Cynthia Guimarães Tostes Malta
Nem sempre a abordagem pura e simples dos fatos à luz da legislação é suficiente para que um advogado ganhe uma causa. A justiça não segue verdadeiramente a letra fria da lei. Há que se saber diferenciar o direito, o direito positivo, e a justiça.
O direito é a idéia que cada indivíduo traz dentro de si sobre o que é correto; é o que cada um de nós pensa a respeito de como deveria ser o texto legal; é o que alguns filósofos convencionaram chamar de direito divino, o direito acima de qualquer crítica, sem erros, o direito justo, moral, ético, utópico, que é buscado pelas pessoas de bem e pelas sociedades.
Já o direito positivo é aquele ideal colocado no papel, nos códigos; é a letra da lei, a dura lex, sed lex; fruto de negociação entre pessoas que têm idéias diferentes sobre o que é o direito, sujeitos com objetivos diversificados, que nem sempre estão interessados em colocar o bem comum à frente de seu lucro pessoal. O direito positivo é mais freqüentemente filho da política que da ética.
A justiça, por fim, é o produto do direito positivo interpretado pelos julgadores, que lhe aplicam seus filtros culturais, filosóficos, emocionais, circunstanciais, morais, éticos e individuais, ou seja, é a lei amaciada pela idéia pessoal de direito de cada juiz.
O filme Tempo de Matar aborda exatamente esses temas, mostrando que nem sempre é possível fazer justiça cumprindo-se a lei; nem sempre a aplicação da lei leva à justiça e um causídico, em sua busca pela justiça, precisa se valer de recursos não previstos na lei.
Em uma pequena cidade rural, no sul do Estados Unidos da América, altamente racista e tradicionalista, com 70% de população branca, onde brancos e negros não se misturavam, as atitudes dos brancos em relação aos negros eram toleradas pela opinião pública e pelos aplicadores da lei. Numa bela manhã de sol, Tonya, uma menina negra, de 10 anos de idade foi estuprada por dois rapazes brancos e bêbados, em uma estrada deserta, ao retornar das compras que fizera a mando de sua mãe.
A criança foi encontrada, em estado grave e levada para um hospital, passando vários dias internada, entre a vida e a morte, na UTI.
Os criminosos foram identificados e presos, inclusive por ter sido encontrado um dos sapatinhos da vítima na caçamba da camionete dos agressores.
Inconformado e ultrajado, Carl Lee Hailey, pai da menor, procurou Jake Brigance, um jovem advogado, que conhecera quando, meses antes, o causídico defendera seu irmão, e perguntou-lhe se o ajudaria, caso viesse a ficar encrencado. Hailey aproveitou a oportunidade para lembrar que, no ano anterior, um branco, que estuprara uma negra, fora absolvido. Jake confirmou a informação e se comprometeu a defendê-lo em caso de necessidade.
Em casa, após colocar sua linda filhinha para dormir, o jovem bacharel comentou o caso com sua esposa, que lhe sugeriu relatar o fato ao xerife. Brigance, entretanto, não lhe seguiu o conselho, visto estar solidário com Carl Lee.
Dias depois, os acusados foram levados ao tribunal, fortemente escoltados por policiais. Mal iniciaram a subida das escadas, foram alvejados por uma rajada de metralhadora, disparada por Hailey, ávido de assegurar-se que aquele crime brutal não ficasse impune. Acidentalmente atingiu também o joelho de um dos policiais, que acabou tendo sua perna amputada.
Jake ficou arrasado e confessou à sua esposa que não falara nada ao xerife.
Momentos após, Carl foi encontrado em sua casa, entregando-se à polícia, sem resistência.
Brigance, a despeito de se encontrar numa delicada situação financeira, com inúmeras dívidas, incluindo o aluguel de seu escritório, aceitou defender o pai de Tonya, no seu entender, a verdadeira vítima, mesmo sabendo que seria quase impossível fazer com que o júri, inevitavelmente de maioria branca, absolvesse um negro que matara dois homens brancos e ferira gravemente um terceiro. O causídico bem sabia que seu constituinte não teria muito o bastante para fazer frente a seus honorários e as custas do processo, principalmente agora, que estava preso, perdera seu emprego e já escasseavam os meios para sustentar sua família. Por outro lado, se vencesse, seria a oportunidade de se tornar famoso e angariar muitos clientes.
O caso cindiu a opinião pública em pró-negros e pró-brancos. O irmão de um dos estupradores mortos organizou, junto com vários amigos, uma facção local da Ku-Klux-Kan, que começou a fazer ameaças a Jake e seus auxiliares, chegando a incendiar sua casa, quase matar Ellen Roark, sua estagiária e atirar em um membro da Guarda Nacional, na saída do fórum, além de praticar inúmeros outros delitos.
Os negros, por seu turno, angariaram verbas, provenientes de donativos em igrejas, com o objetivo de contratar um advogado melhor e mais negro para Hailey. Carl Lee recusou trocar de causídico, mas aceitou o dinheiro, com o qual pagou seu defensor e proveu o sustento da família. O réu acreditava que somente um advogado branco poderia convencer um júri inevitavelmente formado por brancos, sulistas e preconceituosos.
