa no teu peito
Por uns filhos gentis, ingênuos, pequeninos,
Que são o grande amor, o sentimento eleito
Vencendo esses fatais instintos assassinos.
Tu semelhas de um charco a superfície nua
E vítrea, que no campo, aos ares, adormece,
Que se em cheio lhe bate a luz do sol, da lua,
Para a vasta amplidão cintila e resplandece.
Pois no teu organismo, assim sinistro e torvo,
Repleto de vibriões do vício -- essas crianças,
Sorriem virginais, oh! solitário corvo,
Com sorrisos de luzes e barcarolas mansas.
O amor que regenera os ínfimos bandidos,
Não reduziu, enfim, tu'alma a ignóbil trapo.
E eis por que, num viver de pântano e gemidos,
Cantam dentro de ti aves e estrelas, sapo!
DIANTE DO MAR
Para matar o letargo
Da vida, e o profundo tédio,
Fui, em busca de remédio,
Ao cais arejado e largo.
E vi o mar formidando,
Cheio de mastros e velas,
Ocultos clarins vibrando
Pela boca das procelas.
Vi tropéis e tropéis bruscos
De ondas revoltas e crespas
Com rijos ferrões de vespas
Ferreteando os ares fuscos.
Vi os límpidos navios
Jogados do mar incerto
Como seres erradios
Por inóspito deserto.
Vi tudo nublado, tudo,
Céus e mares e horizontes;
E sobre a linha dos montes
Cair o silêncio mudo.
E eu lembrei-me quando a aurora
Sobre aquelas esverdeadas
Águas jorrava sonora
A luz em puras golfadas.
Lembrei-me desses supremos
Dias acres de alegria
Na vaga loura e macia
As leves palmas dos remos.
Do resplendor das viagens
Num encanto matutino
A doçura das aragens,
Por sobre o mar cristalino.
A bicar as doces ilhas
De pedra, musgos e flores,
Cheias de ervas e frescores
E naturais maravilhas.
Que ela a tudo perfumasse
Como um rosal que floresce
Que tudo que nela houvesse
Resplandecesse e cantasse.
Ou ver na frente das casas,
Dos vales e das colinas
Os pombos batendo as asas,
Entre festões de boninas.
Ir a pesca alegre e fresca
Por suavíssimos luares,
Numa lua pitoresca,
Em cima dos salsos mares.
Quando flexível canoa
Vai deixando um vivo rastro,
Fundo, aberto, feito de astro,
Na vaga que brilha e soa.
Quando na margem campestre
De rios indefinidos
Sente-se o aroma silvestre
Dos aloendros floridos.
Lembrei-me até das regatas
Numa hora deliciosa
De manhã cheirando a rosa,
Toda de fúlgidas pratas.
Dembarcar, como um fidalgo,
Para aventuras de caça,
Em companhia do galgo
Que é das caçadas a graça.
Ir d'espingarda e destilo,
Por madrugadas serenas,
Sem males, sem dor, sem penas,
Peito bizarro e tranqüilo.
Bater as aves no mato
Por entre arvoredos graves,
Ou da beira de um regato
Ver saltar em bando as aves.
E da ventura nos jorros
Voltar da caça repleto
Vendo ao longe o rubro teto
Da casa e o verde dos morros.
Ou então ir como um duque
Nas praias de mais beleza
Gozar na choça de estuque
Uns olhos de camponesa.
Sentir do equóreo elemento,
Sobre as serras verdejantes,
Ruflantes e sussurrantes
As ventarolas do vento.
Deixar o espírito, avaro
De vida, saúde e força
Disparar -- alada corça --
Pelo azul radioso, claro.
Assim, talvez que o Nirvana
Do tédio e letargo imenso
Não fosse uma dor humana,
Dentre um nevoeiro tão denso.
BRUMOSA
Inglesa! Por toda a parte
Onde vás, chamam-te inglesa
E cobrem de pompas de arte
A pompa dessa beleza.
Mas tu, num soberbo encanto
De nevada e fria rosa,
Ó meu pálido amaranto!
Não és inglesa, és brumosa.
A tua carne alvorece
Em lactescências de opala,
Brilha, fulge e resplandece
E um fino aroma trescala.
És a límpida camélia
Nos jardins reais plantada
Ou essa lânguida Ofélia
Melancólica e nevada.
O teu corpo imaculado,
Flor de místicas origens,
Parece um luar velado
E lembra florestas virgens.
Com o teu amor ilumina
A minhalma envolta em crepe,
Ó vaporosa neblina,
Ó branca e gelada estepe!
SGANARELO
Esse que eu agora rimo
É viscoso como a lesma
Pegajosa sobre o limo,
Sinistro como aventesma.
