Na calada da madrugada

(João Ubaldo Ribeiro)

Quatro horas da manhã. Indignado, o escritor decide que não dá mais para ficar rolando acordado na cama e, apesar da escuridão lá fora, levanta-se, na esperança de que já sejam pelo menos umas 5 horas. Confere o relógio de parede na cozinha, 5 horas coisa nenhuma, menos que 4, até. Cáspite, como ele queria ser seu queridíssimo confrade Josué Montello, que abençoa a insônia e dispara livros notívagos para um lado e para o outro, em ritmo de metralhadora. Mas, ai dele, seu destino é bastante mais ingrato e o jeito é subir para a cobertura e, diante do monitor insolentemente apagado do computador, chegar à conclusão de que, pelo menos para alívio do público leitor, não tem nada a escrever, no momento. Ou em qualquer outro momento, pensando bem.

Lembra o eminente colega de ofício Autran Dourado, com seu afável mau humor agravado pela coleira ortopédica que um acidente o obrigava a usar em Paris, dizendo a jovens aspirantes a escritor franceses que abandonassem o quanto antes essa insidiosa vocação e se dedicassem a profissões mais úteis e menos absurdas, tais como dentista, jardineiro, motorista de táxi, qualquer coisa, enfim. Cruel destino a manifestar-se outra vez, eis que, a esta altura de seus muitos verões mal vividos, já é muito tarde para o escritor tratar, ou sequer enxergar bem, cáries, margaridas ou sinais de trânsito. Sim, profissão maluca, mas que se há de fazer?

Esperar. Esperar que a luz do dia se acenda, para que ele possa sair e comprar os jornais, que — sabe bem ele — não lhe trarão alento e, sim, constantes sobressaltos, eis que lera anteriormente, por exemplo, que o dr. Calheiros é agora ministro da Justiça. Assombrosas notícias outras, diversas, o esperam — sabe bem ele ainda — pensando em Fujimori com uma certa inveja perversa, misteriosos sentimentos de um cidadão do florão d'América. Sim, seria bom ter os jornais em frente dele, mas o temor de assaltos o dissuade. Lembra-se, com terror não inteiramente ultrapassado, do dia em que foi abordado de maneira enérgica por um compatriota descamisado e aparentemente disposto a tudo, também de madrugada, em frente da entrada de seu prédio, havendo sido salvo somente pelo grito de "Severino!" que instintivamente emitiu, havendo assim congregado os porteiros de toda a rua e afugentado o assaltante. Momentos depois, contudo, o escritor voltaria a descer, com uma faca de mesa na mão e compelido pelos mais baixos instintos nordestinos, para confrontar o meliante, o qual, Deus seja louvado, já se tinha pirulitado.

Bem, a rododáctila Aurora, hoje mais para fuliginosa que para rosada, principia a surdir, a boreste do Redentor. O escritor já tinha passado suas horas vampirescas na companhia de textos indispensáveis, como o de um paleontologista americano que estuda antigas colônias de cupins (isópteros) abelhas, vespas e quejandos (himenópteros), em algum lugar do Estado de Utah, no nosso grande irmão do norte. Muito inspirador, mas agora a claridade autoriza — embora sem essas autoridades todas — abandonar a icnologia (este é o nome da especialidade dele) — a sair em busca dos jornais.

Os jornais não chegaram ainda às bancas, naturalmente. Nunca se sabe o que houve, mas atrasaram hoje, como atrasarão amanhã e em todos esses arrebóis extravagantes. Há outros entretenimentos à disposição, porém. Pode-se comparecer, por exemplo, ao austero boteco Bigorrilho, situado na Avenida Ataulfo de Paiva, onde, em clima de respeito e mútua reserva, pinguços tomam seus primeiros goles de espíritos alcoólicos variados e outros bebem copos de café com leite, enquanto ainda outros traçam uma carnezinha assada, uma rabadinha, um pernilzinho e iguarias tradicionais que alegravam dois dos pais espirituais do escritor, Gargantua e Pantagruel. Podem-se tomar muitas aulas de sociologia não-governamental, passando por meninos e velhos deitados na calçada em cima de papelões e pensar em como devem ser catastrofistas e não levam em conta o fenômeno da globalização, aprende-se muito.

Há também os passarinhos, bem-te-vis acordando ruidosamente, um sabiá melancólico cantando no alto de uma amendoeira, observado por dois porteiros passarinheiros. Sob a atenta observação do escritor, discutem a respeito das possibilidades de capturá-lo. Trata-se, segundo eles, de uma fêmea de canto senilmente lânguido, já velha demais para ser engaiolada. O escritor ouve o canto, pouco mais do que um pio estressado e, para evitar uma depressão ornitológica, dirige-se a uma esquina próxima, para ver se consegue dar de novo com uma certa lavandeira, passarinho antes ubíquo, mas agora raro, com quem tem feito amizade nos últimos dias. Ela não decepciona, aparece e desfila calmamente pela calçada, cumprimentos mútuos, despedida comovida, pelo menos da parte do escritor.

Mais algum tempo transcorre, enquanto o escritor palmilha outra vez as mesmas ruas, felizmente encontrando as mesmas pessoas e os mesmos cachorros. Nunca mais ele viu o buldogue, mas espera que esteja bem, deve ser qualquer coisa relacionada com essas mudanças bruscas e arbitrárias, tais como o horário de verão. Mas o pessoal das caminhadas desfila pontualmente, entre ares quase insuportavelmente sadios, o escritor troca cumprimentos e observações sobre o tempo. Os jornais já devem estar nas bancas, de fato estão. O escritor os adquire, dobra-os debaixo do sovaco, leva-os para casa, onde os lerá, tomará café e pensará as bobagens habituais. Até sobre a condição de escritor, o Autran tem lá suas boas razões. Mas, felizmente, amanhã, se Deus quiser, alvorecerá de novo e se renovarão essas grandes emoções matutinas.