A IMPORTÂNCIA DOS FUNGOS
Nem bichos, nem vegetais, os fungos são tão esquisitos que formam um
reino à parte na natureza. Versáteis, entram tanto na fabricação de queijos
quanto no controle de qualidade de produtos industriais.
Eles mofam pães, estragam sapatos e tingem paredes com manchas
verdes. Ao mesmo tempo fontes de remédios — sobretudo antibióticos — e
provocadores de doenças, também são mundialmente consumidos na forma de
pratos nobres, como as raríssimas e caras trufas e o champignon. Pioneiros
entre as formas de vida na Terra, são tão diversos entre si e diferentes de
todos os outros seres do planeta que, depois de muita controvérsia sobre sua
classificação, acabaram considerados um reino à parte na natureza. Os fungos,
essas esquisitas criaturas que crescem tanto em organismos vivos como nos
mortos, começam a ser cobiçados para ajudar empresas brasileiras no controle
de qualidade de produtos industrializados.
De inconvenientes, os bolores e mofos tornaram-se mais um
instrumento dos cientistas nas pesquisas com medicamentos, desinfetantes,
inseticidas e, mais recentemente, anticorrosivos e simplificadores dos
mecanismos de produção de álcool. Isso fez crescer o interesse de várias indústrias
pelos fungos, fato que está causando furor nas micotecas, os laboratórios que
os criam; armazenam e distribuem, classificando-os segundo sua origem e características
peculiares. À medida que cresce a procura, aumenta a quantidade de tipos
explorados. "Na busca desenfreada para conhecê-los melhor, eles ganharam
casa própria e pedigree", compara o biólogo e micologista Mário Gatti,
da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Com 1 942 tipos diferentes, a
micoteca da Fiocruz é a maior coleção brasileira do gênero.Existem no mundo
cerca de 300 bancos de fungos. O mais completo deles é o da American Type
Culture Collection (ATCC), nos Estados Unidos. Ali estão disponíveis mais de
50 000 micro-organismos diferentes, metade composta de fungos, bactérias e
protozoários, que serviram de base para quase todas as coleções conhecidas.
Acostumada a fornecer amostras para pesquisas universitárias e testes de
esterilidade de medicamentos e cosméticos, a "fábrica" de fungos da
Fiocruz conquista novos clientes. No ano passado, o número de pedidos de
amostras de fungos dobrou em relação ao ano anterior. Mário Gatti, um dos
curadores dessa micoteca, associa o crescimento à vigência do Código de
Defesa do Consumidor. "As empresas estão mais preocupadas com a garantia
da qualidade de seus produtos", acredita.Entre a clientela dos bancos de
fungos, os maiores consumidores dos microorganismos comercializados no planeta
foram os fabricantes de medicamentos e cosméticos. Empresas como Johnson &
Johnson e Glaxo empregam fungos nos testes laboratoriais para controlar a
qualidade de seus produtos. O processo implica contaminar propositadamente
amostras do que se quer testar com fungos, principalmente o Aspergillus niger,
encontrado em abundância na natureza. São feitas então análises periódicas
para constatar se a população de fungos aumentou ou diminuiu.
Se diminuiu até não sobrar quase nenhum, significa que o
conservante daquele produto é eficiente. "Nossos produtos nas prateleiras
precisam manter a mesma capacidade de preservação do produto recém-fabricado'',
avalia Lenir Garcia, gerente de microbiologia da Johnson & Johnson.
Na
busca de seu principal alimento, o carbono, alguns fungos são odiados porque
degradam materiais largamente utilizados pela indústria, como plásticos e
metais. Para saber se seus produtos vão durar além das portas da fábrica, os
responsáveis pelo controle de qualidade das empresas colocam-nos em contato com
os fungos existentes lá fora. É isso que faz há cinco anos o Instituto
Militar de Materiais Bélicos (Imbel) para medir a resistência à corrosão dos
componentes de seus apareIhos radiotransmissores e detonadores de explosivos.
Ulysses D'Elia, o biólogo responsável por este trabalho, coloca as peças a
serem examinadas junto com uma batata comum numa câmara lacrada, onde também
é introduzido um pool de fungos especialmente selecionados. "Em terra, no
mar ou no ar, os equipamentos têm de agüentar as mais variadas intempéries,
possíveis de acontecer em qualquer região do Brasil", conta D'Elia.