Feia coisa, enorme bicho,
Pavoroso mastodonte
Feito do horror a capricho,
Com cornos rijos na fronte.
Todo o ventre se lhe estufa
De obesidade lasciva,
Se fala a voz urra e bufa
Lembrando a locomotiva.
Na terrível carantonha
Retorcida, escalavrada,
Lhe estruge, às vezes medonha,
Formidável gargalhada.
E a luz do sol, que corusca,
Nas praças, à luz do dia,
A sua presença brusca,
Tem uma ardente ironia.
A língua rubra e convulsa
Sai-lhe da boca em espasmo,
Enquanto no olhar lhe pulsa
A blasfêmia do sarcasmo.
Capra figura profunda,
Atroz e amedrontadora,
Que larga entranha fecunda
Foi a tua geradora?!
Que aborto de ventre estranho
Pode gerar esse aborto
Assim feroz e tamanho,
Peludo, estroncado e torto?
De que idades tão antigas,
Pré-históricas vieste?
Mais hostil do que as urtigas,
Mais nefando de que a peste!
Trazes a pata esmagante,
A pata do bronze trazes;
Que é no espírito diamante
E que é nas almas lilazes.
Possuis o sangue da verve
Resplandecente, infinita,
Que ruge, palpita e ferve
E canta e soluça e grita.
Vens como imagem da Morte,
Da Morte hedionda e nefasta,
Das iras ao vento forte,
Do desespero a vergasta.
Desmancha-te em cabriolas
De doido polichinelo,
Que os teus membros lembrem molas
Como um palhaço amarelo.
Faz nos músculos esgrimas,
Pula trapézios e barras
E salta saltando estas rimas
Que vão saltando bizarras.
Acrobata da miséria
Estica os nervos, estica
E ri, ri tu da matéria
Da gente fidalga e rica.
És medonho?! isso que importa?
Ri! mas ri alto na praça,
Se a desgraça não foi morta,
Ah! deixem rir a desgraça!
Satanás sujo e potrudo
Nas cambalhotas te inspire.
Eia! vá! desdém por tudo,
Por tudo, e o tempo que gire!
Faz que o século se agite
De eternas risadas grossas
E como com dinamite
Arromba o mundo com troças.
Fura o estúrdio Sancho Pança
Com estocadas de riso
E mete-o também na dança
Dos saltos, se for preciso.
Destrói tudo, vai, desaba,
De tudo faz estilhaços
E a golpes de riso acaba
Os erros córneos e crassos.
Fura os ventres mais rotundos
Com aguilhões de chacota
E manda ao Mestre dos mundos
Um exemplar da risota.
Na tal luxúria gorducha,
Na velha e calva luxúria
Rebente risos em ducha,
Com toda a sátira e fúria.
Ri! até que se transforme,
O rebelado do inferno!
O riso num facho enorme
Aceso no sol moderno!
DESMORONAMENTO
Dentro do coração, no côncavo do peito
Choro a grande ilusão do amor, desfalecida,
Dentre o gozo feliz, nostálgico da vida;
Já exangue, afinal, já morto, já desfeito.
Por visões que adorei num vago tempo incerto
Não sei por que razão avivo agora as mágoas,
Num pranto doloroso e triste, como as águas
Do mar grosso a bater sobre o costão deserto.
Tu, ó doce visão de perfumosas tranças,
Todo o meu puro e terno sentimento invades
E eu não sei o que fiz das minhas esperanças
Que de longe que vão parecem mais saudades.
Tudo o que houve em meu ser de compaixão e crença
Para sempre secou, secou já como um rio;
Para sempre também subi ao escombro frio
Da dúvida mortal, avassalante, imensa.
Para sempre me achei sem bússola e sem rumo
No fundo de regiões estranhas e afastadas...
As almas que eu amei, vi mudas e apagadas,
Vi tudo se sumir numa espiral de fumo.
Bem depressa fiquei como um ermo remoto
Como torvo areal sem plantas e sem fontes,
Donde apenas se vê rasgar a terra o broto
Do cardo retorcido e áspero dos montes.
Muitas vezes, porém, como entre os arvoredos
Onde juntas, no val, todas as aves cantam
No meio do rumor, de sombras e segredos,
Sinto dentro de mim que uns sonhos se levantam.
Borboleteio, a rir, por entre os sons e as flores,
Como um pássaro azul de uma plumagem linda
E canto alegremente a canção dos amores,
Que este peito viril sabe cantar ainda.
Lembro então corações que já me abandonaram,
Que eu senti palpitar, por sobre o meu pulsando,
Que vão hoje através das afeições chorando,
Que sofreram comigo e que comigo amaram.
