Verões, verões

(João Ubaldo Ribeiro)

Ah, Deus meu, de que falar, neste domingo que espero ensolarado e luminoso? "Como o senhor consegue assunto para escrever tanta coisa?", me perguntam freqüentemente minhas queridas coroas da Ataulfo de Paiva e da Visconde de Pirajá. Vejam bem, meus amores, jamais escrevi a crônica sobre a famosa falta de assunto que escreveu a maioria de meus colegas, em toda parte. Assunto nunca falta, é só olhar os jornais. Chateia um pouco, às vezes bastante, mas sempre se acha o bendito assunto. Neste domingo, em que já terei completado 57 anos de idade e uns 40 de jornalismo (que horror!), há na verdade um excesso de assuntos, dos quais lembro pelo menos três ou quatro exemplos.

Mas não quero lembrar, porque é quase tudo enfossante. Por exemplo, venho considerando a idéia de somente visitar meu sogro, que mora em Ipanema, com toda a família usando capacetes de aço reforçados com kevlar (kevlar é um plástico desenvolvido pela indústria espacial americana que deve custar uns US$ 1.000 por polegada quadrada, mas dizem que resiste a qualquer bala), coletes à prova de balas e outros equipamentos protetores, mesmo que sejam privativos das Forças Armadas, o que, no Brasil, não quer dizer nada. O saudoso tio Dodô, bravo veterano da FEB, talvez agora se recusasse a aparecer para as temporadas de costume, em companhia da irmã e da cunhada. Em Birigüi, terra paulista que é raiz da família de minha mulher, talvez se matem mais mosquitos per capita do que gente aqui no Rio.

Tem também a lei de doação de órgãos. É claro que sou plenamente a favor da doação de órgãos, mas já escrevi aqui contra a lei e continuo a ser contra. Conhecendo o nosso gado como conhecemos, sabemos que o que está no papel é muito bonito, coisa e tal, mas vai ser um novo gerador de mutretas e assemelhados. Quem viver, mesmo tendo um rim roubado, verá. Aliás, agora mesmo, li no jornal que uma moça em São Paulo teve um de seus rins surrupiado, coisa que ela só foi descobrir muito tempo depois, informada por uma ultra-sonografia. Isso em São Paulo, a maior e mais poderosa cidade do País, que não é, com todo o respeito, nenhuma Caruaru, onde morreu aquele montão de gente que fazia hemodiálise.

Que mais? Sim, não é só o Rio de Janeiro, que vira uma Veneza assombrada depois de 30 minutos de chuva forte. São Paulo também, Salvador também, outras cidades também, a ponto de eu achar que devemos agir em relação às inundações com a mesma posição filosófica que os habitantes de São Francisco da Califórnia em relação a terremotos ou os de Miami em relação a furacões. Fazem parte da vida. Todo governador ou prefeito diz que vai resolver o problema, mas isso nunca acontece. Choveu forte, as cidades se transformam em sucursais da foz do Amazonas, despencam casas e barracos por todo lado. Sugiro até uma medida, adequada, pelo cinismo, impunidade e indiferença em que vivemos mergulhados. Uma medida para chuvas, o PPH — Pobres Por Hora.

— Não há razão para alarme — virá o governante dizer na tevê. — Essa chuva, segundo dados oficiais, foi de apenas de 220 PPHs, isso contando mortos e desabrigados. É um índice muito melhor do que o do ano passado, que totalizou uma média de 360 PPHs. E estamos certos de que, no próximo ano, ficaremos em apenas 80 ou 100 PPHs. Comparem isso com os tufões em Bangladesh e verão como estamos em excelente posição, chega de fracassomania! Para não falar nas conseqüências que isso trará para a taxa de desemprego e os índices de mendicância! É preciso acabar com essa mentalidade, vamos olhar para o lado positivo das coisas!

Que mais? Sim, agora teremos um severíssimo Código de Trânsito e, no Rio de Janeiro, policiais munidos de máquinas fotográficas. Posso imaginar, em meio às piores embananações de trânsito, os policiais discutindo iluminação, abertura, velocidade do obturador, sensibilidade de filme e outras especialidades fotográficas. Deve melhorar muito a situação. Para não falar nos benefícios sociais nas cidades onde os policiais e patrulheiros se queixam de má remuneração e fazem greves e tumultos por causa disso. Agora, com uma multa de R$ 250 podendo ser resolvida com cinqüentinha por fora, a vida deles vai melhorar muito, sem que tenhamos que suportar a visão deprimente de policiais, como dizem que ocorreu em Alagoas, pedindo nos cruzamentos um adjutoriozinho para o leite das crianças.

Não, não. Vamos esquecer tudo isso, neste belo domingo. Eu mesmo, semimacróbio, não posso deixar de pensar com alegria, temperada, bem verdade, por um certo despeito, na liberdade de hoje. Meus verões juvenis foram passados em companhia de jovens de maiô de lastex (até hoje não sei o que é lastex, mas deve ser importantíssimo, porque elas só falavam em lastex). A maior parte desses maiôs tinha uma espécie de cortina (de lastex) na frente de sua parte inferior, um biombo que escondia aquilo que, estou convicto, alguns companheiros de geração nunca viram antes dos 30 anos. Havia também maiôs de saiote. Muitas moças de família só podiam ir à praia de vestido. Lá chegadas, sentavam-se discretamente e tiravam o vestido. Calça comprida, canga, nem pensar, era calamidade pública. No máximo, para as mais ousadas, a famosa saída de praia, muitíssimo mais discreta do que vestidos que hoje vemos nos desfiles de moda e nas festas. Assim mesmo, uma moça amiga de nossa família, no fim da década de 40, foi a uma praia de Aracaju usando saída e, se soubessem da existência de aiatolá naquela época, o teriam convidado para coordenar o apedrejamento. E o maiô de duas peças? E o umbigo de fora? E a tanga? Sim, sim, viva este verão, bom outono para mim, bom verão para vocês.