A PSICANÁLISE, A LITERATURA E A INDÚSTRIA CULTURAL

Cladismari Zambon de Moraes
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RESUMO: Em uma época em que a cultura se torna bem de consumo, cabe questionar a banalização e a simplificação presentes na arte estereotipada e comercial. Se para alguns críticos de arte a Literatura é uma expressão ou reflexão da realidade, para Freud a arte constitui um domínio intermediário entre a realidade, que nos nega o cumprimento de nossos desejos, e o mundo da fantasia, que procura sua satisfação.





Ao afirmar a característica econômica da motivação humana, Freud refere-se à necessidade de reprimir algumas tendências ao prazer e à satisfação em razão da necessidade de trabalhar. A sociedade, de um lado impele o homem para a busca da satisfação imediata e, de outro, impõe a grande parte da população o adiamento dessa satisfação. As esferas econômicas, política e cultural tornam-se “erotizadas”, inundadas de mercadorias sedutoras e de imagens atraentes, enquanto as relações humanas se tornam enfermas e perturbadas. Nesse contexto, compreender o prazer ou desprazer que os seres humanos encontram em suas atividades torna-se uma possibilidade de entendimento de problemas referentes à felicidade e à miséria. Freud ocupou-se da exploração dessas questões fundamentais ao investigar o que as pessoas consideram satisfatório ou não, numa tentativa de aliviar o homem de sua miséria e torná-lo mais feliz. Posteriormente Marcuse, em seu livro Eros e Civilização, destaca a crescente dependência da moderna sociedade industrial quanto à produção e consumo do supérfluo, do obsoletismo planejado e dos meios de destruição. Ao localizar o “inferno” nos guetos da sociedade afluente e em certas áreas do mundo subdesenvolvido, Marcuse interpreta a propagação da guerra e de guerrilhas como um acontecimento simbólico: a energia do corpo humano revolta-se contra a repressão intolerável e lança-se contra as máquinas da repressão. Transpondo tal preocupação para a arte, percebemos que os problemas do valor e prazer literários parecem situar-se no ponto de intersecção entre a psicanálise, a lingüística e a ideologia. Seja feita de espirituosidade ou suspense, com cores surpreendentes ou numa composição persuasiva, a máscara estética, ocultando paixões primitivas, proporciona prazer, ajudando a tornar a vida suportável tanto para o autor quanto para seu público. É essa visão de Freud que Peter Gay, nos aponta em seu livro Freud: uma vida para o nosso tempo, ao afirmar que “as artes são um narcótico cultural, mas sem o excessivo ônus exigido por outras drogas.”

Grande parte dos teóricos literários tende a ver a obra literária como uma “expressão” ou “reflexão” da realidade. Ela tem como função ordenar a experiência humana, ou materializar uma intenção do autor, ou ainda reproduzir as estruturas da mente humana em suas próprias estruturas. Para Freud as forças impulsoras da arte são os mesmos conflitos que conduzem a outros indivíduos para neurose. Isso porque a arte constitui “um domínio intermediário entre a realidade, que nos nega o cumprimento de nossos desejos, e o mundo da fantasia, que procura sua satisfação”.

Dessa forma, considerar que a prática estética se concretiza num domínio situado entre o real e a fantasia - ou encarar a criação literária como sonho desperto, como mistificação ou como divertimento que reedita a capacidade inventiva da brincadeira infantil - leva, em última instância, a conceder um destaque considerável ao texto literário no tocante ao uso de metáfora, símbolo, personagem de ficção ou mesmo o conflito dramático. Freud aponta esse destaque ao afirmar que a arte é uma realidade convencionalmente aceita, na qual, graças à ilusão artística, os símbolos e os substitutos são capazes de provocar emoções reais. Assim, a arte constitui um meio-caminho entre uma realidade que frustra os desejos e o mundo de desejos realizados da imaginação — “uma região em que, por assim dizer, os esforços de onipotência do homem primitivo ainda se acham em pleno vigor.” Na Psicanálise se procura chegar (numa perspectiva clínica) aos impulsos inconscientes disfarçados, por exemplo, sob a aparente incoerência do discurso onírico. Na leitura do texto literário, por outro lado, desenvolve-se um processo análogo: procura-se captar os símbolos ou as metáforas. Visto dessa forma, as imagens ou os conflitos dramáticos surgem como metamorfoses mais ou menos sofisticadas de sentidos profundos.

