Demorou o atendimento. Não tanto quanto o de M., que esperou bem mais do que nós. Prata tinha medo de que ele se arrependesse e fugisse, me pediu colaboração na vigilância e tivemos que ficar bastante tempo, depois de sairmos de nosso atendimento. Mas M. estava plácido e calmíssimo, até porque fora esclarecido pelo colega do rabo-de-cavalo.
— Desculpe — chegou ele para M. — Desculpe eu perguntar. Se não quiser responder, não responda. Posso perguntar?
— Claro, pode perguntar.
— O amigo também é 190, estou certo? — disse ele, apontando para os narizes de ambos.
— Podes crer, está certíssimo.
— Primeira injeção?
— Primeira.
— Eu vou pra terceira. Os 190 eles demoram mais, a dos 150 é moleza — e seu olhar em direção a mim e ao Prata adquiriu nuances de desdém. — A deles é moleza. O 190 tem que demorar mais e a injeção mata qualquer cavalo. Principalmente a segunda. A segunda é descomunal, muito maior do que a deles. Você sabe que a nossa...
E por aí foi, ficaram amigos. E podia parecer que seria chato permanecer ali, mas não foi assim, aprendia-se muito, faziam-se amizades, trocavam-se parabéns, formava-se uma comunidade. Soubemos de portentos já legendários, na história da clínica. Como o do paciente que tomava uma garrafa de pinga todo dia, de madrugada, antes de sair para o trabalho. Claro que já chegava pronto e estava na beira de perder o emprego, o que acabou acontecendo. A família deu para esconder a pinga e os poucos botecos da área não abriam cedo. Mas ele não se intimidou. Pegava uma garrafa de álcool de farmácia, enchia o copo, botava açúcar, mexia bem e — crau! — tomava tudo em uns três copos. Acabaram conseguindo levá-lo à clínica e, na hora da injeção, o enfermeiro, como faz com todos, deixou por algum tempo o algodão embebido em álcool em cima do local da picada. O médico o flagrou justamente na hora em que ele, manobrando o pescoço espetacularmente, ia conseguindo pegar o algodãozinho de beiço esticado, para dar uma chupadinha. Segundo nos contam, ficou completamente bom e atualmente tem nojo de álcool em qualquer forma. Pode ser mentira, mas todos acreditamos, era uma história edificante demais para ser posta em dúvida.
Meu atendimento se deu num grupo composto de mais uns cinco ou seis. Sou obrigado a reconhecer que, apesar de democracia, não era um belo grupo. Havia um que parecia só poder encarar o mundo em esgares medonhos, dentes arreganhados e balançadas vigorosas de cabeça. O médico começou a fazer perguntas. Teve convulsões, teve alucinações, vômitos matinais? Alguns tinham tido tudo isso e mais outras coisas. Fiquei satisfeito comigo mesmo, nunca passara por nada daquilo.
— Amnésia?
Médico enxerido, amnésia eu já havia tido, diversas vezes, não precisava levantar esse assunto desagradável. Felizmente, descobri que, somado tudo, eu estava longe de ser páreo para o resto de minha turma, notadamente o moço da 51, o careteiro e o que tinha coberto a mulher de bofetadas, mas não se lembrava de nadinha. Não se lembrava nem mesmo de haver concordado em vir para aquela clínica, mas, já que estava ali, tomaria a injeção e faria o tratamento. Quanto ao da 51, merecia uma categoria honorífica à parte — 102 ou 153 — pois, quando perguntado quanto bebia por dia, respondeu:
— Umas duas ou três 51.
— Doses?
— Não, garrafas.
Finalmente acabamos tudo. A injeção não doera tanto assim, embora o 190 amigo de M. talvez tenha razão. Além de a sua injeção ser diferente, a segunda, em qualquer caso, não é brincadeira, porque o Prata saiu lá de dentro rindo amarelo e um tanto cambaleante.
— Essa é de lascar — disse ele, segurando o braço. — Orra, meu!
— A carne da gente pula! — concordou o 190 de rabo-de-cavalo.
O nosso 190 aparentemente não se deixou afetar pelo terrorismo intramuscular. Esperou comportadamente sua vez, foi lá, tomou a injeção com bravura e saiu conosco em direção à farmácia, onde pegaríamos remédios aviados por eles mesmos, já incluídos no preço da sessão, além de outros, compráveis em qualquer cidade. Antes, nos despedimos calorosamente dos novos amigos e colegas, demos e recebemos parabéns e votos de sucesso, chegamos a ficar comovidos. Na farmácia, o dono nos reconheceu, disse que tinha um livro meu e que sempre lia o Prata nos jornais e revistas, fez festa. E assim, festejados e injetados, fomos a uma bela churrascaria.
— Para beber?
Todos olhamos as garrafas de uísque, exibidas no bar e bufê à nossa frente.
— Refrigerante diet — dissemos, em orgulhoso uníssono.
Expulsos às 3 horas da tarde, não por mau comportamento, mas porque eles fecham antes do jantar, fomos passar o tempo na casa de amigos de Prata, cujo dono tem um enorme barril de cachaça na sala e, aos 80 e tantos anos, toma sempre uma pinguinha ao anoitecer. Mas só uma dosezinha por dia, no final da tarde, uma coisinha assim.
— Conversa — rosnou Prata rancorosamente. — Ele bebe como um gambá e não acontece nada. 80 anos, bebendo, e em melhor forma do que nós, não é justo.
Justa ou não, a dura realidade é a dura realidade. E assim passei pelo meu segundo teste, enquanto voávamos para Congonhas. Prata começou a rir malevolamente, olhando para algo atrás de mim. A comissária de bordo havia estacionado o carrinho dos lanches a meu lado e agora uma vistosa garrafa de JB encarava meu nariz, toda vez que eu olhava para o corredor.
— Para beber?
— Um refrigerante diet.
E assim aconteceu na ponte aérea, onde, em todos os meus anos indo e vindo entre o Rio e São Paulo, jamais deixei de tomar o uisquezinho oferecido. Refrigerante. E, estranho mesmo, não foi muito difícil.
— Pessoal — disse eu, ao chegar em casa. — De agora em diante, quem quiser comer pão aqui que vá comprar.
Esta crônica foi publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 14/03/1998.