Entretanto a minhalma em vôo largo e ufano,
De repente triunfal, de súbito gloriosa,
Tem a pompa de sol, vermelha e luminosa,
Da púrpura esvoaçante e aberta de um romano.
E esse fulgor, que vem dos meus sonhos dispersos
Na névoa do passado, errantes e dolentes;
Dá-me árdidos corcéis fogosos e frementes
Para atrelar, jungir ao carro destes versos.
Claramente recordo e penso nas estradas
Que percorri, que andei às ilusões, sozinho,
Vendo que todo o amor das virginais amadas,
Tinha a mesma fatal embriaguez do vinho.
Quantos entes febris, que o amor embriaga e ofusca
Assim, durante a vida, ansiosamente exaustos,
Não encontram, talvez, dessas visões em busca,
As Margaridas vãs dos ilusórios Faustos!
CLARÕES APAGADOS
Flor de planta aromática, sinistra,
Nascida nas inóspitas geleiras,
Célebre flor que o meu Ideal registra,
Trepadeira das raras trepadeiras.
Serpe nervosa entre as nervosas serpes,
Carnívora bromélia da luxúria
De gozo tetaniza como as herpes
Da tua boca a polpa atra e purpúrea.
O teu amor, que lembra vinhos de Hebe
E essa áspera feição do abeto fusco,
Como um réptil que salta numa sebe,
Saltou-me ao peito, impetuoso e brusco.
Eu ia por estranhos descampados,
Por extensos desertos impassíveis,
Na trágica visão dos naufragados
Perdidos entre os temporais terríveis.
Sem rumo certo, num sombrio inferno,
Sozinho, sobre a desolada areia
Arrastando a existência, de onde, eterno
Um sapo coaxa e um rouxinol gorjeia.
Quando tu de repente, então surgiste
Beleza das belezas redentoras,
Tendo essa meiga formosura triste
Das formosas e flébeis pecadoras.
Fosse talvez uma tremenda insânia
Tão alta erguer o meu amor, tão alto;
Mas este coração frio, da Ucrânia,
Anelava galgar o céu de um salto.
E fui, galguei, subi, voei na altura,
Além dos verdes píncaros do monte,
Donde resplende a tua formosura
No clarão das estrelas do horizonte.
Foi o mesmo que se eu num templo entrasse
E aí num formidável sacrilégio,
As angélicas vestes arrancasse
Das santas de áureo diadema régio.
Como um leão sem juba e garra, preso,
Na indiferença, já morreu comigo
Todo esse amor profundamente aceso
Na ideal constelação de um sonho antigo.
Apenas pelo saara imorredouro
Do longínquo passado, ergue, altaneira,
Majestosa folhagem no sol d'ouro,
Dessas recordações a alta palmeira...
MENDIGOS
Mendigos! Ah! são mendigos
Que voltam de vãos caminhos,
Que atravessaram perigos,
Urzes, pântanos, espinhos.
Que chegam desiludidos
Das portas a que bateram;
Humanos, grandes gemidos
Que nos tempos se perderam.
Que voltam como partiram,
Com mais amargor na volta
E mais sonhos que se abriram
Das estrelas na recolta.
Mendigos ricas no entanto,
Das pompas da natureza
E das auréolas do Encanto,
Os vinhos da sua mesa.
Mendigos que o sol, apenas,
Torna nababos felizes,
Torna um pouco mais serenas
As convulsas cicatrizes.
Mendigos que acham requinte
Na fumaça de um cachimbo,
Deixando que labirinte
O sonho em tão leve nimbo.
Mendigos da luz da aurora
Cantando celestemente,
Fresca, límpida, sonora,
Pelas fanfarras do Oriente.
Mendigos de áureas estradas,
De sonâmbulas veredas,
De riquezas encantadas,
Sem pedrarias e sedas.
Mendigos d'estranho aspecto
E sempiterna vigília,
Filhos nômades, sem teto,
De milenária Família.
Mendigos que erram eternos
Sem fadigas e sem sono,
Sob o augúrio dos Infernos,
Das Ilusões sobre o trono.
Mendigos de plaga nova,
De novas terras e mares,
Divinizados na cova
Como as hóstias nos altares.
Mendigos da grande esmola
Da luz das estrelas nobres,
Que fulge e dos altos rola,
Entre as suas mãos tão pobres!
Mendigos de céus remotos,
De sóis dos mais velhos ouros;
Com a sua fé e os seus votos
E os seus secretos tesouros.
Mendigos de olhar severo,
Boca murcha, meio amarga...
Tendo um vago reverbero
De sonhos na fronte larga.
