Esqueçam esse negócio de privacidade

(João Ubaldo Ribeiro)

Tem muita gente escandalizada com o fato de que grampeiam conversas telefônicas até do presidente da República, ocupante de cargo que requer a máxima segurança possível em coisas desse tipo. E é realmente terrível que isso aconteça, independentemente do que venha a ser revelado. Afinal de contas, uma conversa pessoal e reservada não tem por que ser trazida a público e, vamos e venhamos, transparência, sim, mas não há chefe de Estado que não precise tratar de temas sigilosos.

Todo Estado, queiramos ou não, gostemos ou não, tem que manter certos segredos. Se os segredos que o Estado brasileiro mantém são impróprios ou são passados adiante criminosamente, é outra discussão, que talvez nunca acabe e na qual não pretendo me meter agora, pois o que tem saído em outros lugares e veículos já é mais do que suficiente.

E creio que todo mundo concorda que, principalmente quando se trata de um papo entre pessoas que não devem satisfação ao público, conversa particular é conversa particular, não é da conta de ninguém.

Agora temos certeza de que qualquer pé-rapado pode escutar nossos telefonemas, saber a pizza que encomendamos, informar-se sobre namoradas ou namorados clandestinos, ouvir nosso médico falando sobre nossas doenças, enfim, escarafunchar nossa vida até o limite em que a expusermos pelo telefone, limite que tende a se tornar cada vez mais estreito e rigoroso. Nova paranóia se acrescenta às muitas que já nos sitiam e o medo de dizer coisas ao telefone torna-se universal.

Infelizmente, a idéia de que as coisas vão melhorar deve ser enfaticamente descartada. Privacidade, esta palavra que antes nem era usada por aqui e veio, como tantas outras, por via americana (antes se usava "intimidade", alguém aí deve lembrar), está ficando cada vez mais uma coisa do passado. No futuro bem próximo, ninguém vai ter privacidade. Se um maluco resolver manter privacidade completa e mudar-se para uma ilha neolítica, para morar dentro de uma caverna fechada por uma porta de aço, haverá pelo menos um tablóide inglês cansado de mostrar duquesas tendo o dedão do pé chupado e disposto a custear um fotógrafo de plantão junto à caverna, para o dia em que o infortunado troglodita resolver sair para tomar sol, ou qualquer coisa assim. Para não falar no exame dos mantimentos do encavernado, nas tentativas eletrônicas de escutar através da porta os ruídos lá de dentro, nas reportagens bisbilhoteiras com os parentes dele e assim por diante.

Recordo as velhidades, antes de passar adiante novidades. Grampo de telefone é fichinha. Almoço de negócios, melhor nem pensar — não me esqueço do transmissor de rádio que era uma azeitona falsa dentro de um martíni, com um palitinho que servia de antena. Há algum tempo, executivos de grandes empresas se encontravam em descampados de clubes de golfe, para não correrem o risco de serem ouvidos. Logo se desenvolveram supermicrofones, capazes de escutar conversas transcorridas a grande distância. Alguns são tão bons que captam sons de salas hermeticamente envidraçadas, através das vibrações das vidraças. Conversar no banheiro, com o chuveiro aberto (dizem que chuveiro aberto continua ótimo para confundir microfones), virou prática não só entre gângsteres como entre executivos e políticos (o que, aliás, faz pensar, não faz?). Codificar as conversas telefônicas ou mensagens eletrônicas não adianta nada, pois, se quebram até os códigos de segurança do Pentágono, como não quebrariam códigos muito menos difíceis?

Muito bem, o sujeito não fala no telefone em absolutamente hipótese alguma e estabelece como norma que o método de comunicação, na organização e até na casa dele, é o cochicho, com mão em concha na orelha e tudo. Boa tentativa, mas existem outras formas de bisbilhotar, há até firmas especializadas. Uma dessas técnicas é a análise do lixo.

Pega-se o lixo do freguês durante um certo tempo e descobrem-se coisas que a família não conta nem a si mesma. Receitas de remédios para desequilíbrios mentais ou emocionais, fraldas para adultos, fixador de dentadura, absorventes femininos ("atenção, atenção, leitores: no dia 26 passado, a condessa de Touchmehere ficou menstruada!"), embalagens de alimentos, cotonetes usados ("o cantor Eddie Gurgle sofre de grave problema de cera nos ouvidos"), sementes de maconha, canudos com restos de cocaína, vibradores quebrados, calcinhas peraltas — lista infinita, que qualquer um pode desenvolver até encher várias páginas. E a análise de lixo é tão próspera que vai surgir nova indústria, a de processadores de lixo domésticos, para que seu lixo fique irreconhecível, antes de ser jogado fora.

Dirão vocês que isso só acontece com quem é famoso, notório ou desperta a curiosidade pública de alguma forma. Novo ledo engano. Bill Gates mesmo (que, por sinal, lavou minha alma outro dia, dizendo, como eu sempre digo, que os computadores pessoais são de fato máquinas primitivas, de pouca confiança e enervantes, embora — hélas! — já não possamos viver sem elas, mesmo os que pensam que podem), Bill Gates mesmo, dizia eu, prevê (e já existem muitos protótipos, cada dia aparece um) que os eletrodomésticos do futuro próximo serão todos conectados à Internet. Maravilha, não? A lavadora de roupas detecta o próprio defeito, envia os dados para a manutenção, esta faz o conserto a distância, ou, em raros casos, manda o técnico. A mesma coisa com tudo mais em casa, até o microondas lendo a receita e fazendo tudo sozinho. Maravilha, sim, mas todo mundo vai ficar sabendo que detergente você usa, quantas vezes lava a roupa por semana e, se duvidar, quantas cuecas tem e se besunta a camisa quando come macarronada. E a monitoração de gente? Já há por aí condenados em regime aberto que usam pulseiras para não deixar que eles saiam dos limites, geográficos e talvez outros, estabelecidos pela sentença. Por que não utilíssimos monitores médicos para todos também? Assim, por exemplo, os cardíacos seriam atendidos com presteza extrema. E também, naturalmente, os médicos ou controladores saberiam mais ou menos quando o paciente estivesse dormindo, discutindo, ou até fazendo aquilo. Do planejamento genético (com toda a certeza a cargo dos economistas, Senhor Deus dos Desgraçados!) e dos possíveis chips no cérebro já falei, eles vêm aí.

Enfim, para coroar tudo isso, construíram o primeiro computador combinando chips de silício com neurônios. Ainda são neurônios de sanguessuga, animalzinho que não se notabiliza pelo brilho do raciocínio, mas em breve serão de ratos, depois de cachorros, depois de chimpanzés, depois... Depois, de gente mesmo, é claro. E neurônio não depende de programação, ele mesmo desenvolve os circuitos e sinapses dele. Seremos em breve governados por uma grande sanguessuga? (Pensando bem, não respondam a esta pergunta.) Não sei, mas privacidade, mermão, vamos esquecendo enquanto nos permitem, pode continuar aí em seu banheiro, que o trono ainda não está em rede.