Algumas idéias antipáticas

(João Ubaldo Ribeiro)

Vamos reconhecer, todo mundo tem algumas idéias antipáticas, até mesmo detestáveis, as quais, por uma razão ou outra, geralmente conveniência ou comodismo, ocultamos do semelhante. Muitas dessas idéias são partilhadas por outros, mas, porque costumamos escondê-las, deixamos de nos unir em torno de certas causas, que, no fundo d'alma, portamos com furor. Por exemplo, talvez como muitos de vocês, detesto pombos. Não deixo de sensibilizar-me com a imagem da pomba da paz, portando seu raminho de oliveira no bico, mas isso é só porque gostaria que palestinos e israelenses deixassem de se odiar e encontrassem um meio de conviver sem enrolar dinamite no corpo ou metralhar crianças. É só um símbolo — e do símbolo eu gosto, só não gosto de pombo.

Devo estar atravessando um surto zoológico, pois que, na semana passada, falei sobre minhocas. Mas não posso repetir assuntos, já que o desta semana devia ser igualmente minhocas, desta vez as que freqüentam os miolos de nossas classes dirigentes, as quais acabaram de resolver os problemas do país da eficiente forma habitual, aumentando impostos de tudo quanto é lado — inclusive os provisórios, que, como o nome indica, significam perpétuos, o que já de sobejo nos demonstra a CPMF, que é usada para tudo, inclusive, com toda a certeza, festas de posse de secretários de Saúde em todo o nosso imenso Brasil. Aliás, colaborando para a diminuição da hipocrisia nacional, sugiro que o P da CPMF seja substituído por Permanente — a quem estão enganando? Quem vai pagar essa ou toda essa farra aí não são os ricos, que, como sempre, vão ficar mais ricos, mas os pobres (por que não deportam logo os pobres, para acabar com essa chateação?) e os remediados, os quais precisarão ainda de mais remédios, todos com os preços mais altos, naturalmente.

Os columbídeos (espiei no dicionário) estão no mundo todo, com cerca de 300 espécies. Não tenho certeza, mas, depois que o pombo-correio, apesar de mais eficiente que a ECT, saiu de moda e só é usado em concursos internacionais que não acrescentam nada a nada (não, não, dirá um pombófilo qualquer, servem para estudar os mecanismos de orientação das aves, mas não só muitas outras aves servem para isso, como não acho interessante a idéia de, em vez de um radar, ter um pombo-correio no nariz do avião em que estiver voando, já bastam os urubus nas turbinas cariocas), o pombo nosso de cada dia (Columba livia, olhei no dicionário outra vez) não serve para nada. É como um rato de asas. Em cidades tão diversas como o Rio de Janeiro, São Paulo, Veneza e Lisboa, servem para emporcalhar e deteriorar construções e monumentos preciosos, para espalhar doenças e para escorraçar outras aves, muito menos nocivas e até canoras.

O pombo arrulha, mas é tudo obscenidade, já está provado. Quando o pombo diz qüu-qüu e a fêmea responde, é precisamente isso que eles estão querendo dizer, só com o sotaque que trouxeram de suas terras de origem, entre as quais não nos encontramos.

Na minha opinião, o pombo citadino é o mais escandaloso exemplo de desperdício de proteína, depois da feira do Leblon.

Come-se pombo, mas o pombo urbano é horroroso, porque faz exercício demais e sua carne é dura como araldite seco. Portanto, não devemos propor o pombo como alimentação alternativa para os pobres, eis que seria mais acintoso do que os pacotes econômicos com que nos assolam os líderes de nossa heróica nação. Os pombos urbanos malham o dia todo e são imastigáveis. Mas não são inesmagáveis, intrituráveis e infareláveis. Pena de pássaro — você sabia, bip-bip? — sé proteína também. Um pomboprocessador eficaz transformaria rapidamente todos os pombos de qualquer cidade numa pasta de virtudes semelhantes a farinha de peixe.

Aí, sim, aí os pombos teriam utilidade. Seriam ração animal de boa qualidade e deixariam de fazer cocô na cabeça do Duque de Caxias, de D. Pedro I e de Machado de Assis.

Ah, mas que crueldade, diriam os mais frescos. Crueldade como, cara-pálida, agora que os pombos se transformam, aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, numa praga invencível? Não saem mais nem da frente quando a gente quer passar, pousam em cestas de piquenique e bicam freqüentadores de praias. Daqui a pouco aparece um deputado adamado que fará aprovar uma lei qualificando de criminoso aquele que atropelar um pombo (já vi alguns desses atropelados, aplaudi sempre). Defende-se o controle populacional do ser humano e atacam-se as tentativas de dar anticonceptivos aos pombos. Por que pombos? Que diabo faz um pombo em meu terraço, além de afastar garrinchas e bem-te-vis, ao mesmo tempo espalhando doenças suficientes para seis filmes de Hollywood?

Ainda bem que não tenho arma de fogo, não tenho arma nenhuma, porque, ao passar aqui pelo Leblon e vendo gente jogando comida aos pombos, lembro que pouca gente joga comida aos pobres e podia estar fazendo isso, simplesmente contribuindo para os pombos virarem comida de ser humano, mesmo por via indireta.

Demagogia, esse negócio de pombo proliferar como rato e causar os mesmos danos, se não maiores. Em Itaparica, uma nobre alma soltou um gaiolão de pardais e hoje acabaram os tico-ticos, acabaram os tiês-sangues, só sobraram, e olhe lá, os mais valentes, como os bem-te-vis, os sabiás e um ou outro, a não ser no mato, que cada vez encolhe mais e aonde pardal não vai porque, como seu nome científico indica (Passer domesticus, desta vez não precisei ir ao dicionário), é parasita do homem, só vive onde há sobra de comida para ele. Pasta de pombo e pasta de pardal, é o que proponho. Acho que vou me candidatar a alguma coisa.