Mendigos de ínvias florestas
E de bosques fabulosos,
De melancólicas sestas
Nos crepúsculos brumosos.
Mendigos da Eternidade,
Tremendo dos sóis, dos frios,
Nas mortalhas da Saudade
Amortalhados sombrios.
Mendigos dos Infinitos,
Das Esferas inefáveis,
Noctambulando malditos
Nos rumos imponderáveis.
Mendigos de fome e sede
De água e pão de outros mundos,
Embalados pela rede
Dos Idealismos profundos.
Mendigos do azul Mistério,
Cuja alma -- nívea sereia --
Fica saciada no aéreo
Pão branco da lua cheia!
ASAS PERDIDAS
A Carlos Jansen Júnior
Afora, pelo azul indefinido e largo,
Passam asas sutis, pelo éter, longe, afora,
Como que a demandar outra mais doce aurora
Que a desta vida atroz, toda veneno amargo.
Não as asas assim, bem longe, pela curva,
No vago, na amplidão, perdidas pelos ares
Até virem caindo os véus crepusculares,
Toda a anústia do acaso, emocional e turva.
E diante dessa dor das tardes que esmaecem
As asas, pelo espaço, em vôos desgarrados
Como a oração final dos tristes naufragados,
Longinquamente, além, tênues desaparecem
Cai então de uma vez a sombra dos segredos.
E na serena paz das noites adormidas,
Entre o fundo chorar dos calmos arvoredos,
Ninguém verá jamais essas asas perdidas.
E as asas o que são no firmamento errantes,
Perdidas pelos tempos, esparsas pelas eras
Senão os sonhos vãos, mundos alucinantes
Cheios do resplendor das flóreas primaveras?!
Por isso, eu quando o Azul repleto de asas vejo
Muito alto, céu acima, os páramos rasgando,
Toda a minh'alma oscila e treme num desejo
Em busca das regiões da dúvida, chorando!
ANJO GABRIEL
Na calma irradiação das noites estreladas
Alto e claro aparece, alto, aparece, claro,
Alvo, claro, no luar das estrelas prateadas,
No triunfal esplendor celestemente raro.
O seu busto de Excelso, a sua graça fina,
A linha de harpa ideal do seu perfil augusto,
Estremecem de luz, de uma luz peregrina,
Do secreto fulgor de um sentimento justo.
Serenidade e glória e paz do Paraíso
Flutuam-lhe na face alvorecida e doce
E quando ele sorri é como se o sorriso
Claros astros semear por todo o espaço fosse.
Leve, loura, .radial, a soberba cabeça
Eleva-se da flor do níveo colo louro
E não há outro sol que tanto resplandeça
Como o sol virginal dessa cabeça de ouro.
As mãos esculturais, de ebúrnea transparência,
De divina feitura e de divino encanto,
Lembram flores sutis de sonhadora essência
Da etérea languidez e de etéreo quebranto.
Das madeixas reais largo deslumbramento
Num flavo jorro cai, com sagrado abandono...
E sai do Anjo o quer que é de vago e de nevoento
Que lembra o despertar sonâmbulo de um sono...
De alto a baixo, do Azul, desfilando das brumas,
Abre todo ele em flor como nevado lírio,
Belo, branco, eteral, do candor das espumas,
Banhado nos clarões e cânticos do Empíreo.
Maravilhoso e nobre ergue no braço ovante
Um gládio singular que rútilo cintila...
Enquanto o seu olhar de mágico diamante
Aflora em plenilúnio através da pupila.
Que o seu olhar, então, esse, recorda tudo
O quanto há de tranqüilo e luminoso e casto.
Maio de ouro a florir meigos céus de veludo
E a neve a cintilar sobre o monte mais vasto.
Do puro albor astral das asas majestosas
Desprendem-se no Azul mistérios de harmonia...
Entre as angelicais suavidades radiosas
Parece o Anjo Gabriel o alto Enviado do Dia!
Na chama virginal de tão rara beleza
Brilha a força de um Deus e a mística doçura...
E sai das seduções de tamanha pureza
Toda a melancolia errante da ternura.
Do suntuoso agitar das delicadas vestes
Tecidas de jasmins, de rosas, de açucenas,
Vem o aroma cristão dos aromas celestes
Todas as imortais emanações serenas...
Transfigurado, excelso, agigantado, imenso,
Na candidez hostial das formas impecáveis,
Fica parado no ar, levemente suspenso
De raios siderais, de fluidos inefáveis.
Mas quando o seu perfil nas amplidões floresce
E das asas se lhe ouve a música sonora
Quando ele agita o gládio e as madeixas, parece
Que vai noctambular pelo Infinito afora.
