Assombrações variadas

(João Ubaldo Ribeiro)

Nunca olho o calendário e, assim, perco diversas oportunidades. Passou o Halloween, essa tradicionalíssima festa brasileira, e eu não fiz nada. Não só não escrevi coisa alguma sobre os meus halloweens da infância, como nem mesmo me vesti de bruxo ou acendi velas dentro de abóboras esculpidas, para botar na janela ou no gramado de minha casa (não há gramado nenhum, é claro, mas deve ser má vontade minha ou incúria dos governos, que não dão a mínima atenção às atividades culturais importantes). No próximo Halloween, prometo corrigir essa falha imperdoável e botar pelo menos um jack o'lantern (em português, brevemente jacolanterna, porque, como se sabe, em português "abóbora" é "jaco"), que é como se chamam em inglês essas abóboras iluminadas na porta da garagem. Espero que, em breve, comemoremos o feriado do aniversário de George Washington e outras efemérides americanas, que são muito mais chiques que as nossas e todas em inglês.

Mas não há de ser nada. Apesar do tempo já decorrido, ainda se pode falar no Dia de Finados, que foi na última segunda-feira. Sou do tempo do Dia de Finados, sem feriadão, invenção recente da modernização nacional. Os meninos o detestavam, a não ser pela suspensão das aulas. Mas tínhamos que vestir as domingueiras (no meu caso, um elegantíssimo terno azul-escuro de calças curtas, com meias brancas até os joelhos) e fingir compungidas saudades de parentes defuntos que nem sequer havíamos conhecido direito, ou que morreram antes de nascermos. E o dia, mesmo sem aulas, não era essas coisas, porque não se podia manifestar muita alegria, mais ou menos como na Sexta-Feira Santa.

A única coisa boa do Dia de Finados eram as histórias que a gente ouvia. Dão para escrever um livro. Dona Antônia, que uma vez chegou de Muribeca, Estado de Sergipe, para pedir um favor a meu pai e nunca mais saiu lá de casa, sabia diversas dessas histórias, a maioria vivida por ela. Como a do marido corneado que foi assassinado pela mulher e seu amante, e enterrado no meio dos matos. No Dia de Finados — arrepios, arrepios, entre a criançada — a terra sob a qual ele fora enterrado começou a se mexer e saiu aquela mão horrorosa lá de baixo, acenando para os passantes. Dona Antônia foi a primeira a ver, chamou testemunhas e o caso foi esclarecido, porque os canalhas da mulher e do amante ainda tinham difamado o marido desaparecido, dizendo que ele tinha arranjado uma rapariga pernambucana e agora, sob nome falso, era próspero feirante em Caruaru, vendendo carne seca de jegue como se fosse de boi. Deus castiga essas coisas.

Dona Antônia não deixava de ir ao cemitério de Muribeca no Dia dos Finados, botar umas margaridas e uns sorrisos-de-maria na tumba de Almerinda, amiga dela, prematuramente falecida aos 90 anos. Se não fosse, Almerinda aparecia na porta do quarto de dona Antônia, ou senão na cabeceira da cama, para se queixar.

— É isso mesmo, Antônia, nem no Dia de Finados você se lembra de mim — chorava ela e dona Antônia era obrigada a passar a noite toda desfiando um rosário em intenção da amiga, até o dia amanhecer.

Na minha própria família, tivemos diversos casos de assombração, o principal dos quais, julgo eu, era o de minha tia-avó Emília, que se defrontava com holandeses pelo menos uma vez por semana. Como é do conhecimento geral, os holandeses invadiram Itaparica e passaram lá todo o ano de 1647, pintando e bordando — queimando engenhos, enforcando gente e fazendo filhos nas moças e senhoras locais. Se não fosse o padre Antônio Vieira, que dava esbregues em Santo Antônio pela sua omissão (Santo Antônio era oficial do exército português, recebia soldo, tinha obrigação de mostrar serviço) e mais uns grandes heróis dos quais Itaparica sempre foi fartíssima, até hoje estariam lá, cometendo os citados abusos e quiçá outros, como obrigar todo mundo a falar holandês, quando se sabe que nem holandês consegue falar holandês.

A noite ia calma e silenciosa, quando vó Emília começava a bradar.

— Vade retro, Satanás! Saiam daqui, desgraçados, vão feder a cebola assim lá nas Holandas! Saiam daqui! Vanderdique, Vanderlei, Vantuir, todos os vans, aqui vocês não invadem nada!

— Tenha calma, Emília — dizia minha avó Pequena, que se acordava com o barulho da invasão.

— Não tem nenhum holandês aqui.

— Saia de perto, que esse desgraçado vai lhe dar uma bordoada, ou senão fazer coisa pior! — replicava vó Emília, partindo com valentia para cima dos holandeses, com o porrete de sucupira que usava como bengala.

De outra feita, os holandeses quiseram pegar Vavá Paparrão, e cuja canoa fez água e ele teve de pernoitar na ilha do Medo, assim chamada justamente porque foi lá que, tremendo de pavor da bravura itaparicana, eles se esconderam, enquanto meus conterrâneos os procuravam em outras partes do Recôncavo. Felizmente, Vavá era bom de capoeira e devoto de Santo Antônio (que é bom de capoeira também, Vavá me contou, esta vida é cheia de surpresas) e o santo apareceu para dar uma mãozinha. O resultado foi que nem Vavá nem o santo dormiram, mas, segundo me garantiu Vavá, a ilha amanheceu coberta de cadáveres de almas holandesas, o itaparicano nunca deu moleza a ninguém, perguntem aos invasores que andaram por lá. Mas, mesmo assim, eu ainda fico meio ressabiado no Dia de Finados e sempre tenho à mão uns exemplares de meus livros em holandês, para oferecer a algum que apareça. Pelo menos, assim eles caem no sono logo e me dão tempo de me pegar com Santo Antônio.