Ach Deutschland, ai Portugal!

(João Ubaldo Ribeiro)

Ao começar a escrever agora, resolvi que é a última vez em que digo que não gosto de viajar. Não convenço ninguém, porque vivo viajando. Como sabe a pertinaz meia dúzia de três ou quatro leitores desta coluna, mal acabei de enfrentar a fugaz experiência de ser hospedado na zona de Copenhague. Pois bem, passei os últimos dias em Frankfurt, na honrosíssima qualidade de único escritor brasileiro, com exceção do Zé Saramago, convidado para a Feira do Livro pelo seu país-tema este ano, Portugual. As crônicas que saíram nestas duas últimas semanas eram uma vil traição. Foram feitas com antecedência, porque não tenho mais meu lapetope Toshiba, que se suicidou faz alguns meses, sem dúvida em conseqüência de meus atentados contra a nossa língua. E, mesmo que ainda o tivesse, sou possuído por suores frios e tremores, quando obrigado a passar matérias por computador, coisa que nunca consigo sem o auxílio da reportagem (em Copas do Mundo), ou sem a assistência do ascensorista do hotel (em outros casos).

Fui o convidado brasileiro de Portugal porque sou meio português, neto de português, sobrinho de português, pai de português, comendador português, jornalista português, radialista português, ex-residente português e escrevo numa língua assemelhada ao português. (E sou torcedor do Vasco, sorry, periferia.) E fui muito bem recebido na Alemanha porque, devido a razões misteriosas, todo mundo gosta de mim na Alemanha, a ponto de a alemoa que estava no balcão da Varig, no aeroporto de Frankfurt (que é maior do que a Amazônia e mais complexo do que as explicações do governo sobre a economia), me ter reconhecido (der grosse autor — disse ela, e que não traduzo por modéstia, mas garanto que não é "escritor grosso", deixem de gracinhas) e pedido um autógrafo. Sorry, periferia, outra vez. Tenho testemunhas.

Em vez do grande Frankfurterhof, hotel cuja descrição escapa a meus parcos dotes literários, fui hospedado no recém-inaugurado Maritime, que fica colado ao pavilhão das feiras frankfurtianas, tem até passarela em ligação direta. Coisa de filme do Robocop ou do Schwarzenegger (que, aliás, é austríaco, mas, se tivesse um g só no nome, este seria traduzível como "Preto Negro", a vida é muito estranha), metais luzidios, espelhos resplandecentes, bar barulhento. E o cartão, tenho que falar a vocês a respeito do cartão.

O cartão é de plástico branco e dado a cada hóspede. Estou já acostumado a cartões que se enfiam nas fechaduras ou se passam por fendas em máquinas suspeitas, mas nunca tinha visto um cartão como o do Maritime. Não se enfia o cartão do Maritime em lugar nenhum, nem tampouco ele é passado por fenda nenhuma. Ele é mostrado. Por exemplo, você vai pegar o elevador e, no começo se sentindo meio ridículo, mostra o cartão ao elevador e este o leva a seu andar. Para entrar no quarto, a mesma coisa. Mostra-se o cartão à porta e ela abre. Se, por acaso, a arrumadeira entrar com o cartão dela, o frigobar (bom frigobar, bebi uns três) tranca e só volta a abrir se você abrir a porta com o seu cartão de hóspede. Na primeira vez em que isso aconteceu, fui tomado de grande revolta. Ninguém me tinha avisado desse complô contra arrumadeiras biriteiras e quase arrombo o frigobar, até ser esclarecido pela portaria. Imagino que a tecnologia evoluirá e se espalhará pelo mundo e chegar-nos-á o dia em que bastará mostrar um cartão ao garçom e sairá do ouvido dele a notinha já assinada. No Maritime, já é quase assim. Preparemo-nos para o futuro.

A feira do livro de Frankfurt, naturalmente, não tem nada de literária. Fazem uns eventos, promovem umas palestras e leituras, armam entrevistas coletivas com escritores (não envergonhei a pátria, podem crer, comportei-me briosamente) e similares, mas a verdade é que tudo é transa, agentes e editores fazendo leilão, novidades mercadológicas sendo criadas e assim por diante. Este ano, a gente tinha de andar de ônibus pela feira, com pontos marcados e tudo. Da mesma forma que o Aeroporto de Frankfurt é maior do que a Amazônia, a feira é maior do que o Brasil. Ninguém consegue ver aquilo tudo, nem, honestamente, pode ter vontade, a não ser que seja tarado.

Há bandidagem também — bandidagem light, mas bandidagem. Há os caras que freqüentam a feira só para pegar brindes. Muitas editoras distribuem brindes, alguns ótimos, e o pessoal, soterrado por sacolas, vai atrás e manda a família toda pegar brindes. E há os que pedem autógrafos. "Para quem?", pergunta der Autor, crente que está abafando. "Não, só o nome", responde o autografando. É porque, mais tarde, ele vai anunciar nos jornais que está pondo à venda livros autografados de fulano, beltrano e sicrano, é um comércio próspero. Eu mesmo caí nessa, assinando dezenas de livros e uma grosa de fotografias (lindíssimo, vocês ficariam muito orgulhosos de mim), pensando em telefonar para mamãe para contar como era um tremendo sucesso, até que Cristina, a bela anja de guarda que a Lusitânia reservou para mim, me fizesse cair na dura realidade.

De volta ao Brasil, fiquei pensando em duas coisas. A primeira é que esse negócio de desemprego estrutural pode, e certamente é, ser verdade. Mas um bom restaurante alemão emprega muito menos gente do que um boteco brasileiro. Baiano sendo, costumo ficar cansado só de ver dois garçons, dublês de caixas, guias turísticos e provedores de serviços tipo "onde é a máquina de vender camisinha", cuidando de dezenas de mesas e sendo proibidos de voltar ao balcão sem levar algum prato ou copo usado, para não perderem tempo.

Em segundo lugar, pelo que me disseram, a feira teve pouquíssima cobertura jornalística no Brasil. Era dedicada a Portugal, isso não fica bem. Que burrice é essa, que afasta o Brasil de Portugal e Portugal do Brasil? Nós não somos americanos, nem sequer somos europeus, nós somos ibéricos, de aquém dos Pirineus, e africanos. E temos a força. (Pelo menos, a portuguesada dá a maior força para que alguém de lá pegue o Nobel, enquanto aqui a sensação que se tem é de que, se algum compatriota ganhar o Nobel, haverá diversas mortes apopléticas nos meios culturais.)

Tratando-me apenas de um escritor, não posso fazer muita coisa. Mas pelo menos não entro em nenhum estabelecimento comercial brasileiro cujo nome acabe com 's. Viva a pátria e viva a língua, vamos ter um pouco de orgulho, ô pá!