A teoria dos sonhos desenvolvida por Freud permite-nos ver a obra literária não apenas como um reflexo, mas como uma forma de produção. Como o sonho, a obra literária toma certas “matérias-primas” – linguagem, outros textos literários, maneiras de se perceber o mundo – e as transforma em um produto. É por isso que a compreensão de uma obra literária não pode estar dissociada de seu caráter sócio-histórico, pois este leva a reviver o contexto em que foi criada, ou seja, fazê-lo presente. Do contrário, esse contexto não é entendido, mas simplesmente descrito. Como afirma Ferrater Mora, a história, enquanto reatualização do passado, deve ser entendida como história do pensamento, o que significa que os acontecimentos históricos (como as obras de arte, as instituições políticas, etc.) não têm sentido a menos que sejam interpretados como pensamentos de alguém. E como um pensamento, pode ser apresentado numa grande multiplicidade de expressões. O autor de um texto literário utiliza idéias, valores, crenças, linguagens, visões de mundo que pertencem à sua sociedade e ao seu tempo. É desse contexto sócio-histórico que emergem as significações de suas obras. É por esse contexto sócio-histórico que a obra literária pode ser compreendida como produto e também como expressão, a serviço muitas vezes da manipulação ideológica.

É sob esse ponto de vista que analisamos o conceito de homem que emerge da teoria de Freud. Esse conceito é uma acusação à nossa civilização, pois desmascara os sofrimentos e restrições ao prazer ao nos revelar que nossa história é a história de nossa repressão. Sua teoria revela, portanto, a vinculação íntima entre civilização e barbárie, progresso e sofrimento, liberdade e infelicidade. Freud inicia seu ensaio “O Futuro de uma Ilusão” com uma discussão sobre a cultura. Para ele, a cultura é um esforço coletivo para dominar a natureza exterior e regular as relações dos homens entre si. Isso significa que todos estão expostos a renúncias difíceis e desagradáveis, a adiamentos de desejos e privações do prazer, em razão da sobrevivência geral.

A teoria freudiana mostra-nos que a civilização é incompatível com as pulsões e com o princípio de prazer. É necessário que haja repressão para que os impulsos animais convertam-se em impulsos humanos e é através de uma transformação fundamental de sua natureza que o homem animal converte-se em ser humano. Ele deve abandonar o Princípio do Prazer e se submeter ao Princípio da Realidade o que implica em abandonar a livre satisfação das pulsões e se submeter às restrições da civilização. Deve aprender a renunciar ao prazer momentâneo, fugaz, incerto, substituindo-o por um prazer adiado, restringido, mas certo e seguro. Com efeito, a satisfação imediata torna-se satisfação adiada e, dessa forma, o prazer converte-se em restrição do prazer e a receptividade torna-se produtividade. Se tivesse a liberdade de perseguir seus objetivos naturais, seria impossível a existência da sociedade civilizada pois, sob o jugo do Princípio do Prazer, o homem seria apenas um animal com impulsos cegos.

O mal-estar do homem frente às exigências culturais pode ser a via de compreensão e de saída para a humanidade, que só conseguiu se organizar a custa da opressão e da dominação. Para Freud, a civilização contém duas características: inclui todo conhecimento e capacidades intelectuais e técnicas que o homem adquiriu com a finalidade de controlar as forças da natureza e extrair dela toda riqueza para a satisfação das necessidades pulsionais; e inclui todos os regulamentos necessários para pacificar a luta entre os homens, ajustando suas relações. Essas duas tendências da civilização estão interligadas, em parte porque as relações humanas dependem da satisfação pulsional que a riqueza existente torna possível. Por outro lado, um indivíduo pode servir como um meio de obter riqueza em relação a outro (como objeto de trabalho ou objeto sexual). Por essa razão todo indivíduo é, para Freud, um inimigo da civilização. Marcuse chama atenção para o desafio que a arte representa para a razão ao representar uma ordem da sensualidade invocando uma lógica tabu – a lógica da gratificação contra a repressão. Subentendido na forma estética sublimada o conteúdo não-sublimado transparece: a vinculação da arte ao Princípio do Prazer. O mesmo princípio que deve ser submetido à realidade e às necessidades repressivas da civilização.

