Nós, os carecas

(João Ubaldo Ribeiro)

Acho que já contei aqui a humilhante descoberta da vastidão de minha careca, mas não tenho certeza, de maneira que conto de novo. Que eu era careca, já sabia, desde os 18 anos. Interessante foi que os meus colegas da faculdade que usavam mil remédios para as carecas incipientes ficaram todos umas bolas de bilhar, enquanto eu, que nunca usei nada, ainda conservo alguns resquícios capilares que, fotografados de frente com a cumplicidade do fotógrafo, ainda dão para embromar. Mas a realidade é dura e acaba por confrontar-nos, por mais que queiramos fugir dela.

Participava eu, aqui no Rio, de um programa chamado Noites Cariocas (gravado de manhã cedo, contra um cenário escuro — hoje ninguém pode acreditar mais em nada), na companhia de meus amigos Scarlet Moon e Nelson Motta, em que dizia as besteiras habituais que hoje escrevo. Resolveram, de repente, que eu tinha de fazer uma palestrazinha para os espectadores e, muito nervoso, fui fazer a primeira. Tartamudeei uma coisa aqui, uma coisa ali e, de repente, vejo o câmera escutar algo no seu interfone e mandar parar tudo. "Ih", pensei, "devo ter cometido alguma calamidade." Fiquei esperando a despedida, acompanhada de uma conferência sobre a incompetência de baianos e nordestinos em geral.

— Pára, pára, pára! — disse o câmera. — Pó-de-arroz na cabeça do cara, que tá dando reflexo!

Abalado, olhei para o monitor que me espelhava por trás e vi quase um holofote, uma careca tão brilhosa que dava para iluminar a Lagoa, em noites mais escuras. Vem uma senhora simpática, que me aplica o pó-de-arroz e eu prossigo, sem maiores problemas, embora com o queixo tremendo levemente e a triste compreensão de que não era um careca light, mas um careca da pesada, apenas protegido por um tufozinho capilar no meio da testa e nas laterais. Desse dia em diante, passei a chegar ao estúdio me dirigindo, de cabeça baixa como um miúra derrotado, para a senhora do pó-de-arroz.

Sim, pertenço à irmandade dos carecas e, por essa razão, medito freqüentemente sobre a importância dos cabelos. Não, não é só a impressão de velhice que leva os carecas inconformados a se submeter a um elenco apavorante de medidas terríveis, inclusive o implante de fio por fio, que não deve ser uma experiência edificante. Desde Sansão, o cabelo tem uma importância desmesurada, inclusive na cara: aparecer de rosto raspado entre os talibãs deve render pelo menos 50 chibatadas, banimento para a Somália ou enterramento de cabeça para baixo num buraco de formigas carnívoras, ou qualquer dessas coisas que de vez em quando alguém diz que o Corão prescreve. (Aliás, eis aqui uma boa aposta para boteco: não foi Dalila quem cortou os cabelos de Sansão, ela terceirizou o ato; quem quiser saber mais, vá ler o Velho Testamento, hoje é domingo, dia bom para ler a Bíblia.) Quando estudei em Los Angeles (ai, meu Deus, já lá se vão bem mais de 30 anos), fui colega de vários paquistaneses e indianos, que se odiavam, como se odeiam até hoje. Mas cabelo era uma coisa mais ou menos comum, pelo menos em relação às mulheres. Nada de mostrar cabelo, coisa mais indecente não podia haver. Não consigo esquecer os olhares lúbricos, ou de reprovação, conforme o caso do freguês, quando as mulheres ocidentais apareciam de cabelos exuberantes. Eram todas umas devassas. As indianas ainda mostravam os cabelos, mas era coisa muito discreta, até porque tínhamos de conviver, embora naquele clima carregado. Um colega meu, indiano, que só andava de turbante, tirou uma vez o dito turbante na casa dele (até hoje, pensando bem, não sei se foi uma cantada) e desdobrou uns 2 metros de cabelo, eis que o povo dele não encarava com bons olhos esse negócio de cortar o cabelo.

Nós, cristãos, não podemos falar muito. Ainda peguei o tempo em que as mulheres (até hoje, até hoje), nas igrejas católicas, cobriam os cabelos com véus, para não exibi-los tão despudoradamente. E, entre os homens, a coisa não é muito diferente. Rabo-de-cavalo em homem ainda desperta reações indignadas. E o tempo dos Beatles, quando os rapazes começaram a aparecer com os cabelos compridos? Pelo menos em Salvador, onde eu morava nessa época, havia um delegado (como vai, Guttenberg, saudações universitárias!) que mandava rapar os cabelos de todo cabeludo que seus comandados encontravam. Cabeludo era praticamente sinônimo de subversivo. E, quando a ditadura chegou, ser homem cabeludo era quase um passaporte para uma noite na cadeia.

João Saldanha, aquele homem admirável, e Passarela, esse homem não tão admirável, barravam craques cabeludos. João Saldanha ainda tinha um argumento, se bem que fajuto, para a proibição. Alegava que o cabeludo não podia cabecear bem. Passarela, não alega nada, apenas não gosta de jogadores cabeludos. Como aliás, hoje já acostumados, muitos torcedores também não gostavam. Marinho, aquele louro do Botafogo que chegou à seleção — lembram-se? — era olhado de nariz torcido pela torcida porque usava cabelo comprido. E não foi só ele, houve inúmeros outros casos pelo mundo afora. Os magistrados e advogados ingleses até hoje usam perucas nas lides judiciárias. E o mercado de perucas não-judiciais é florescente, como constatará qualquer um que, por exemplo, visite Portugal.

Que é que há com o cabelo? Alguém bem que podia escrever um estudo sobre o assunto. Quanto a nós, carecas assumidos, podemos no máximo tentar a velha tática de deixar crescer o cabelo de um dos lados da cabeça, para depois puxá-lo e colá-lo no topo calvo. Isso se a gente estiver aspirando à Vice-Presidência da República, é claro. Mas não sei se vale a pena, nestes tempos de crise, pois, como se sabe, na hora do aperto é dos carecas que elas gostam mais.