E alto, branco, de pé, destacado no Espaço,
Eleito das Regiões de estranhas Primaveras,
Traça, com o gládio no ar, alevantando o braco,
Uma cruz de Perdão na mudez das Esferas!
CRIANÇAS NEGRAS
Em cada verso um coração pulsando,
Sóis flamejando em cada verso, e a rima
Cheia de pássaros azuis cantando
Desenrolada como um céu por cima.
Trompas sonoras de tritões marinhos
Das ondas glaucas na amplidão sopradas
E a rumorosa musica dos ninhos
Nos damascos reais das alvoradas.
Fulvos leões do altivo pensamento
Galgando da era a soberana rocha,
No espaço o outro leão do sol sangrento
Que como um cardo em fogo desabrocha.
A canção de cristal dos grandes rios
Sonorizando os florestais profundos,
A terra com seus cânticos sombrios,
O firmamento gerador de mundos.
Tudo, como panóplia sempre cheia
Das espadas dos aços rutilantes,
Eu quisera trazer preso à cadeia
De serenas estrofes triunfantes.
Preso à cadeia das estrofes que amam,
Que choram lágrimas de amor por tudo,
Que, como estrelas, vagas se derramam
Num sentimento doloroso e mudo.
Preso à cadeia das estrofes-quentes
Como uma forja em labareda acesa,
Para cantar as épicas, frementes
Tragédias colossais da Natureza.
Para cantar a angústia das crianças!
Não das crianças de cor de oiro e rosa,
Mas dessas que o vergel das esperanças
Viram secar, na idade luminosa.
Das crianças que vêm da negra noite,
Dum leite de venenos e de treva,
Dentre os dantescos círculos do açoite,
Filhas malditas da desgraça de Eva.
E que ouvem pelos séculos afora
O carrilhão da morte que regela,
A ironia das aves rindo a aurora
E a boca aberta em uivos da procela.
Das crianças vergônteas dos escravos
Desamparadas, sobre o caos, à toa
E a cujo pranto, de mil peitos bravos,
A harpa das emoções palpita e soa.
Ó bronze feito carne e nervos, dentro
Do peito, como em jaulas soberanas,
Ó coração! és o supremo centro
Das avalanches das paixões humanas.
Como um clarim a gargalhada vibras,
Vibras também eternamente o pranto
E dentre o riso e o pranto te equilibras
De forma tal que a tudo dás encanto.
És tu que à piedade vens descendo.
Como quem desce do alto das estrelas
E a púrpura do amor vais estendendo
Sobre as crianças, para protegê-las.
És tu que cresces como o oceano, e cresces
Até encher a curva dos espaços
E que lá, coração, lá resplandeces
E todo te abres em maternos braços.
Te abres em largos braços protetores,
Em braços de carinho que as amparam,
A elas, crianças, tenebrosas flores,
Tórridas urzes que petrificaram.
As pequeninas, tristes criaturas
Ei-las, caminham por desertos vagos,
Sob o aguilhão de todas as torturas,
Na sede atroz de todos os afagos.
Vai, coração! na imensa cordilheira
Da Dor, florindo como um loiro fruto
Partindo toda a horrível gargalheira
Da chorosa falange cor do luto.
As crianças negras, vermes da matéria,
Colhidas do suplício a estranha rede,
Arranca-as do presídio da miséria
E com teu sangue mata-lhes a sede!
VELHO VENTO
Velho vento vagabundo!
No teu rosnar sonolento
Leva ao longe este lamento,
Além do escárnio do mundo.
Tu que erras dos campanários
Nas grandes torres tristonhas
E és o fantasma que sonhas
Pelos bosques solitários.
Tu que vens lá de tão longe
Com o teu bordão das jornadas
Rezando pelas estradas
Sombrias rezas de monge.
Tu que soltas pesadelos
Nos campos e nas florestas
E fazes, por noites mestas,
Arrepiar os cabelos.
Tu que contas velhas lendas
Nas harpas da tempestade,
Viajas na Imensidade,
Caminhas todas as sendas.
Tu que sabes mil segredos,
Mistérios negros, atrozes
E formas as dúbias vozes
Dos soturnos arvoredos.
Que tornas o mar sanhudo,
Implacável, formidando,
As brutas trompas soprando
Sob um céu trevoso e mudo.
Que penetras velhas portas,
Atravessando por frinchas...
E sopras, zargunchas, guinchas
Nas ermas aldeias mortas.
Que ao luar, pelos engenhos,
Nos miseráveis casebres
Espalhas frios e febres
Com teus aspectos ferrenhos.
