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O futuro da Paixão

JOSÉ CASTELLO
A cultura no novo século – o tema me é proposto por Carminha Guerra e seu seminário A Arte do Encontro/
Uma reflexão sobre as artes no século XXI, que se realiza de segunda-feira a 1º de abril no Teatro Alterosa, em Belo Horizonte. O assunto é vasto, pode parecer vago, mas toca na aflição mais extrema que atormenta escritores, artistas e intelectuais neste momento. O que será da cultura, em um mundo cada vez mais veloz, pragmático e “profissional”? A arte ainda terá lugar (e que lugar?) num tempo em que a internet e a televisão se tornam universais, formando uma rede de uniformidade e de repetição que encobre todo o planeta? Enfim: ainda haverá espaço para os escritores e para a literatura em um mundo gerido pelas imagens, pela superficialidade e pela síntese?
A minha resposta para as três perguntas, apesar de todos os indícios pessimistas, é: sim. De fato, o novo século começa com uma tendência, que parece irreversível, à padronização, à superficialidade e à razão prática. O mundo de hoje, mais que nunca, exige resultados – na economia, na política, no campo jurídico, na engenharia, na pesquisa científica. É um mundo cada vez mais “profissional”e que cada vez tem menos tolerância com amadores e aventureiros. Isso é bom? A verdade é que é. Se contratamos um arquiteto, queremos que ele não cometa erros na construção de nossa casa. De um médico, exigimos seriedade e bons resultados. De um advogado, idoneidade e esperteza. Os atletas são treinados com métodos científicos para chegar a marcas precisas. A todos eles, pedimos basicamente uma coisa: competência.
Só que nada mais distante da cultura e da arte que a idéia de eficácia. A arte, dizia o filósofo alemão, é o caminho que não leva a parte alguma. Sua matéria-prima é a gratuidade, a perplexidade, a hesitação, a liberdade. Um pintor pode estudar na melhor academia, um músico pode contratar o melhor mestre, um escritor pode ser o melhor leitor dos clássicos; mas não será isso que vai determinar se ele será, ou não, um grande pintor, um grande músico, um grande escritor. Há algo espontâneo, imprevisível e obscuro, que entra em jogo e que decide o destino do artista. Um artista não é competente, é brilhante. Ou arranca uma luz especial do que faz, ou será apenas um burocrata da criação.
O problema é que é justamente esse aspecto não mensurável e irracional, é justamente essa força sombria e indomável que, agora, está a se perder. A praticidade, o senso de lucro, a busca de efeitos e de resultados invadem a cultura. A um pintor, hoje, se pede que suas telas sejam vendáveis. A um escritor, que seus escritos sejam compreensíveis e acessíveis. A um músico, que sua música seja agradável e digerível. Os artefatos culturais são observados, cada vez mais, como objetos de consumo, quer dizer, como peças de um mercado, o mercado da arte. Se esse quadro não combina com a parede de minha sala, eu me desinteresso. Se aquele livro exige um pouco mais de minha atenção, eu me canso e o dispenso. Se essa música não me traz harmonia e tranqüilidade, eu a ignoro. Pede-se à arte que ela seja tão confortável quanto uma poltrona e tão aconchegante quanto um bom agasalho. Em outras palavras: que não nos faça pensar, sentir e,sobretudo, sofrer.
Mas a cultura – a arte – não é o terreno dos resultados e, sim, das origens. É misteriosa a origem da criação e ninguém a experimenta sem uma boa dose de entrega e de risco. Um artista cria a partir de sua experiência pessoal, da cultura que acumulou, dos saberes que lhe transmitiram; mas cria, também, a
partir do que desconhece, do que não domina e, até, do que o assusta e submete. A qualidade da arte se
guarda muito além de qualquer cálculo, de qualquer etiqueta de qualidade e de qualquer “boa procedência”. Por isso a cultura é, continua a ser, tão importante: em um mundo cada vez mais prático e previsível, ela coloca em cena o desconhecido e o que não se pode controlar. Num mundo uniformizado, ela traz de volta a surpresa. Num mundo “profissional”, quer dizer, que se guia por projetos e métodos claros e se pauta por resultados objetivos, ela recoloca em cena o ato tormentoso da paixão.
Penso em um poema esplêndido de Vinicius de Moraes, infelizmente não muito lembrado: a Carta
aos puros, que ele escreveu em fins dos anos 50. E que, no entanto, parece ter, hoje, uma brutal atualidade. “Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os puros/ e em cujos olhos queima um lento fogo frio”, o poeta começa seu poema. “Vós de nervos de nylon e de músculos duros/ capazes de não rir durante anos a fios”. Nesses quatro primeiro versos, está quase tudo dito. A frieza, a praticidade, a dureza, a sobriedade são atributos que, com o passar dos anos, se tornaram ainda mais prestigiados e dominantes. Volto a lembrar do arquiteto, do médico, do economista, do político: é bom que assim seja. Mas a arte nada tem a ver com o mundo prático. A cultura e a arte tratam, justamente, daquele outro terreno em que perdemos o controle sobre nossas vontades, em que nos assombramos com nós mesmos e em que nos sentimos numa contínua, ainda que criativa perplexidade.
