Um dia como qualquer outro

(João Ubaldo Ribeiro)

Até que se levantou bem-disposto. Bem mais de cinqüentinha já, e ainda relativamente em forma. Olhou-se de cueca no espelho grande do armário. A barriga deixa um pouco a desejar, mas dá para murchar sem grande esforço, num caso de emergência. As pernas ficam cada vez mais finas e os pêlos estão caindo (ou, por outra, migrando para as costas e as orelhas, mistérios fisiológicos), mas a verdade é que o todo não se apresenta tão mal assim, há gente com menos idade e bastante mais despencada. Chatas mesmo são as pelancas do pescoço, logo abaixo da papada igualmente injuriosa. Havia observado as pelancas do pescoço pela primeira vez no espelho de aumento de uma ótica — pelanconas tortuosamente verticais que se exibiam com crueldade, quando a cabeça assumia certos ângulos. Depois disso, elas nunca mais cessaram de ostentar-se despudoradamente e até se ajustam ao colarinho como se tivessem nascido umas para o outro. Inegável uma certa decadência, mas estava ótimo, a não ser pela fisgadinha nas costas, certamente problema de coluna outra vez. Mas tudo bem, quem foi o gaiato que disse que, depois dos 50, se você não acordar com uma dorzinha, deve verificar se já não morreu? Pois é, tudo bem.

Tudo bem. Chapa móvel fixada cuidadosamente entre os dentes da frente, sorriso impecável. Claro, seria melhor uma ponte fixa, um serviço mais bem-acabado, mas dinheiro não estica e há outras prioridades, sempre há outras prioridades, algumas das quais, como a infiltração no banheiro e na cozinha, a mulher abordaria pouco antes de ele sair — e ele, como de hábito nos últimos meses, diria que conversariam à noite, depois do Jornal Nacional. E, claro, como agir com Jane, que só anda fazendo caras e bocas e quer ser atriz e modelo, deixar o colégio em que já perdeu três anos e obter permissão para que o namorado durma com ela nas suas, dela, casa e cama? Sim, problemas, problemas, mas todo mundo tem problemas, isso passa, é adolescência, é uma doença, conversaria com ela. E — quem sabe? — talvez fosse melhor deixar que o infeliz dormisse logo lá, ou iriam acabar dormindo em outro lugar, do mesmo jeito. A gente tem de se acostumar, são os novos tempos, cada vez mais tem gente fazendo isso. Contanto que ele não ande de cueca pela casa e levante o assento da privada. Mas de noite conversamos, depois do Jornal Nacional.

Passou a mão maquinalmente por cima da cômoda da sala, chegou a abrir a boca, para perguntar quem tinha pegado as chaves do carro. Que chave de carro, depois que tocaram fogo nele, numa manifestação de favelados contra a polícia? Claro, o carro estava no seguro, mas a seguradora diz que não cobre esse tipo de caso, constava no contrato, ele que tivesse lido com o devido cuidado, na hora da assinatura. Verdade, fora ver e constava no contrato, mas na hora a pessoa fica entretida pela conversa do corretor, pensa que tudo é formalidade corriqueira e assina o que lhe põem à frente. Pensando bem, a culpa era dele, já devia estar alerta para esse tipo de coisa. O seguro-saúde não foi a mesma coisa?

Na hora H, estava escrito nas letras miudinhas que ele não cobria tudo o que se tornara necessário, quando a sogra viúva ficara doente.

Poderia ter morrido do mesmo jeito, certamente morreria, mas quem sabe não viveria mais um bocadinho, se não tivesse tido que passar dois dias de ceca em meca, procurando vaga num hospital público, para finalmente a deixarem numa enfermaria com jeito de hospital de cidade bombardeada, na companhia do que pareciam ser umas 200 pessoas? E será que algum auxiliar de enfermagem do setor Adeus, algum papa-defunto... Não, não, também não era assim e agora não tinha mais jeito. Ainda se ela tivesse morrido no Souza Aguiar, talvez desse para pleitear a indenização que estavam prometendo. Não, não seria honesto. Ou seria?

