PRINCIPAL
voltar para página de textos
11 de Julho de 2004
Desencantos encantados cantos
Ela nem mesmo sabia. O cheio da lua de sábado enchia de luz inverno. Transbordaria imprevisto na madrugada. Entre cigarros, cervejas, letras. Algumas confidências renderiam reticências. Coincidências. A intenção não era aprendizado, era discussão de idéias, possibilidades. Apreensão conseqüente. Tudo embasado por confiabilidade, afinidades. Mulher-moça-menina queria traduzir metáforas. Mastigar letras e cuspi-las no prato do entendimento. Depois, misturá-las ao álcool e arrancar ensinamentos do menino-Homem-moço. Caminhos com atalhos. Retalhos de sentimentos. Mais vale o desabafo, a troca. Mais vale a canção no canto do tempo tocada por uma orquestra regida pela vontade. Maestrina enfeitou o cenário com estrelas e lua cheia, derramando improvisos. Recém-nascidos desencantos encantados cantos.

Mais sedutor impossível. Palavras, letras, interrogações. Na enfumaçada noite, perderam-se palavras e encontraram-se emissores-receptores-emissores. O que foram quando cresceram? Comunicantes, por formação. Para apimentar a noite, experiência de redenção. Para ele, para ela. Para os dois. Ou para alvos de assuntos, de pensamentos e de planos. A pauta era desencontros, dúvidas, decepções. A temperatura derreteu lamúrias no ar. Misturou-se tormento. Tragadas na fumaça do encontro, certezas flutuaram. Alcançaram luminosidade da lua e levaram embora juízo. A despedida: nuvens-sorriso-nuvens. Vestígios.

Palavras eram sopradas e se encontravam de forma natural. Ela proferia longas histórias. Relembranças clamando para encontrarem seu jazigo nas páginas que ela descrevia sem riqueza de detalhes. Reinventavam enredo de encantos. Ele engolia tudo sem mastigar. O tempo era curto. Falavam, falavam. O tempo parecia se esgotar. Letras fêmeas. Jogos machos de palavras. Alfabeto enamorado. Paixão dialética. A sinergia mais parecia um balé. As sílabas pareciam estar esperando umas as outras, para enfim se casarem. Consoantes consoantes. Vogais: macho e fêmea, virgens e experimentadas; encaixando-se. Infernos astrais. Pitadas carnais e uma dose de desistência, de resistência. No cenário da imprevista madrugada improvisada, também era evidente o significativo espaço que ocupavam os ipês rosados da Savassi.

Poderia ser testada no Centro de Belo Horizonte, com suas centenas de histórias de boemia saltando das paredes dos prédios antigos. Os ares ainda quentes de histórias de amor fugindo pelas janelas dos edifícios. A receita de exóticos ingredientes poderia ser feita pela manhã ou pela tarde. Tendo como paisagem o pôr-do-sol, visto da Praça do Papa. Ou o nascer do sol, visto da Serra do Curral. Um novo dia, recém-nascido, de raios coloridos, enchendo de vida os gramados das montanhas. Poderia ser sob uma sombra calma de uma velha palmeira imperial.
Mas foi durante a madrugada, regada de lua sedutora. Foi em mesas de bares, que se iniciou a excursão para as grutas das próprias verdades próprias. Abecedário culinário. E talvez tivesse passado pela cabeça dele que era perfeita a combinação de cachaça com desabafos e reclames soprados nos ombros. Pela cabeça dela, passaram os ingredientes para o drink perfeito: encontros e desencontros e, para adoçar, entrega. Sábio sabia?

Nem assim, oferecendo um ao outro um pouco de melancolia coberta por decepção, conseguiram alcançar algum estado prático de contemplação. Os efeitos vieram depois. E o que questiona ela, jovem desvairada. Lágrimas são combustíveis para a criação? E o que responde ele, degustador já profissional de cafés e de nicotinas com letras: Pode-se transformar a amargura rígida da tristeza em leves e delicadas penas. E fazer cócegas no coração do leitor, até mesmo o mais solitário, reflexo mais perfeito dos versos sob a forma de organismo humano. Ele nunca tinha demonstrado essa face contemplativa de seu caráter. Foi veneno na veia da moça. Brilho na lua, nos olhos, nas estrelas, nas palavras, nos infinitos questionamentos dela e nas respostas - que incitavam fome - dele. Brilho no improvisado balanço de encoberto descoberto que encontraram.

Antropofágicos. Degustando cervejas, palavras, versos, causos, sucessos e insucessos, planos e passados, lembranças, saudades, sonhos, desejos incuráveis, caminhos múltiplos e rota única, pedágios de curiosidades, vontades. Acabaram por misturar poesia de neblina com improvisos derramados pela lua. Colheram no domingo um belo dia de sol. E ela, um restinho de descanso regado à musicalidade de um Caetano inglês, também movido pela vontade. Diferente do desejo imprevisto da menina. Cantam nos dias que se seguem, pontos de interrogação, regidos pela reticências.
p a r a   n a v e g a r
t e x t o s
r e p o r t a g e n s
l i v r o  d e  v i s i t a s
r e f r e s c o