No escurinho do cinema

(João Ubaldo Ribeiro)

Leio aqui nas folhas, com grande escândalo, que, na Malásia, agora é proibido apagar as luzes nos cinemas, no intuito de preservar a moral e os bons costumes. Que pretende a Malásia, subverter todos os valores mais caros à cultura universal? Ninguém, com exceção do nobre conselheiro Sérgio Cabral, que já esteve até nas Malvinas, sabe onde é a Malásia e, graças a Deus, não é nos Estados Unidos, pois, do contrário, já haveria um deputado propondo a mesma medida no Brasil. Sabendo nós, ou não, onde fica a Malásia, os malásios também são filhos de Deus e não podemos deixar de nos horripilar com medida tão atentatória à comunidade dos freqüentadores de cinema.

Sim, meus amigos, sou do tempo de Richard Egan, Victor Mature, Fernando Lamas e Jeff Chandler, sou do tempo em que o escurinho do cinema era indispensável ao desenvolvimento normal da personalidade. Sem cinema, pelo menos na Bahia, não seria possível propagar a espécie humana. Imagino que a Malásia pode ainda estar na era pré-motélica, como a que infelizmente vivi, mas nada justifica esse retrocesso social. Como assistir a um filme com as luzes acesas? Jeff Chandler, que tinha duas expressões faciais, e Richard Egan, que não tinha nenhuma, não fariam falta, se esmaecidos pelas luzes acesas na sala. Mas quantas outras coisas, ai memória cruel, ai anos que não voltam mais, não fariam falta — e não me refiro à pipoca?

Dirão vocês que fui um tarado do escuro do cinema. Aleivosia, mentira, suposição de má vontade. Mas o cinema era o único lugar em que as meninas — às vezes insuportavelmente acompanhadas por uma parenta mais velha, embora houvesse algumas extremamente compreensivas em trair a confiança familiar e outras fossem fãs de Richard Egan mesmo — podiam freqüentar em nossa companhia. (Pasmem, meus caros amigos mais jovens, mas moça direita, certinha, não aceitava nem carona do colégio para casa, e existiam cafajestes que diziam que, se aceita a carona, a mão no joelho, não raro seguida de um tapa na cara do mãozudo, era um direito líquido e certo.) Naquele tempo, esfregada de cotovelo podia ser os píncaros da glória. Pegar na mão era uma conquista. Pegar em outros lugares, pelo menos no Nordeste e depois de meses de trabalho, podia ser caso de morte, ou constituição de uma família de 19 filhos e 54 primos.

Mas havia heróis e especialistas, cuja história gloriosa ainda está por ser levantada. Podem chamá-los também de tarados, mas tarado de cinema é como corruptor: sem corrupto, não haveria corruptor, assim como, sem tarada de cinema não haveria tarado de cinema. Claro que isso requeria talento e sorte, pois imagino que, em dez tentativas, o tarado acertava uma, correndo graves riscos, ao menos na Bahia de meus tempos gloriosos, em que os cinemas eram patrulhados pela extinta e saudosa Guarda Civil. ("Quem come e guarda come duas vezes!", gritávamos os policiados, deixando intencionalmente de pronunciar a conjunção e levando os guardas a furores investigatórios invariavelmente inúteis.)

Entre meus favoritos tarados de cinema encontrava-se um senhor amigo meu, hoje respeitabilíssimo, ex-político de reputação insolitamente ilibada, que aparecia no outrora Cinema Guarani, agora Gláuber Rocha, o mais chique da cidade, para taradear com classe e categoria. Sempre de paletó e gravata, elegantíssimo, ficava de pé antes de a sessão começar, avaliando o ambiente. Seu olho clínico era invejabilíssimo, porque eu lhe acompanhava a performance e, quase invariavelmente, ele saía na companhia da jovem ou senhora escolhida, para dirigir-se com ela a um local mais reservado, normalmente um apartamento emprestado, a famosa garçonniere, de saudosa memória. Um gênio indiscutível, até hoje admirado por outros conterrâneos que também conheciam suas façanhas. Até porque ele não era desses, vulgares, que ficavam tentando encostar o joelho no da moça ou manobras igualmente desprezíveis. Ia na conversa e na empatia criativa. Se o filme era lacrimoso, ele embargava a voz para ter pretexto para falar com ela, emocionadíssimo. Se era alegre, ele ria quando ela ria. Um artista. Talvez esteja agora aposentado, mas nunca cessará de ser por mim admirado. Preciso até escrever para ele, a fim de saber das novidades.

Quanto a mim, lamento informar que nunca me dediquei ao taradismo cinematográfico, mais, confesso, por incompetência do que por princípio. Fui, contudo, alvo de algumas taradas, a maior parte muito pouco parecida com a Cindy Crawford. Reconheço que cedi a algumas dessas iniciativas, mas não me esqueço da tarde de domingo em que, no extinto Cinema Santo Antônio, em Salvador, as coisas estavam indo muito bem com a moça do lado, até que eu comecei a falar.

— Cale a boca — disse ela. — Eu só quero me distrair.

Houve outras oportunidades, mas lamento revelar que meu saldo, no particular, é um tanto negativo. Pois é, nem tudo são glórias, ainda mais no meu caso. Mas, deste canto de página, quero erguer minha voz em solidariedade aos tarados e taradas de cinema da Malásia. Cinema com luz não pode, Hollywood tem que fazer alguma coisa. Ou, quando alguém descobrir onde ela fica, vamos mandar uma força expedicionária para a Malásia.