O APARTAMENTO 155.
Há trinta anos existia e habitava o mesmo
local no Edifício Morgana Le Fay, nunca se ouvira nada de estranho sobre ele,
era silencioso, poucos o conheciam e diziam que era aprazível, porém tudo mudou
quando Dona Mariusia veio lhe fazer companhia, a principio se deram muito bem,
apesar da diferença de mais de trinta anos, a senhora era uma cozinheira de mão
cheia e o local cheirava a biscoitos da primeira hora do dia até o anoitecer,
ela contava história de sua mocidade e como gostava de bater papo à anciã.
Tudo corria as mil maravilhas, quando as
maneiras, digamos excêntricas, da velhota começaram a surgir, primeiro foram os
gatos, não um ou dois, mas dezenas deles, todos os bichanos achados na
vizinhança ela acolhia, era uma sinfonia de miados sem hora para começar e
terminar, os vizinhos já lhe dirigiam adjetivos pouco dignos, a situação piorou
quando a limpeza se tornou precária o cheiro dos biscoitos misturado aos de
fezes e urina felinas, o embrulhava, tentou argumentar, recebeu ouvidos moucos,
pior teve a porta destroçada pelas unhas dos animais, a parede mofada, pois
dona Mariusia não tinha mandado consertar o vazamento, gastava todo o dinheiro
em bingos e ração, não colocava o lixo pra fora e repetia insistentemente a
cada meia hora a mesma história.
Sua paciência chegara ao limite, faria
ela se mudar de qualquer maneira, planejou, passou noites em claro, decidiu que
começaria a operação atacando onde mais doía, nos gatos, iria sumir com eles,
isso talvez trouxesse a idosa a razão. O primeiro a sentir sua ira foi
Leozinho, um gato rajado em ruivo e mel, a oportunidade surgiu em uma das idas
ao bingo, o gato alvo tinha mania de subir no encosto do sofá e afiar as garras
na parede junto a janela e ficar brincando com a cortina, em um momento de
distração do bichano, uma janela aberta de sopetão, o sofá tremeu, Leozinho
tentou se agarrar na cortina, sem êxito fora lançada junto com ele do 15º
andar, nada mais a fazer a não ser miar a espera do impacto.
Dona Mariusia chegou tarde aquele dia,
deu de cara com o zelador segurando sua cortina, o homem não encontrava formas
gentis de contar o ocorrido, desembuchou de uma vez, as pernas da mulher
bambearam, sentia tonteiras, justo Leozinho o seu preferido, que crueldade,
subiu para sua casa, olhou para a janela, fechada, trancada na verdade,
sentou-se no sofá e acariciava a cortina onde alguns fios ruivos se
sobressaiam, não entendia como aquilo tinha acontecido, foi então que notara o
silêncio, onde estavam seus outros filhos, sim era isso que eles eram para
aquela antiga bibliotecária, chama daqui e nada, coloca a ração no pratinho
nenhum deles aparece, ensimesmada e amedrontada pelos acontecimentos começa a
busca, nem sinal dos felinos, bate nos vizinhos, talvez alguém saiba de algo -
pensa. Enfim, a empregada do 156 viu uma debandada geral dos filhos de Dona
Mariusia pela porta da área de serviço, disse que os coitados corriam como se
tivessem visto o capeta em pessoa, rolavam a escadaria em desespero, tentando
fugir seja lá do que for que estivesse lá dentro, quando ela tentou ver o que
acontecia a porta foi batida na sua cara.
A senhora não podia acreditar todos
tinham fugido, mas por que isso, como puderam abandoná-la assim sem motivos,
afinal o que acontecera ali, entrou, os anos e o dia agitado lhe pesavam nas
costas, dirigiu-se ao banheiro, precisava de uma ducha, estranhamente os
azulejos mostravam uma certa condensação, a porta do box travada e embaçada,
forçou a abertura, uma nuvem de vapor saiu e abriu espaço para uma cena
horrível, três dos seus gatos ali mortos, escaldados, não suportou tentou
gritar de medo e pavor, mas a garganta se fechara, vez um movimento rápido para
sair a porta se fechou, dona Mariusia assustou-se mais ainda, o chão
escorregadio terminou tudo, desequilibrou-se sua têmpora de encontro a borda do
bidê e o sangue inundou e tingiu de vermelho os azulejos brancos. Por dentro
ele se sentia leve, regozijava de felicidade e alívio por ter sua calma e
liberdade novamente, podia-se ouvir até um riso preso.