Que soluças nos zimbórios
Os teus felinos queixumes,
Uivando nos altos cumes
Dos montes verdes e flóreos.
Que te desprendes no espaço
Perdido no estranho rumo
Por entre visões de fumo,
Das estrelas no regaço.
Que de Réquiens e surdinas
E de hieróglifos secretos
Enches os lagos quietos
Revestidos de neblinas.
Que ruges, brames, trovejas
Ó velho vândalo amargo,
No sonâmbulo letargo
De um mocho rondando igrejas.
Que falas também baixinho
Lá da origem do mistério,
Trazendo o augúrio sidéreo
E certa voz de carinho...
Que nas ruas mais escusa,
Por tardes de nuvens feias,
Como um ébrio cambaleias
Rosnando pragas confusas.
Que és o boêmio maldito,
O renegado boêmio,
Em tudo o turvo irmão gêmeo
Do sonhador Infinito.
Que és como louco das praças
Nos seus gritos delirantes
Clamando a pulmões possantes
Todo o Inferno das desgraças.
Que lembras dragões convulsos,
Bufantes, aéreos, soltos,
Noctambulando revoltos
Mordendo as caudas e os pulsos.
Ó velho vento saudoso,
Velho vento compassivo,
Ó ser vulcânico e vivo,
Taciturno e tormentoso!
Alma de ânsias e de brados,
Consolador companheiro
Sinistro deus forasteiro
D'espaços ilimitados!
Tu que andas, além, perdido,
Tateando na esfera imensa
Como um cego de nascença
Nos desertos esquecido...
Que gozas toda a paragem,
Toda a região mais diversa,
Levando sempre dispersa
A tua queixa selvagem.
Que no trágico abandono,
No tédio das grandes horas
Desoladamente choras,
Sem fadigas e sem sono.
Que lembras nos teus clamores,
Nas fúrias negras, dantescas,
Torturas medievalescas
Dos ímpios inquisidores.
Que és sempre a ronda das casas,
A gemente sentinela
Que tudo desgrenha e gela
Com o torvo rumor das asas.
Que pareces hordas e hordas
De hirsutos, intonsos bardos
Vibrando cânticos tardos
Por liras de cem mil cordas.
Ó vento languido e vago,
Ó fantasista das brumas,
Sopro equóreo das espumas,
Ó dá-me o teu grande afago!
Que a tua sombra me envolva
Que o teu vulto me console
E o meu Sentimento role
E nos astros se dissolva...
Que eu me liberte das ânsias
De ansiedades me liberte,
Pairando no espasmo inerte
Das mais longínquas distâncias.
Eu quero perder-me a fundo
No teu segredo nevoento,
Ó velho e velado vento,
Velho vento vagabundo!
MARCHE AUX FLAMBEAUX
I
Rompe na aurora o sol que a terra esbofeteia
Com látegos de chama, iriando o pó e a areia,
Iriando os vegetais de ricas pedrarias,
Dos rubis e cristais das ourivesarias;
Aurora acesa em cor de púrpura de cravos
Opulentos, febris, ensanguinados, bravos;
De ritmos leves de harpa e frêmitos e beijos
Que são da natureza os trêmulos arpejos;
Aurora que sorri, que traz pomposamente
Todo o raro esplendor da luz resplandecente,
Das paisagens loucas no fúlgido matiz
O aroma a derramar da meiga flor de liz.
Na alegria dos tons os pássaros cantando
Vão as asas abrindo, entre os clarões ruflando,
Asas emocionais, que assim dentre clarões
Palpitam num fervor de alados corações.
E no luxo oriental de etéreo Grão-Mogol
Como um Baco feliz rubro flameja o sol.
II
Filósofos titãs, filósofos insanos
Que destes turbilhões, que destes oceanos
De lutas e paixões, de sonho e pensamentos
Espalhásteis no mundo aos clamorosos ventos
A Ciência fatal, talvez como um veneno,
Que os tempos abalou no caminhar sereno;
Filósofos titãs, que os séculos austeros
No flanco da Matéria abris, graves, severos,
Sobre o escombro da fé, da crença e da esperança,
Da civilização o trilho que hoje alcança
No seu aço viril as regiões supremas,
Traçado em novas leis, doutrinas e problemas;
Vós que sois no Saber os monges da existência
E só acreditais na força da Ciência,
Que da morte sabeis os filtros invisíveis,
Narcóticos, sutis, incógnitos, terríveis,
Não sabeis, entretanto, apóstolos sombrios,
Como a luz da Ciência os homens estão frios,
Como o tudo ficou num doloroso caos
E os seres que eram bons, rudes, egoístas, maus.
Em vão! em vão! em vão! os vossos largos crânios
Lutaram pelo Bem dos Bens contemporâneos!
