Vamos lá!

(João Ubaldo Ribeiro)

Vamos lá! Amanhece mais um dia, nesta linda e maravilhosa cidade do Rio de Janeiro. São 5 horas da manhã, estou acordado desde as 4, mas a rododáctila Aurora ainda não desabrochou e, portanto, não ouso ir à rua ou ao calçadão, com medo de que me assaltem novamente, como no dia em que fui atacado e somente salvo pelo berro de "Severino!", que convocou todos os porteiros das redondezas e o assaltante fugiu. Fico nesta madrugada penumbrosa, aqui em meu modesto terraço, jogando conversa fora com as plantas. Elas não me respondem, a não ser quando acenadas pelo ventinho cálido que sopra neste inverno falsificado e, assim mesmo, não sei se dão importância às bobagens melosas que lhes digo. E elas têm razão em me ignorar. Que haveria eu de dissertar a um pé de boldo, um pinhão roxo ou um hibisco? Milenar sabedoria extraída da terra onde elas vivem, quem sou eu, quem somos nós?

O sol, o olho de Deus, aparece, aqui à direita de onde estou bestando. No meio de uma névoa suave, o Cristo Redentor ressurge consoladoramente, no alto do Corcovado. Dá-me as costas, mas pelo menos fico à Sua direita e, com meu binóculo comprado na free shop do Aeroporto Antônio Carlos Jobim, quase posso sussurrar ousadamente no ouvido d'Ele. Mas Ele tem mais em que pensar e não lhe falo nada, rezo apenas um padre-nosso, dai-me o pão de cada dia. Faz a tua parte, que eu farei a Minha. Certo, muito certo. Hora de sair e comprar os jornais, dos quais eu vivo e me sustento. É o passeio que mais gosto de fazer.

E saio pelas ruas do meu querido bairro do Leblon, vendo como seria bom, se tudo fosse como esta bela manhã, num país a que tudo foi dado e de que quase nada se aproveita. Que vejo no meu caminho? Crianças dormindo na calçada, envoltas em papelões e panos imundos, mulheres e homens negros, suspeitos somente porque são negros e pobres. Ai, meu Leblon, que a brisa do Brasil beija e balança, que bandeira é essa? Ai, meu São Paulo, que a brisa e a garoa beijam e balançam, que bandeira é essa? Ai, minha Itaparica, que a brisa do Brasil beija e balança, que bandeira é essa? Auriverde pendão da minha terra, da nossa terra, essa bandeira é nossa e não podemos continuar a aceitar que ela sirva a um povo de mortalha.

Desculpem meu estado de espírito, que não tenho o direito de transmitir-lhes, mas não posso evitar. Escritor também é filho de Deus, assim como são filhos de Deus (embora, verdade seja dita, o que me ocorreu ao pensamento é que esses a quem me vou referir são filhos de outra coisa) os motoristas que quase me atropelam, enquanto tento atravessar a rua sem sinal que me leva à banca de jornais de meu amigo Carlinhos. Na rua seguinte, há sinal, que espero cuidadosamente seja aberto para os pedestres. Os ônibus param à beira da faixa, mas seus pilotos não resistem a acelerar em ponto morto, apenas para me fazer correr de susto, o que lhes deve dar muito prazer.

Chego à banca de Carlinhos, descubro que me esqueci de trazer dinheiro e, de novo, ele generosamente me dá crédito. Em frente da banca, um outro amigo, Popó Maciel, abre as portas do grande boteco Flor do Leblon e nos abraçamos afetuosamente, como em todos os dias. Grande Carlinhos, grande Popó. Não, a vida não é tão ruim assim, afinal, existem Carlinhos e Popó, ainda há esperança, sem esperança não se vive.

Mas será que de fato há? Volto para casa, passando pelos mesmos infelizes e vou tomar o cafezinho de sempre. Sônia, nossa trabalhadora doméstica, com um sorriso admirável, me conta que, na noite anterior, quando ia pegar transporte, dois pivetes a ameaçaram com um faca na Central do Brasil (bom nome, este, hem?) e lhe tomaram os trocadinhos mirrados que ela portava. Não é preciso ser rico para ser assaltado, é uma prática muito democrática.

Juro a vocês que não estou fazendo campanha política, até porque creio indispensável preservar minha independência e a confiabilidade que acho que ela me rende. Não estou pedindo voto para ninguém, nem pretendo pedir, mas vocês acreditam que estamos bem governados? Se acreditam, tudo bem, cada um age e deve agir de acordo com sua consciência. Mas, nesta manhã melancólica, vou causar um escândalo com o que afirmarei no fim desta crônica. Principalmente na Bahia, onde todo mundo sabe que, apesar de termos um trato cordial e mesmo fraterno e também lhe dever muitas atenções, sempre estive do lado político oposto a Antônio Carlos Magalhães. Pasmem, pois. Meu candidato à Presidência da República é ele. Se por acaso ele fosse eleito, eu continuaria na oposição, mas pelo menos ele faz. Perdão, leitores, hoje eu fico por aqui.