O right wing forward Delegado

(João Ubaldo Ribeiro)

Sim, senhoras e senhores, já fui o right wing forward Delegado. Delegado, segundo as palavras inesquecíveis de Hélio Gaguinho, por causa de meu eficaz ("implacável", disse ele certa feita, mas ninguém lhe lembrava o fato, porque ele levou meia hora para dizer as palavras e não era propriamente uma pessoa de humor afável, notadamente quanto a seu problema de elocução) policiamento da grande área. Passei, muito modestamente, às notas de pé de página do futebol baiano, como Delegado, atuando inicialmente no Flamenguinho do Rio Vermelho e, posteriormente, já na condição provecta de right full back (beque direito, melhor dizendo, vamos ser honestos), no São Lourenço da gloriosa ilha de Itaparica.

Falo isso porque abro os jornais e só encontro seqüestros, assassinatos, genocídios, dramas e tragédias variados — e aí que me resta senão cair no passado. Passado que não é seu, leitor jovem, mas que até pode dar-lhe um alento ou outro, sobre a nossa desacreditada espécie humana. Por exemplo, escrevi todas essas palavras em inglês, aí em cima, para lembrar que, sim, hoje sou ranzinza quanto ao inglês invadindo nossa língua, mas, sim também, sou do tempo em que o Galeão era pouco mais que um barracão e voltávamos lá de fora com a certeza de que havíamos visto muito mais do que nos dará haver visto esta existenciazinha aqui. As mulheres desfilavam pelo saguão chiquíssimas, de chapéu, brandindo os passaportes e falando com um sotaque que suponho hoje ser tipo exportação.

Digo tudo isso porque, pensando bem, não tenho essas razões todas para ficar pichando o português americanizado que já irritava Noel Rosa e injustiçava Carmem Miranda, porque, volta e meia, fico com saudade dos meus tempos anglófilos, no setor futebolístico. Aliás, tempos anglófilos somente não, sou da época de Oduvaldo Cozzi, grande narrador de futebol, que não tinha o que falar enquanto o jogo não começava e o tempo passava e aí nos encantava em Aracaju, com sua prosa sonora e evocativa, com a qual, todos sabíamos, não estava dizendo nada, mas que nos levava a transportes patrióticos, nas tardes de domingo.

— É um dia de sol em Maracanã! — declamava ele, em arroubos que acompanhávamos ofegantes. — É um dia de sol, uma tarde de festa, bandeiras se desfraldam, foguetes espocam, gargantas estouram, corações explodem, em mais um instante de alegria e emoção no coração do torcedor carioca, no coração do torcedor brasileiro. Sim, porque não são somente os cariocas que, neste dia jubiloso, se congregam aqui, no templo máximo do desporto brasileiro, diria mesmo do mundo. São todos os irmãos, todos os compatriotas de um extremo a outro deste chão generoso, deste chão que...

— Fala bem este rapaz — dizia meu pai emocionado, que, apesar de alagoano, estudou Direito na Bahia e sempre foi sensível a um bom orador, ele mesmo não fazendo vergonha nesse departamento.

Sim, mas eu não vou dizendo isso apenas para rememorar, embora esteja me descobrindo cada vez mais um saudosista empedernido. Noel Rosa tinha razão, não é de agora que sofremos a mania do inglês. Fomos criados com leite de cinema americano, esta é que é a verdade e é também verdade que, em épocas diversas de minha vida, suspirei querendo ser Cary Grant, Gary Cooper, Gregory Peck, Frank Sinatra, Marlon Brando e Paul Newman, além de sonhar — não minto a minha biografia —, que Doris Day, Jean Peters e Jean (Jeanne? ai, ingratidão, ai, esclerose!) Simmons se apaixonassem por mim, além das duas Dorothies, a Malone e a Dandrige, é claro. Para não falar num vasto elenco, soterrado pela memória, que, se me ressurgisse agora, ia me dar palpitações quiçá fatais.

Sim, mas por que outra vez este sim interrogativo? Até a legendária paciência de meus leitores merece satisfações. Nada, são coisas ainda do meu tempo (espero que nosso). E estou ficando velho mesmo, prevendo a hipótese de que o jornal crie uma seção geriátrica da qual serei a delirante estrela. Dois torcedores, um de hoje e um de amanhã, talvez não compreendessem as línguas um do outro. Haverá algum comentarista ou locutor esportivo que ainda use a expressão "asa médio-esquerdo", assim mesmo, com os adjetivos dando na cara do substantivo? Duvido muito. Asa médio-esquerdo era a tentativa de nacionalização de "left wing half". Half (ralfe) era o camarada que jogava pela linha média esquerda. Tinha o asa médio-esquerdo, seu companheiro da direita e o do centro, o center half (centerralfe). Quem jogava na frente era forward e uma dessas designações sobreviveu às outras na condição de centrefor ou centrefó, dos quais talvez o mais ilustre representante haja sido Ademir Menezes. Comecei como centrefó, fiz um largo estágio na ponta-direita e encerrei a carreira como beque direito. "Zagueiro" era considerado frescura pela velha-guarda, assim como foram recebidas as novas formações dos times (teams). Antigamente todo time era alinhado no WM (na Bahia, onde até hoje eme, ene, esse e semelhantes são ainda considerados frescura — daí o Pefelê — diz-se dabliú-mê). O time vinha com um goleiro (originalmente golquipa), dois beques (ou fulbeques), três ralfes e a linha de frente, com o centrefó gloriosamente adiante. O jogo podia ser pugna ou prélio, mas geralmente era match (metche). Escanteio (cornerquique), mais tarde apenas corner, que de início também rendeu problemas, porque homem casado que era homem, no interior, se recusava a bater o corner, entre gritinhos "de vai bater seu córner, hem, é hoje que ele cobra o corner dele!")

Mas, de novo sim, por que estou falando tudo isso? Jogador era player (em Itaparica, "prêia"), seleção era escrete (scratch), mas que diferença há? Há. Eu assisti, na quarta-feira, ao vexame contra a Argentina, no Maracanã, como todos vocês. Saudades de Julinho Botelho, de Garrincha, Pelé, Ademir e Vavá? Eu também. Saudades do escrete, que podia até perder, mas não passava vergonha.