Tudo está corrompido e até mais imperfeito...
Não há um lírio são a florescer num peito,
De piedade, de amor e de misericórdia...
Se brota uma virtude o ascoso vício morde-a,
Envilece, corrompe e abate essa virtude
Com o cinismo revel dum epigrama rude...
E até muita alma vil, feroz, patibular,
Impunemente sobe ao mais sagrado altar.
Por isso vão passar perante a turbamulta
Como abrupta avalanche, enorme catapulta,
Numa marche aux flambeaux, os famulentos vícios
Que cavaram no globo horrendos precipícios,
Os vícios imortais, que infestam tribos, greis,
Povos e gerações, seitas, templos e reis
E que são como a lava obscura da cratera
Que subterraneamente em tudo se invetera.
Com toda intrepidez hercúlea de acrobata
Vou sobre eles soltar, gloriosa, intemerata,
A sátira que tem esporas de galhardo
Cavaleiro ideal que joga a lança e o dardo.
Vou com esse altanado e muscular esforço
De quem galga triunfal o soberano dorso,
A crista vigorosa, altiva, sobranceira,
Da mais agigantada e vasta cordilheira.
III
Lobos, tigres, chacais, camelos, elefantes,
Hipopótamos, ursos e rinocerontes,
Leopardos e leões, panteras acirrantes,
Hienas do furor, membrudos mastodontes
Tredas feras do mal, soturnos dromedários,
Serpentes colossais que rastejais na treva,
Monstros, monstros cruéis, medonhos, sangüinários,
Cuja pata esmagante a presa aos antros leva;
Ó ventrudos judeus, opíparos, obesos,
De consciência obtusa, ignóbil e caolha
Que no mundo passais grotescamente tesos
Com honras de entremez e grandezas de rolha.
Gafentos histriões, ridículos da moda,
Que fingis entender Berlim, Londres, Paris,
Mas nos altos salões, por entre a fina roda,
Meteis sordidamente o dedo no nariz;
Brasonados truões, inúteis como eunuco,
Que as pompas ostentais de aurífero nababo
Mas apenas valeis como um limão sem suco,
Tendes rabo no corpo e dentro d'alma rabo;
Nobres de papelão, milionários vândalos
De ventre confortado e rosto rubicundo,
Que no torvo cancã no cancã dos escândalos
Sois o horrendo espantalho, a ignominia do mundo;
Ó deuses do milhão, ó deuses da barriga,
Que sentindo a aguilhada intensa da luxúria
Buscais a mais em flor e linda rapariga
Para então vos fartar na luxuriante fúria;
Gamenhos de toilette e convicções de lama
Onde tudo afinal se atola e se chafurda,
Que do clube e do esporte sintetizais a fama
Mas tendes para o Bem a fibra sempre surda;
Palhaços, clowns senis, hediondos borrachos
Que aos trambolhões urrais afora no universo,
Desdenhando de tudo e até rindo dos fachos,
Do clarão do saber em toda a parte imerso;
Almas negras, servis, dergastulos caóticos,
Gerado no paul das lúgubres voragens,
Do crime nos bulcões, nos vícios mais despóticos
Aos quais tanto rendeis eternas homenagens,
Manequins, charlatães, devassos do bom-tom,
Que viveis nas Babéis das grandes capitais
Apodrecendo sempre infamemente com
O cancro do dinheiro as forcas virginais;
Mascarados tafuis de gordos ventres de ouro,
Ó bonzos do deboche e cínicos esgares,
Que sois o único sol esterlinado e louro
Das parvas multidões, das multidões alvares;
Fidalgos de barril, sicofantas, malandros
Do templo e do bordel, da crápula de harém
Que ao puro mar do Ideal, com torpes escafandros,
Arrancais, p'ra vender, a pérola do Bem;
Ó trânsfugas, ladrões que difamais a terra,
Que tudo poluís, do próprio lodo a flor,
A serena humildade, - intrepidez da guerra.
Aos beijos maternais, ao nupcial amor;
Espíritos de treva, espíritos de barro
Que enegreceis de horror o sangue das papoulas
E das ostentacões vos aclamais no carro,
Cobertos de cetins, arminho e lantejoulas;
Que se vem de repente o Nada sepulcral
Nunca deixais, sequer, no tétrico leilão,
No leilão da memória, estranho, universal,
Nem um som a vibrar do estéril coração!
Dentre feras brutais de ríspidos penhascos
E a torrente caudal de rijos versos francos
E a zombaria e o riso e as sátiras e os chascos,
Nesta marche aux flambeaux ides passar, aos trancos
Do mundo os naturais, zoológicos museus
Despejem pare fora as pavorosas massas,
Para virem reunir-se aos tábidos judeus
Irromper e seguir e desfilar nas praças.
