A minhoca, essa injustiçada

(João Ubaldo Ribeiro)

Parece praga, só pode ser praga. Comecei a semana que se foi com as notícias alarmantes sobre as bolsas (com as quais não tenho nada a ver, mas o terrorismo é avassalador) e com a explosão do primeiro foguete espacial brasileiro, pipocando no lançamento. Claro, explodem foguetes americanos, franceses, chineses e outros, mas por que o nosso primeiro tinha que dar chabu? Por que a História alimenta nosso crescente autodesdém? Por que o desgraçado do primeiro foguete tinha de explodir e nos vem a suspeita de que um faxineiro esqueceu uma vassoura de piaçava numa turbina? Se fosse o segundo ou o terceiro, tudo bem, mas logo o primeiro, para continuar a tradição de que aqui nada dá certo? Fiquei injuriadíssimo, meus caros leitores. E com a bolsa também, essa maneira indecente de ganhar dinheiro, mais indecente ainda por estar fora de nosso alcance plebeu. Tem gente se dando muito bem, cada vez menos gente (claro, porque o dinheiro não se evapora, sai da conta do haver para a conta do dever e ao contrário e tem gente enchendo o traseiro de grana, com essas quedas todas; o que sei mesmo é que alguma coisa deve estar abandonando o nosso bolso). A sensação que se tem é que, em breve, vai haver 6 bilhões de pobres e 36 ricos, sem saber o que fazer com o dinheiro, a não ser comprar pobres e praticar com eles tiro ao alvo, ou qualquer coisa assim — não foi à toa que os ingleses proibiram a caça à raposa, algo mais excitante vem aí, não se pode confiar em inglês e não me refiro somente aos indianos. Fico imaginando um gringo lendo no jornal sobre a Brazilian Space Agency e tendo a certeza de que se trata de um esquema para canalizar a flatulência dos habitantes dos trópicos e lançar coprólitos ao espaço, em forma de mulheres bundudas e messalínicas.

Pronto, já dei vazão, à sua custa, à minha irritação. Por conseguinte, falemos de coisas mais amenas. Com perdão da imodéstia, sou uma voz bradando no deserto, a verdade é esta. Falemos em assuntos mais amenos, como a minhoca. Na condição de atento leitor das folhas, soube recentemente que a minhoca poderá livrar o homem da diabete, porque produz (ou não produz, essas coisas são muito misteriosas) uma enzima que dispensa o uso, pelo organismo, da insulina — enzima essa, ou não-enzima, que poderá, eventualmente, ser usada pelo homem, por intermédio da engenharia genética. Eis aí a minhoca prestando mais uma contribuição, que — quem sabe? — poderá redundar no Programa Nacional da Minhocofagia, com o slogan "dê sua raspadinha e coma sua minhoca hoje", o que me parece um belo mote para o governo que presentemente nos assola.

Uma das pouquíssimas razões, talvez a única, para que eu faça restrições ao Verissimo, além da inveja, claro, é a contínua humilhação das minhocas, que ele promove em suas tiras. Para começar, meus caros amigos, somos conhecidos, muito por arrogância, como Homo sapiens sapiens, enquanto a minhoca é um anelídeo pertencente à classe Oligochaeta, que não sei o que quer dizer, mas acho muito mais bonito que Homo sapiens sapiens. A minhoca que de vez em quando vemos se chama, geralmente, de Lumbricus terrestris e os serviços que nos presta estão além de qualquer condecoração que qualquer governo possa oferecer.

A minhoca, que, segundo o Aurélio, é injusticissamamente chamada, em algumas partes do Brasil, de "bichoca", faz tudo para agradar e não é reconhecida. Temos de agradecer o que a minhoca já fez e faz pela humanidade, e não me refiro somente a certas pessoas. Em tamanho, apesar das queixas, chega a 3 metros de comprimento e um diâmetro de quase 3 centímetros, na orgulhosa espécie australiana Megascolides australis. Embora todas sejam comumente rosadas, a espécie britânica Allolobophra clorotica tem uma população verde, o que deve fazer a alegria de nosso crescente contingente de militantes ecológicos e minhocófilos. Segundo o grande Charles Darwin, 63 mil minhocas (não sei como ele contou, mas Darwin é Darwin e nós somos nós) produzem 40 toneladas métricas de húmus por ano, num hectare, assim assegurando a fertilidade do solo e o alimento de passarinhos que alegram a nossa vida, para não falar em muitos outros animais, que engolem minhoca e não espalham, como, aliás, vários humanos, embora eu ainda não tenha notícia de moqueca de minhoca (espero a palavra do Celidônio, meu fraterno amigo, mas com quem mantenho uma insolúvel polêmica moquecal).

A minhoca não tem aids, talvez porque seja hermafrodita. Não há minhocas e minhocos, há somente minhocas ou minhocos conforme sua preferência vocabular-sexual, que aceitam ser chamadas de senhor ou senhora, de acordo com o gosto do chamador. Cada minhoca tem dois pares de órgãos masculinos e um par de órgãos femininos (questão de segurança, não tem próteses para minhoca). Aí, quando o minhoco gosta da minhoca ou vice-versa, ou ainda vice-versa e vice-versa, eles se colam um de cabeça para baixo com o outro e cada qual, sem problemas freudianos ou conflitos de identidade, faz o que o outro faz. É bem verdade que o processo é um pouco mais complicado, mas sei que esta coluna não é lida exclusivamente por meus colegas biólogos, de forma que me dispenso de descrevê-lo. Basta que lhes diga — pasmem! — que tanto o minhoco quanto a minhoca, distinção que faço por puro antropomorfismo, têm um órgão chamado clitelo, que, depois de um processo extremamente sofisticado, mesmo para minhocas, produz os ovos. Ele põe ovos, ela põe ovos, não tem nada desse negócio de que, se fosse homem, não paria. Como poderíamos aprender com as minhocas, senhoras e senhores. Não nos permitamos deixar com o governo essa responsabilidade, privatizemos a minhoca!