Dentro da câmara, são simuladas durante 28 dias todas as condições
ambientais a que os aparelhos estarão submetidos. “A batata funciona como um
termômetro, que mostra se os microorganismos estão sendo ativos. Em caso
positivo, os fungos tomarão toda a batata", explica D'Elia. Experiências
semelhantes também são realizadas pelo Instituto de Pesquisas da Marinha, em
testes de resistência à corrosão dos equipamentos de navios e
submarinos.Enquanto a capacidade deteriorativa dos fungos é problema para
alguns, outros têm nesta característica um grande aliado. É o caso da produção
de álcool combustível. que pode se tornar muito mais simples se nela forem
aplicados alguns estudos realizados pelos cientistas do Instituto de Química da
Universidade de São Paulo. Liderada pelo bioquímico egípcio Hamza El-Dorry,
esta equipe se utiliza do fungo Trichoderma reesei, descoberto durante a Segunda
Guerra Mundial, para degradar celulose (a matéria-prima do papel) até a obtenção
de glicose, que depois de fermentada se transforma em álcool. Na década de 40,
esse fungo foi estudado em caráter de urgência por laboratórios americanos,
pois desintegrava em poucos dias o tecido das barracas de campanha do Exército,
armadas em campo de batalha.Os pesquisadores da USP já isolaram o gene do fungo
que determina suas características glutonas. Agora, os esforços se concentram
em conhecer como ele produz a enzima que degrada a celulose para inserir esse
gene na levedura convencionalmente utilizada para transformar a glicose em álcool.
"Estamos criando um processo único e integrado, que permite a obtenção
de álcool até do bagaço da cana-de-açúcar, de madeiras e papéis jogados no
lixo", preconiza El-Dorry. As leveduras também são empregadas na fabricação
de cereja, vinhos e fermento para pães e bolos. Alguns fungos são ainda a peça
fundamental de queijos finos.
Dizer que um queijo está embolorado não significa
necessariamente que ele esteja estragado. Pelo contrário: o sabor dos queijos
roquefort, gorgonzola e camembert depende do trabalho dos fungos. No dois
primeiros tipos, o gosto picante e o forte aroma somente são obtidos por meio
da perfuração de suas massas já prontas, onde são introduzidos bolores que
ali se desenvolvem com a presença de ar.
Os queijos camembert passam por um banho de imersão numa solução de mofo para chegarem à textura cremosa característica. Crescendo de fora para dentro de cada queijo, os fungos formam na parte externa aquela fina superfície dura e branca. Tanto as manchas verdes como a película branca são muito diferentes do bolor de um queijo estragado. Os bolores, como o Penicillium citrino, secretam substâncias potencialmente tóxicas, como a citrinina, que atacam células do fígado.Antes que cheguem à mesa, vários alimentos podem tomar contato com fungos ainda na lavoura. Em Brasília, o Centro Nacional de Pesquisa de Recursos Genéticos e Biotecnologia da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) está elaborando um catálogo com mais de 300 fungos isolados para pesquisas na área de controle biológico de lavouras, ou inseticidas biológicos. Marcos Rodrigues de Faria, um dos engenheiros agrônomos envolvidos no projeto, explica como são feitos os testes para criação dos bioinseticidas: "Pegam-se as larvas do inseto contra o qual se quer combater. Elas são mergulhadas em uma suspensão líquida contaminada com algum fungo, geralmente Beauveria bassiana ou Metarhizium amisopliae. Se ele for capaz de matar a larva, será utilizado como inseticida".Aproveitar todo o potencial dos fungos não foi um caminho fácil de ser percorrido pelos estudiosos. Pesquisados em várias frentes desde o final dos anos 20, quando chegaram a público as descobertas do bacteriologista Alexander Fleming, só na década de 60 se chegou a um acordo sobre a identidade desses organismos. "Fungo não é vegetal nem animal, apesar de ter características de plantas e de animais", afirma Pedrina Cunha Oliveira, farmacêutica e bioquímica que estuda esses seres desde 1964. Responsável pelo departamento de micologia da Fiocruz, ela ensina que "o fungo é considerado animal porque seu alimento de reserva é o glicogênio, e não o amido, como em todas as plantas". Mas também era considerado planta pela sua própria morfologia: "Se olhado num microscópio, o fungo parece uma flor. Mesmo assim, eles não produzem cloroplastos, portanto não fazem fotossíntese".
Esta
diferença em relação aos outros seres é que levou à criação do reino
Fungi, um dos cinco reinos da natureza. Os outro quatro são o Animalia, dos
animais; Plantae, dos vegetais; Monera, de organismos unicelulares como as bactérias;
e Protista, dos organismos unicelulares como os protozoários. Saber com exatidão
quais são esses seres que jogam ora contra, ora a favor do homem foi só o começo:
"A história dos fungos é linda e foi pouco estudada", diz Pedrina.
"Seu potencial encontra se em aberto."
Antibiótico
por acaso
Enquanto alguns fungos provocam espirros, outros salvam vidas. Prova dessa benevolência dos membros do reino Fungi é a descoberta que o bacteriologista Alexander Fleming (1881-1955) fez em 1928. Ele trabalhava num laboratório em Paris, na França, quando descobriu um ser alienígena desenvolvendo-se no meio das bactérias Staphylococcus com as quais realizava pesquisas. Em vez de ficar irado com o intruso, Fleming decidiu estudá-lo e o identificou como sendo esporos do fungo Penicillium notaram que estavam “acidentalmente" inibindo o desenvolvimento das bactérias. Ele acabava de descobrir a penicilina, o primeiro de uma série de antibióticos que revolucionaram a Medicina.