Passaram-se alguns meses após a tragédia,
ninguém no prédio falava mais sobre o assunto, às vezes um sussurro a sua
porta, mas nada demais. Fazia poucos dias que tinha nova companhia, era
Alberto, rapaz, estudante de direito de uma famosa universidade privada, tinha
hábitos regrados, não fazia barulho, passava a maior parte do tempo no quarto
estudando, trazia um ou outro amigo, mas era coisa rara, um jantar, estudos e
iam embora sem problemas, viveram sem maiores entreveros durante 6 meses, o
rapaz nada fazia que o desagrada-se, foi quando aconteceu o pior, Alberto
levara ao mesmo tempo pau em Medicina Legal e um belo par de chifres da
namorada, não conseguiu se segurar, mesmo com o apoio que ele lhe dera, o
futuro advogado se entregara a bebida para esquecer, trocara de amigos, os
novos lhe apresentaram um mundo mais cruel e desumano, baladas pesadas, drogas,
Alberto afundara-se e transformara toda a sua vida em desordem, barracos etílicos, confusões com moradores, pichações
em suas paredes, depredações gratuitas de janelas, pintou um alvo na porta do
quarto e treinava arremesso de tudo que tivesse a mão.
A situação ficou insustentável, não
suportava mais o cheiro de bebida, maconha e suor que impregnavam o ambiente,
voltara a ser alvo de piadas e xingamentos nas reuniões do condomínio, era
humilhado até pelo rapaz, apresentado como o lixo, a bosta, a inutilidade, não
tinha mais jeito, com o garoto não haveria mais diálogos, lembrou-se de
Mariusia, sim faria a mesma coisa, só que dessa vez com mais energia, menos
planejamento e não contaria tanto com a sorte, seria rápido e simples. E foi,
na noite seguinte Alberto acordou tarde, escutou um barulho estranho na
cozinha, a torneira jorrava, o chão alagado, estranhou, mas deu de ombros,
enfiou o pé na água, sentiu um formigamento na perna que passou para o corpo
todo, despencou se contorcendo e babando no chão inundado, ficou como última
imagem na sua retina o fio descascado boiando e ligando a geladeira a tomada.
Foram dois anos de muita paz, tinha
desistido da companhia de pessoas sós, e optou por um casal jovem e que alegria,
encontrara em Paco e Melissa grandes companheiros, gentis, prestativos, se
sentia como novo, abria as portas, deixava o ambiente ventilado, se iluminara
com a gravidez da jovem e estava radiante com a chegada do pequeno Diego, a
primeira noite do bebê no novo quarto, todos dormiam, ele finalmente desfrutava
de noites tranqüilas, quando o pequeno começa a chorar, esgoela-se na verdade,
os pais de primeira viagem não acordam, ele tenta acalmar o gurizinho, nada,
lembra-se de Mariusia e Alberto, ferve, vai resolver de vez a questão bate a
porta do quarto, o casal acorda assustado, tenta desesperadamente entrar, todos
os esforços em vão, Diego chora sem dó, a lâmpada pisca num ritmo furioso,
incessante, as paredes tremem, tingissem de rubor, a janela abre e fecha com
voracidade, de repente silêncio, tudo se acalma, a porta destranca, lá dentro
do quarto no berço, o garotinho sorri como se nada tivesse acontecido, os pais
não sabem o que pensam, acham que era um sonho, por uma fresta na janela a
brisa passa e proporciona a sensação de um assobio calmo, feliz, o bebê abre um
riso maior ainda. “É até que esses humanos são engraçadinhos.” – conclui o
apartamento 155 do Edifício Morgana Le Fay.
Rodrigo Vellozo Romera
10/12/2004.