Nada mais distante da poesia e da arte que a pureza, que o rigor, que a exatidão, e Vinicius sabia muito bem disso. Ao contrário, ele pensava, a poesia é o terreno da impureza. É o lugar do deslize e da imperfeição. “Ó vós, homens iluminados a néon/ seres extraordinariamente rarefeitos/ vós que vos bem-amais e vos julgais perfeitos/ e vos ciliciais à idéia do que é bom”, escreveu o poeta. A arte lida com os dejetos do mundo pragmático, com tudo aquilo que não produz efeitos e que não gera resultados – as “inutilidades”, de que nos fala outro grande poeta, Manoel de Barros. O inútil, o imprestável, o repulsivo: esses são os objetos de paixão na arte. Caminho que não leva a parte alguma, a arte só traz o sujeito de volta a si mesmo e àquilo que em si desconhece.
Na medida em que lidam com universos tão extremos, a arte e a cultura não podem ser feitas sem um elemento fundamental: a paixão. Quando falamos da arte, é da paixão que se trata. Se não fosse assim, por que João Gilberto Noll se isola e leva meses, anos a fio debruçado sobre os originais de um romance? Por que José Celso Martinez passa noites e noites ensaiando e repetindo a mesma peça? Por que Tomie Othake se afasta do mundo para se debruçar, em silêncio, sobre suas cores e telas? Por que Walter Salles investe tanta força e fúria para produzir seus filmes? Sem paixão, a postura desses artistas perderia o sentido. Sem paixão, ninguém faz arte.
Contudo, o mundo pragmático de hoje quer nos convencer de que a arte, como qualquer outra atividade humana, pode ser ensinada na escola. Quer nos persuadir de que ela é uma questão de competência, quem sabe de bom comportamento, ou de títulos. O mundo de hoje acha que os artistas, ou são “profissionais”, isto é, produzem para o mercado, para os patrocinadores e para os doutores e especialistas, ou não têm interesse algum. “Ó vós que desprezais a mulher e o poeta/ em nome de vossa vã sabedoria”, escreveu Vinicius. Nada contra o saber, ao contrário. Mas a arte, embora exija certo grau de competência, de mestria, não é, em definitivo, o lugar do saber. É o lugar da exaltação, do irracional, do susto. O lugar da paixão.
Não é preciso ficar no terreno da cultura. Hoje, quando tudo o que se pede é saber e competência, elementos como o impulso, o devaneio e a intuição caem em desprestígio. Em um mundo cada vez mais voltado para efeitos práticos e para fatos mensuráveis, torna-se cada vez mais importante – embora cada vez mais estreito – o lugar destinado à gratuidade. “Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito”, escreveu ainda Vinicius, referindo-se assim às terríveis limitações que esse muito objetivo e seco impõe à existência humana.
O que se pode esperar, então, da cultura no novo século? Nada mais adequado do que esperar aquilo que mais nos falta: a paixão. Porque essa é a função da arte, se é que ela serve para alguma coisa: injetar intensidade e arrebatamento em um mundo que, mesmo quando funciona da melhor maneira, tende cada vez mais à superficialidade, à monotonia e à repetição. “Ó vós que vos negais à escuridão dos bares/ onde o homem que ama oculta o seu segredo/ vós que viveis a mastigar os maxilares/ e temeis a mulher e a noite, e dormis cedo”, escreveu Vinicius. Está tudo dito: no mundo da clareza e do funcional, a arte nos traz um pouco de segredo e de escuridão. Num mundo objetivo e forte – dizemos, errando, “masculino” – a arte nos leva em direção ao impreciso, ao subjetivo e à fraqueza – diz-se, errando também, ao “feminino”. Artistas não têm sexo, têm, isso sim, um modo particular de se conectar com a vida.
Da cultura, não se pede rigor, mas susto. Ao artista, não se pede competência e certezas, mas hesitação e perturbação. Do escritor não se espera a palavra bem dita e o português castiço, mas a palavra plena e o pensamento devastador. Se a arte serve para alguma coisa, é para colocar em dúvida as nossas certezas e ilusões. Ao artista, ao escritor, ao intelectual, como já escreveu Edward Said, se pede, hoje mais do que nunca, que seja novamente um amador. Amador não só no sentido daquele que se dedica à sua arte por prazer e com liberdade, mas daquele para quem a arte é, antes de tudo, um ato de paixão.

AGENDA
José Castello é escritor, autor de Fantasma, O poeta da paixão

Estado de Minas. “O futuro da paixão. Pensar – 26 de março de 2005, pág. 1