Meu amarelo manteigabicho

(João Ubaldo Ribeiro)

Eu ia escrever, como se diz na língua-patroa, my yellow butterfly, mas, na qualidade de pioneiro (candango, aliás; pioneiro mesmo é o Homem) em nosso acelerado processo de integração na comunidade norte-americana, pensei, pensei, e resolvi que seria exagero querer que todo o povo brasileiro passasse diretamente a falar bem inglês, assim de uma hora para outra. Não se pode querer tudo de nosso povo, embora se tente — é ufanismo exagerado, até para pastar requer-se algum aprendizado.

Vamos primeiro nos acostumando à rica sintaxe da língua-patroa, que, ao contrário de nosso tartamudear neandertalesco, raramente admite adjetivos pospostos aos substantivos (o português os admite e até costumeiramente os aconselha e ensaia-se para ver nuances de significado nesse troca-troca indecente de lugar na frase, perda de tempo cretina, o atraso é um horror mesmo). Vamos esquecer que nossos ancestrais culturais, inventores da língua latina, já escreviam tratados filosóficos enquanto os ingleses ainda se pintavam de azul (os famosos pictos, lembra da escola?) e se dedicavam, como até hoje, a pesquisar de que maneiras se pode escaldar carne para torná-la menos apetitosa e, por conseguinte, buscar reduzir o perigo da doença da vaca louca (não conseguiram, pois a doença persiste; em compensação, quem come carne na Inglaterra é louco, esses ingleses são uns gênios).

Isto não quer dizer nada e vamos perseverar em nosso esforço de adquirir precisão verbal e escrever "penalizar" em vez deste verbo burro que é "prejudicar", e parar com a mania de que preposições não são palavras para se acabar sentenças com. Para não falar em muitíssimas mazelas e muitíssimos defeitos de nosso expressar, com os quais lidar não tenho paciência de.

Não sei para que alguém quer um subjuntivo, por exemplo, eta atrasinho de vida desgraçado, não sai nem uma bombinha atômica de um bom subjuntivo, basta o presente mesmo e é por isso que os falantes de inglês nunca são culpados de nada. Enfim (oh, well, como se diz em língua de gente). It's the fucking fucking language, as I fucking learned from the fucking movies at the fucking theater, fucking yesterday. Too fucking bad I fucking slept all the fucking movie through, fuck it, cultura é cultura.

Sim, mas fico aqui babando despeito subdesenvolvido no seu jornal de domingo e, mais uma vez, não digo a que venho. Só que, desta feita, me preveni e digo a que venho. Venho tratar de uma borboleta amarela, mas, como temo que as novas gerações não mais entendam o que quer dizer "amarela" (ainda mais com essa flexão no feminino; inglês, que é língua de branco, não flexiona adjetivo, atraso nosso, atraso) e muito menos borboleta, sinto-me no dever de fazer esclarecimentos e mea-culpa.

Borboleta, essa palavra horrenda, quer dizer um bichinho (em inglês, tem animal, tem bug, tem critter, mas não tem bicho, vejam vocês de novo o atraso — por quanto tempo ainda suportaremos isso?) de duas asas, antigamente visto com freqüência e hoje em exposição num shopping da Barra da Tijuca, havendo bom tempo e não caindo raios. Não faz medo, é só um bichinho que trabalha polinizando flores e botando ovos poéticos. Em inglês, é muito melhor.

Como qualquer inseto díptero e mesmo uns não tanto, não têm nome em inglês, são todos "flies". E butter é "manteiga". Certamente o rei Arthur, como não conhecia nem manteiga, nem açúcar, nem tomate, nem batata, nem milho, nem oliva, nem nada que se pudesse lambuzar o pão com, usava uma borboletinha ali, outra acolá, para amaciar seu pão de cevada brava e seu javalizinho putrefato — perdão, faisandé. Então, o certo devia ser "mosca-manteiga", e seguramente o será em breve, eis que, na Academia, estamos aguardando com ansiedade a visita do FMI para nos explicar como devemos falar e escrever. "Bichomanteiga" me pareceu uma solução razoável.

Quis usar "bichinho", mas me lembrei que inglês não é muito chegado a diminutivos desinenciais, estoutro atraso de vida, quando é muito mais simples usar little (antes do substantivo, mind you, itsy-bitsy, teeny-weeny, essas coisas tão de nossa infância). Desculpem, I get carried away at times (como se diz isto em português?). Não vem ao caso, nada que valha a pena é dito em português, esqueçam, forguetem, deletem, mil perdões. Então, fica "bichomanteiga", se bem que ainda estamos abertos a "manteigobicho" ou ao sincrético "butterbicho", nunca se sabe a contribuição que poderemos dar à humanidade, mesmo na nossa condição necessariamente humilde.

É, mas falei tanto que quase não sobrou espaço para minha borboleta.

As borboletas não soem ser seres grandevos (uma aliteraçãozinha e um pernosticismozinho, só para tirar recalque), mas esta minha é. Yellow que faz gosto, quase golden, visita nosso jardinzinho desde que vim morar aqui. Dirão vocês que estou enganado, que não é a mesma borboleta. Retruco-lhes que enganados estão vocês. Já não tenho mais mamangavas, abelhinhas e outros bugs, que o smokecee (fumacê, ignorante) matou, na grande luta pela saúde nacional que o governo lidera.

Mas a borboleta amarela persiste, aparece aqui todo outono. E é a mesma, se bem que possa ter sido privatizada sem que me fosse comunicado, mas a isso estamos todos acostumados. Não, não, é uma borboleta pública, sem valor comercial e o ataque que faz às nossas flores não é especulativo. Ela nem está pensando no pólen que se acumula em suas patinhas, enquanto beija as flores distraidamente. Faz amor entre plantas apenas borboleteando, não é belo? É, sim. E notei, atenção, entomologistas, que acham que estamos mais para cupins do que para borboletas: enquanto ela sorvia o néctar das flores, se agarrava nelas com suas seis graciosas patinhas. E não é que as patinhas eram verdes? Eram verdes, comadres e compadres, dava um conjuntinho verde e amarelo!

Não cessarão jamais as maravilhas, o verde e o amarelo, afinal, não acabaram! Vamos botar fé, ainda nos sobram as borboletas, não é pouca porqueira. Por essas e outras, o Brasil, apesar de tudo, é um país que nunca deixaremos de ter esperança em. Sus!