Assim, uma das razões pelas quais precisamos investigar essa dinâmica do prazer e do desprazer é a necessidade de sabermos qual o volume de repressão e de adiamento da satisfação uma sociedade pode tolerar. Pode-se enfrentar os desejos através da “sublimação”, dirigindo-os para uma finalidade de maior valor social e a literatura é um bom exemplo disso. Em virtude dessa sublimação a própria civilização surge ao desviar os instintos para esses objetivos superiores. Assim a história cultural é criada. O desejo, porém, pode ser desviado de finalidades consideradas dignas para outras que menosprezam e degradam e, de alguma forma, os homens concordam em tolerar essa opressão e indignidade.

Tomando ainda a noção psicanalítica de pulsão, os autores da Escola de Frankfurt, especificamente Adorno e Horkheimer, ressaltam que os sujeitos da economia pulsional são expropriados psicologicamente e essa economia passa a ser gerida mais racionalmente pela própria sociedade. As decisões que o indivíduo deve tomar em cada situação não precisam mais resultar de uma dialética interna da consciência moral, da autoconservação e das pulsões. Fazem, portanto, uma crítica à sociedade moderna e sua indústria cultural, uma vez que a organização social encarrega-se de afastar as resistências manifestas que antigamente inflamavam as paixões, transferindo o controle para o indivíduo, que deverá adaptar-se a qualquer preço. A paixão é rarefeita e simplificada e cabe perguntar se não é exatamente essa a via para a compreensão do fenômeno de intensificação e de importância exacerbada do mal estar que o indivíduo experimenta em sua relação com o mundo atual.

Este termo Indústria Cultural foi utilizado pela primeira vez por Adorno e Horkheimer para substituir o termo "cultura de massa", que poderia ser enganoso, isso é, poderia levar a se pensar que se tratava de uma cultura vinda espontaneamente das massas, de uma forma contemporânea de arte popular. A Indústria Cultural seria resultado de um fenômeno social observado nas décadas de trinta e quarenta, em que filmes, rádios e semanários constituíam um sistema harmônico no qual os produtos culturais seriam feitos adaptados ao consumo das massas e para a manipulação dessas mesmas massas. Corresponderia, portanto, a um sistema em que os vários produtos culturais se conjugam harmonicamente. Porém, essa integração é deliberada e produzida "do alto", pelos produtores, com a determinação do tipo e da função do processo de consumo. A lógica que comanda todo esse processo operativo que integra cada elemento é a lógica do lucro, ou seja, o objetivo da obra cultural deixa de ser a criação de algo novo, e passa a ter por tarefa agradar, vender bem. Visto dessa forma, a lógica da obra de arte não se distingue mais da lógica do sistema social, visto que a tecnologia destrói esta distinção com a produção em série transformando a arte num negócio cujo fim é a aquisição de capital. O que a Indústria Cultural fornece, de fato, é a vida cotidiana, a verdadeira imagem do mundo tal qual ela se apresenta, promovendo a resignação que se quer. Estraga o prazer, manipula as distrações, permanece voluntariamente ligada aos clichês ideológicos da cultura em vias de liquidação, defende e justifica a arte física em confronto com a arte espiritual, não tem substância e despersonaliza o humano contra o mecanismo social.

Portanto, uma das estratégias de dominação por parte da Indústria Cultural seria a estereotipização, com a divisão dos produtos em gêneros: o terror, a comédia, o romance, a aventura. A partir dela se consegue definir um modelo de atitude do espectador, um modo como o conteúdo será percebido tendo como meta garantir o triunfo do capital investido na produção desses bens culturais.