A audiência se arrastou durante vários dias. Primeiramente ambas as partes procuraram descartar os jurados que consideraram tendenciosos. No final, sobraram 12 brancos, os pares do acusado.
Defensor e promotor se desafiaram, dentro e fora do Tribunal, cada um procurando ressaltar suas habilidades e denegrir a imagem e as testemunhas do adversário.
A maioria dos depoimentos não favoreceu suficientemente o réu e alguns lhe foram bastante deletérios. O próprio Hailey, ao ser interrogado pelo promotor, ficou exaltado e declarou que gostaria que os facínoras estivessem ardendo no inferno, prova de que não se arrependera do ato praticado.
O policial que perdeu a perna, entretanto, conhecido do defendente desde a infância, afirmou que não sentia ressentimento e que agiria da mesma forma, caso sua filha fosse violentada.
Pressionado, ameaçado e acuado, após perder sua casa no incêndio e ver sua estagiária hospitalizada, mais uma vítima da Ku-Klux-Kan, o defendente pensa em desistir e propõe um acordo a seu cliente. Mas o acusado recusou veementemente. Para ele nada servia, a não ser a absolvição. Fora disso, seria preferível a morte.
Juntando todas as suas forças e apoiado por seu mestre, um grande advogado que perdera sua licença, não mais podendo patrocinar causas, o causídico chegou ao fórum para a argumentação final. O promotor fez um resumo dos fatos e pediu a pena de morte. Agora seria tudo ou nada.
Tendo as provas contra seu cliente, o patrono do réu decidiu apelar para a consciência dos jurados e fez esse brilhante discurso:
“Nem sempre o direito e a lei são capazes de fazer a melhor justiça. Hoje vou pedir aos senhores que abandonem momentaneamente a razão e pensem com o coração.
Fechem seus olhos e imaginem a cena que vou relatar:
Uma menina de 10 anos volta das compras que fez para sua mãe. Na estrada é atingida por uma lata de cerveja jogada de uma pick-up. Deixando cair as sacolas, tenta correr, mas é agarrada violentamente pelos dois rapazes que saltaram do carro. Em seguida eles a atiram ao chão e arrastam-na para o meio do mato, onde rasgam sua roupa e a estupram, primeiro um, depois o outro. Não satisfeitos, arrastam-na de volta e lhe jogam mais latas de cerveja, para depois pendurarem uma corda em seu pescoço e a enforcarem, pendurando-a em uma árvore. Como estivessem já demasiadamente bêbados, escolheram um galho de árvore que se partiu e a garotinha cai no chão. Os rapazes pegam seu corpo inerte e o arremessam sobre a caçamba da camionete. Vão até o rio mais próximo e a atiram por cima da ponte.
Estão vendo a cena? Agora imaginem que a menina é branca...”
Ao final da argumentação, corriam lágrimas dos olhos de cada cidadão presente àquele tribunal. O veredicto foi que o réu era inocente.
Conseguindo fazer com que cada jurado identificasse alguma criança de sua própria família com a filha do réu, o defensor obteve a justa absolvição de seu cliente.
Embora aqueles cidadãos soubessem que o estrito cumprimento da lei os obrigaria a condenar o indiciado, que matara para vingar o sofrimento de sua filha, expiação que não seria reparada, nem mesmo com a condenação dos estupradores, assim como não o foi com a morte deles, suas consciências de seres humanos os obrigou a desconsiderarem as frias palavras do texto legal, que proíbe que um homem mate outro e optarem pela absolvição.
O mérito foi inteiramente do advogado. Jake, assim como seu cliente, percebeu que para sensibilizar uma platéia branca era necessário haver uma vítima branca. Seu recurso de argumentação baseou-se em contar exatamente a mesma história de Tonya, substituindo-a por uma menina branca, uma menininha tão branca, linda e de olhos azuis como a filha, sobrinha ou neta daqueles homens e mulheres encarregados de julgarem o negro.
Um advogado, mais do que conhecer a lei, precisa conhecer seu público. Saber para quem ele escreve, para quem ele fala. Para um juiz togado, argumentos legais, jurisprudência; para o leigo, a emoção, a sensibilidade.
A missão mais árdua do causídico é harmonizar direito e justiça, de forma que seus clientes não se tornem vítimas da própria lei.
1. Filme Tempo de Matar;
2. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares, A Argumentação nas decisões judiciais, 2 ed. atual., Rio de Janeiro: Renovar, 2000;
3. Site do filme A Time to Kill, http://movieweb.com/movie/timetokill/index.html, acessado em 29 de outubro de 2001.
Esta página foi imaginada e desenvolvida por
Cynthia Guimarães Tostes Malta,
com a colaboração de inúmeras pessoas
que me enviam sugestões.
Meus sinceros agradecimentos a todos
os que me mandam mensagens,
possibilitando que eu atualize e
melhore minhas páginas.
Última revisão:
fevereiro 26, 2002.