Você me mata, mãe gentil

(João Ubaldo Ribeiro)

Ai, mãe gentil, sim, você me mata, não tem procurado fazer outra coisa desde que me entendo. Há alguns dias, fiquei desagradavelmente mais velho, esperava um presentinho para estas vésperas de ancianidade.

E aí, claro, lá vem você de novo. E não me chegue com essa conversa de mãe neurótica, sobre falta de amor, nunca telefonar, jamais visitar, não dar uma lembrancinha e não ajudar nas horas difíceis. Se alguém não pode se queixar da maioria dos filhos, é você, mãezinha. Que filharada você tem, hem? Coisa de orgulhar qualquer um, o verdadeiro cadinho do mundo (melting-pot é conversa de americano, lá ninguém se mistura, os povos só se misturam aqui), tudo quanto é tipo de gente, humanidade para ninguém botar defeito. E bons filhos, que vêm segurando — desculpe, mãinha, mas estamos em novos tempos, os filhos hoje em dia dizem às mães coisas em outras épocas inconcebíveis — situações que muitas poucas famílias suportariam.

Quer dizer que era tudo mentira? Que o real ia ficar estabilizado, que não íamos mais ter inflação e tantas outras notícias róseas que nos davam? Com certeza, havia muita gente desconfiada de que não era bem assim, mas pegava até mal desconfiar outra vez, era catastrofismo impatriótico. Aí, de repente, saímos do real para cair na real — desculpe a vulgaridade do trocadilho cediço, você também tem me tornado mais burro, de tanto me tratar como burro. E a real é esta em que nos afundamos aos sobressaltos, sem ninguém, notadamente os que tomam conta da casa em seu nome, saber o que vai acontecer, uma convenção nacional de baratas tontas. Parece que é coisa feita, não é, mãe? Você tão rica, tão fértil, tão amena, tão bem dotada em tudo e sua prole no estado que se vê por aí.

De novo, não me venha com essa conversa de que inaugurou uma escola em Ipiabuçu e que a taxa de mortalidade infantil em Tupiromenhengava baixou de 32 para 21%. Aqui mesmo, na grande cidade do Rio de Janeiro, pérola da República e espelho do Brasil, repete-se a vergonheira de sempre, com o povo se humilhando atrás de escolas e morrendo feito moscas em hospitais públicos. Já nos acostumamos, achamos que faz parte da existência. E você (notou como não a chamo mais de "a senhora"?) também acha que vai passar o resto da vida como sempre passou, nessa irresponsabilidade um tanto blasé, que seria até simpática se você fosse socialite, mas você sabe que não é, é considerada baixa extração pelos ricos e ninguém sabe nem onde você mora, só quem gosta de você somos nós e você não compreende.

Você sempre foi assim, sempre desprezou seus filhos pobres e favoreceu os ricos. Tudo bem, todo mundo faz isso, de uma forma ou de outra. Mas do seu jeito, convenhamos, já é um pouco demais. As mesadas, mãinha, as mesadas! Você sabe que seus filhos prediletos concentram praticamente toda a renda da casa. E não pagam nada pela manutenção, nem condomínio eles pagam. Outro dia saiu no jornal — mas deixou de sair rapidinho— que uma quantidade enorme de grandes bancos e grandes empresas não pagou um tostão de Imposto de Renda, no ano passado.

Agora, pergunte se os assalariados pagam, se as pequenas empresas pagam. Não há explicação para isso, entre as muitas lorotas pomposas que você nos conta, só pode ser cachorrada sua mesmo.

Desculpe o destempero da linguagem, mãe, não posso me esquecer de que Deus disse "honrar pai e mãe". Mas nós sempre honramos, mãe, apesar da mentiralhada toda que você nos conta a respeito de seu passado, por exemplo. Aqui para nós, todo mundo sabe de certos podres em seu passado e, óbvio, dos podres do presente. Você até hoje gosta de posar de bonachona, simpaticona, sangue bom, não sei o quê. Sangue bom, por exemplo, que manda os filhos se matar uns aos outros fanaticamente, como em Canudos. Ou no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, ou Minas, ou Pernambuco, ou em tantas outras partes. Bonachona que até hoje gosta de dizer que filho preto e filho branco é tudo igual e nem lembra que foi a última, ou das últimas, mães a abolir a escravidão, soltando nas ruas exércitos de homens, mulheres e crianças despreparados e desamparados e criando problemas monstruosos, que continuam a nos atormentar. Até hoje você gosta de repetir que libertou os escravos porque era boazinha. Todo mundo sabe que, entre outras coisas, escravo estava ficando caro, a lógica do capitalismo já funcionava com eficiência. Bóia-fria sai muito mais em conta, só tem que gastar um dinheirinho com ele na hora do trabalho, depois ele que se vire.

Mas vamos esquecer o passado, não vamos revirar essas coisas, é tanta coisa... Tudo bem, o que está feito está feito, águas passadas não movem moinhos, tudo bem. Mas e agora? Que visão você nos traz, que luz você nos acende, com que futuro nos acena? Não, fora de brincadeira, pode ter caído da moda esse negócio de ter sonhos e almejar um futuro bom para nossos filhos e netos, mas todo mundo, ou quase todo mundo, ainda pensa nisso. Quando será o dia em que não teremos que conviver com a miséria, a iniqüidade, a injustiça, a desfaçatez dos poderosos, a insegurança, a falta de esperança? Até seu filho Tostão, que já levou à glória o auriverde pendão ostentado no peito e que escreve quase tão bem quanto jogava bola, disse outro dia que tem vergonha, que quer ir embora.

Mas nós, na verdade, não queremos ir embora, nem Tostão, nem eu, nem nossos milhões de irmãos, todos paridos ou adotados por você — todos, lembre-se bem. Nós queremos o que tanto você promete desde que nascemos. Parte, somente, do que você promete, já seria suficiente. Mas dizem que os problemas, desta vez, estão apenas começando, ainda não vimos nada. Vimos, sim, vimos. E tudo indica que continuaremos vendo, gerações afora. Busquemos consolo, porém, na novidade que você nos mandou, faz poucos dias. Criou-se uma comissão de notáveis para atacar a crise. Que é que você está me dizendo? Criou-se uma comissão? Que maravilha, agora é que as coisas vão marchar, como é que você não tinha pensado em criar comissões antes? Mãe, tu é a maior.

P.S. — Atenção, católicos, hoje é dia de S. João Bosco. Não foi ele que teve uma visão de Brasília, muito antes de ela ser construída? Vamos dar uma de Vieira, que bronqueou com Santo Antônio, e chamar o bom S. João Bosco à responsabilidade ("Deus nos ajudará", era o lema dele, não custa lembrar). Sim e, para os céticos, hoje também é o Dia do Mágico. Vamos fazer mágica com o salário! Ser rico é que é chato, como já nos explicaram.