A Indústria Cultural deve ser entendida como um sistema multiestratificado, de significados sobrepostos, ou seja, com mensagens explícitas e outras ocultas cujo objetivo é seduzir os espectadores em diferentes níveis psicológicos. Os indivíduos sob a ação da Indústria Cultural, portanto, deixam de ser capazes de decidir autonomamente, passando a aderir acriticamente aos valores impostos, dominantes e avassaladores difundidos pelos meios. Essa dificuldade de percepção ocorre em virtude de uma diminuição do contato das pessoas com o que é particular, subjetivo e os consumidores apenas pensam que são sujeitos pensantes. Se a cultura contribui para domar os instintos revolucionários e os costumes bárbaros, a cultura industrializada vai além, promovendo a tolerância da vida desumana que cada qual vive e banalizando a vida. Em alguns best-sellers, por exemplo, há uma redução da complexidade humana, com a apresentação de personagens lineares, bons o tempo todo ou vilões implacáveis sempre com características físicas e psicológicas semelhantes.

A compreensão desses elementos torna o contexto sócio-histórico essencial para a interpretação de uma obra de arte. Caso contrário, tal interpretação estará fadada ao equívoco por ignorar os elementos intrapsíquicos e ideológicos que estão implícitos. Já demonstramos que a formação dos valores estéticos está relacionada com a elaboração psíquica tanto no que diz respeito ao conteúdo imanente da necessidade pulsional quanto às exigências provenientes do meio. Princípio do Prazer e Princípio da Realidade andam de mãos dadas em prol do bem-estar pessoal e da civilização. Não pode haver um sem o outro assim como não se pode conceber a obra de arte sem a criação do artista e sem a recepção por parte do público. Assim, não se pode pensar no texto literário apenas como um produto do inconsciente do autor, como alguns autores sugerem. Também não se pode fazer uma transposição linear nos métodos de trabalho da psicanálise para o âmbito da crítica literária pois, como afirma Paul Ricoeur, a obra de arte não é uma simples projeção de conflitos do artista, mas um esboço de suas soluções. Embora Freud, ao afirmar que os desejos não satisfeitos são as molas pulsionais das fantasias, aproxime o sonho e a poesia enquanto testemunhas do homem descontente e insatisfeito, Ricoeur questiona a extensão de tal interpretação proposta pela psicanálise. A sublimação é apresentada pela psicanálise como o desvio realizado para fins de satisfação pulsional, tornando a obra de arte ao mesmo tempo o sintoma e a cura, retrato e produto, enfim, “a sublimação é tanto o título de um problema quanto o nome de uma solução”. A forma como se manifestam tais soluções, como vimos, diferem no tempo e no espaço, de acordo com as experiências pessoais do indivíduo e com o momento sócio-histórico onde se insere, ditando regras e oferecendo material para a arte da mesma forma que oferece elementos para a produção onírica. Esse substrato comum de onde emergem os sonhos e a arte é também fonte de insatisfação frente às exigências que a civilização impõe ao indivíduo. Dessa forma podemos pensar no caráter socialmente situado, no tempo e no espaço, do material semântico utilizado nas metáforas e outras figuras de simbolização presentes na obra literária enquanto produção humana e retrato da cultura de um grupo social.

A simplificação e a estereotipização do produto cultural para fins de lucro oferece ao indivíduo uma ilusão de felicidade baseada no consumo. Freud nos alerta do perigo que o indivíduo oferece à civilização pois todo ato criativo é, em última instância, uma tentativa de solução ao impasse gerado entre a necessidade de satisfação e a repressão. Se, por um lado, a Indústria Cultural tende a padronizar o indivíduo em favor do grupo social, por outro a arte genuína busca rompimento e satisfação sublimatória, subjetiva e única. A arte, enquanto produto e retrato da civilização, deve ser observada com olhos críticos que buscam soluções para conflitos interiores e, principalmente, buscam sentido para suas angústias referentes ao estar no mundo

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