Até que seria, porque ele havia sido injustiçado pelo seguro-saúde e pela rede pública hospitalar e, além do mais, todo mundo estava se habilitando, ninguém pode deixar escapar um dinheirinho extra hoje em dia. Não, não, sai da cabeça, mau pensamento.

Conferir carteira. Dinheiro contado, não só por necessidade, como principalmente por precaução. Bobagem levar mais dinheiro do que o estritamente necessário, além da nota de dez entre a meia e o sapato.

Entre a meia e o sapato, é sempre mais difícil para o assaltante apressado. E não o deixaria no vexame que amargou, quando foi assaltado pela terceira vez num bairro cujo nome ele até esquecia sempre e ficou sem dinheiro para transporte, tendo de pedir emprestado a desconhecidos, a maior parte dos quais nem ouviu a sua história, assim como o PM da cabine disse que não podia fazer nada. Documentos em xerox, todos autenticados. Originais nunca, essa lição aprendera depois do primeiro assalto. O dinheiro, o relógio, a correntinha de ouro, presente da madrinha que usava desde menino, podia passar sem tudo isso, mas os documentos, meu Deus do céu. Os documentos e os cartões, claro, sair com cartão de banco só em caso de absoluta necessidade e, preferivelmente de dia, na companhia de alguém. Tem de se aprender a viver na cidade grande sem frescura, é isso mesmo, otário é que dá sopa.

Viagem de ônibus até o trabalho normal, ninguém com pinta de assaltante. Um pouco vagarosa por causa do caminhão quebrado dentro do túnel. Não deviam permitir caminhões desse tipo no túnel e de fato diz a placa que não permitem, mas se dá um jeitinho. Da mesma maneira com que dera um jeitinho no guarda de trânsito, no dia, ainda no tempo em que tinha carro, que ia ser multado por estacionamento irregular. A gente fala, mas aqui tem isso de bom, pode-se sempre dar um jeitinho. Como Guiomar, a colega de trabalho que complementa o salário vendendo sanduíches ótimos na hora do almoço, verdadeiras refeições, sai mais em conta usar os tíquetes para outras transações do que para comer. Ih, que é aquela aglomeração de colegas à porta do edifício? Logo descobre, hoje é feriado, ele não abre, determinação do pessoal do morro adjacente, que ninguém vai desafiar. Todo mundo para casa, embora alguns ainda fiquem por ali, conversando sobre bandidos, balas perdidas, seqüestros, mais notícias de roubalheiras públicas, boatos de novas demissões e o ponto-e-vírgula da lei de aposentadoria.

Não, nada disso para ele. Ficar ali para que? E se algum bandido resolve verificar o acatamento à determinação do chefe, passa por lá e dá uma metralhadinha, só por desfastio? Seguro morreu de velho, o negócio é voltar para casa e ver se pode pegar uma praia, nada como uma praia em dia de semana, abençoado seja o Rio de Janeiro. Mas sem entrar na água, não pode, só um solzinho mesmo, uma caminhada e depois um chopinho, que ninguém é de ferro. Uns chopinhos e a volta à casa, só que faltou energia e ele não vai subir 12 andares, ainda é cedo para o enfarte. O jeito é voltar para a turma do boteco e esperar que o apagão não dure cinco horas desta vez. Podia telefonar para casa e avisar, mas, com telefone mudo há oito meses, fica difícil. Bom, o que não tem remédio, remediado está. A mulher vai reclamar, mas ele explica. Ela pode ficar meio de tromba, mas acaba entendendo. Aliás, será até uma boa oportunidade para discutir alguns aspectos do casamento, certas coisas precisam ser questionadas ou revistas. Depois do Jornal Nacional. Depois da novela, reconsiderou ele, pensando em como era bom saber que o boteco ainda o deixava pendurar a conta.