Que a cada mate, a entranha, o seio virgem se abra
Jorrando tigres, leões, panteras do seu centro
E na dança infernal, estrupida, macabra,
Siga a marche aux flambeaux pelo universo a dentro.
Gargalhadas abri a rubra flor sangrenta
Da humanidade vã na amargurada boca
Vai agora passar a marcha truculenta
Sob o espingardear duma ironia louca.
E desfila e desfila em becos e vielas
E torna a desfilar por vielas e por becos
às risadas da turba, estultas e amarelas
Que tem o áspero som de gonzos perros, secos...
E desfila e desfila, estrídula e execranda,
Das praças na amplidão, rugindo em mar desfila,
Enquanto além dardeja, heróica e formidanda,
A metralha do sol que rútilo fuzila...
E mastodontes vão de braço dado a sérios
Burgueses que já são bem bons comendadores
E marqueses de truz, com ares de mistérios
De lunetas gentis e aspectos sonhadores
Dão o braco fidalgo e airoso das nobrezas
Aos ursos boreais, enquanto os conselheiros
Os condes, os barões, os duques e as altezas
Lá vão de braço dado aos lobos carniceiros.
E nessa singular, atroz promiscuidade,
Animais e truões de catadura suína
Gordalhudos heróis da infâmia e da maldade,
Vendidos da honradez, velhacos de batina
Bobos, cães, imbecis, humanos crocodilos
E déspotas, jograis, todos os miseráveis
De todas as feições e todos os estilos,
Uns aos outros lá vão jungidos, formidáveis!...
Mas a marche aux flambeaux derrama um pesadelo,
A agonia dum tigre, em sonhos, sobre um ventre,
Agonia mortal que envolve tudo em gelo...
E desfila e desfila entre sarcasmos e entre
As sátiras-fuzis, relampejando açoite,
Por essa imensa aurora, estranhamente imensa
Por um sol que angustia e que não tem da noite
Para a Miséria a sombra atenuante e densa.
Os vícios, as paixões, os crimes, ódios e erros,
Na marcha, de roldão, caminham fraternais
Com bandidos, vilões, burgueses rombos, perros
E focas e mastins, macacos e chacais.
Aos sobressaltos vão como visões, fantasmas
Bichos de toda a casta, anões de chapéu alto,
Deixando em convulsão todas as almas pasmas
E o globo num tremendo e fundo sobressalto.
E nas praças, ao sol, confundem-se os bramidos,
Os uivos com a expressão humana misturados,
Através do sussurro e bruscos alaridos
Das chacotas bestiais, dos risos trovejados.
E segue e segue e segue, afora, légua a légua
Essa marche aux flambeaux, ciclópica, estupenda
Caminha atravessando um longo sol sem trégua,
Um dia secular, um dia de legenda;
Caminha atravessando um sol de foco aberto,
Por um dia fatal, interminável, mudo,
O dia do remorso, aterrador, incerto
Que em todo o coração crava um punhal agudo.
Mas eu quero assim mesmo, eu quero-vos assim,
Em marcha tropical, à crua e ardente luz
Que vos seja uma febre indômita, sem fim,
Um cautério de fogo a vos queimar o pus
Venéreo da Moral, carbonizando-o até
Para que nunca mais se sinta dele a origem
Nem volte, como sempre, então, a ser o que é,
Deixando-vos no mundo inteiramente virgem;
Eu quero-vos assim, de fachos apagados,
Apagados, ao alto, os joviais flambeaux,
Que os tereis de acender nos campos ignorados
Que de sóis de Vingança a Eternidade arou.
E depois de vagar às sátiras de todos,
Na evidência da luz, numa perpetua aurora;
De caminhar ao sol, por tremedais, por lodos,
No tédio do sarcasmo, o tédio que a devora,
Essa Marcha afinal penetrará aos urros,
Titânica, sinistra e bêbada, irrisória,
Num caos de pontapés, coices, vaias e murros,
Na eterna bacanal ridícula da História.
O ÓRGÃO
Um largo e lento vento dormente
Taciturnas lágrimas sonambulas, sinfônicas
Um esquecimento amargo
Uma sombria clausura de almas
Suspirando e gemendo solitárias harmonias
Vago luar de esquecimento e prece,
Dessa melancolia que anda errando
No mar e nas estrelas ondulando,
Pela minh'alma etereamente desce.
Na minh'alma, dos Sonhos anoitece
O Sentimento que ando transformando
Em hóstia de ouro
Sombra e silêncio