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11 de Outubro de 2004
TRÁFICO: borracha da inocência
Ensangüentado. O sangue escorre pela calçada, leva esperança de crianças descalças, desprotegidas, sem perspectivas de futuro decente, de futuro digno, de futuro. O tráfico de drogas furtou ingenuidade, apagou inocência.

Senhoras e senhores, moças e rapazes, crianças se aglomeram nos aglomerados, se acotovelam para ver de perto o corpo, quase rompendo o isolamento de fita plástica preta e amarela. Não é um grande espetáculo, nada inédito, a cena não é incomum. Estão acostumados a encontrar um ou outro cadáver caído na calçada – a maioria atingido por disparo de arma de fogo – , quando vão à escola, ao trabalho, ao bar.

Cinco tiros de uma arma calibre 22 atingiram a cabeça de um rapaz, aproximadamente 25 anos. É o palco onde crianças maltrapilhas crescem, onde brincam perto do esgoto. Ilustra o início do feriadão, Dia das Crianças, coincidentemente ou não. Data criada pela fábrica de brinquedos “Estrela”, em 1955. Uma jogada de marketing que, certamente, não tinha como público alvo os miseráveis das favelas.

Os peritos apressados em fazer o trabalho. Vários outros corpos precisavam de análise na tarde daquele domingo de primavera. Identificação? Nenhum tipo de. Indícios: “mais um vagabundo”, diziam policiais.

Certo dia, chamou-me atenção a comemoração de uma militar pela prisão de um homem, 18 anos, suspeito de ter participado da execução de um colega dela, dentre outros assassinatos. Na noite anterior, o jovem matara um “amigo”, menos de um mês depois de ter completado a maioridade. “Menos dois vagabundos nas ruas. O que ele matou de madrugada também era malandro”, explicou-me pelo telefone a mulher de voz suave e linguajar grosseiro. “O vagabundo da madrugada” morreu com dois golpes de uma pedra de ardósia na cabeça, depois de brigar por causa de uma pedra de crack.

Nos locais dos crimes não há sinal de remorso, dor, culpa ou surpresa na pupila inexpressiva dos moradores. Os mais velhos, sempre sábios, ainda sensíveis, usualmente cobrem os lábios com uma das mãos e, por alguns segundos, cerram os olhos. Parecem lembrar de um tempo longínquo onde a vida não era tão banalizada. Questionados sobre o medo da violência, afirmam enfaticamente: “Não moro aqui. Não sei de nada.” Lei do tráfico. Lei do silêncio.

O morto espiado no feriado de Dia das Crianças, em 2004, no Alto Vera Cruz, um aglomerado da capital mineira, era moreno escuro, vestia blusa verde, bermuda estampada de cinza e de alaranjado e chinelos da cor da camisa. O rosto coberto de sangue colore o asfalto, apaga decência da vida de pessoas simplíssimas, umas honestas, outras nem tanto. O morto era mais uma borracha do tráfico, apaga inocência daquelas crianças.
Despertam sempre minha curiosidade, os olhos pouco curiosos, fascinados. O empurra-empurra de pessoas em volta do cadáver, sempre habitual. Meninos de mais ou menos seis anos brincam perto da cena do crime. Parecem não se importar, ou teriam se acostumado ao fato.

Uma moradora revoltada desabafa, não achava nada daquilo normal, como demonstram muitos passantes. O filho dela, de apenas 10 anos, não ia mais à escola, fazia tratamento psiquiátrico e iria morar com a avó, no interior de Minas. O motivo: trauma em ver tantos ensangüentados estendidos, deformados, identificados ou não, amigos, conhecidos ou desconhecidos, no caminho para a aula.

O que será, o que será? A poesia de Chico é uma luva. O que será desses meninos? Vítimas das mazelas humanas? Subjugados pelo tráfico de sonhos? Fadados a trabalhar no comércio de drogas, antes mesmo de aprender a ler, escrever. Antes mesmo de ganhar um carrinho de plástico, este sim vagabundo.

Todos os dias, cerca de 30 menores passam pela Divisão de Orientação e Prevenção à Criança e ao Adolescente (Dopcad), um lugar feio e mal cuidado, segundo dizem, onde crianças criminosas são recuperadas. Cada vez mais cedo elas se graduam na arte da malandragem.

Estão acostumadas à miséria. Estão revoltadas com a desigualdade social. O divertimento dessas crianças é andar de pistola 380 na cintura, matar algum “mano da polícia”, fumar maconha e crack e, para provar masculinidade, engravidar o maior numero possível de meninas. Os filhos seguirão os caminhos traçados pelos pais.

Passa pela minha cabeça, hora dessa, Dia das Crianças, um garoto de 10 anos, ganhando seu primeiro revólver para trabalhar para o tráfico. No ano que vem, pode ser ele o morto a coroar o feriadão de Nossa Senhora Aparecida. Aí, a borracha da inocência será travestida de ingenuidade, pela milésima vez. Ensanguentado.
p a r a   n a v e g a r
t e x t o s
r e p o r t a g e n s
l i v r o  d e  v i s i t a s
r e f r e s c o