Paz, não é mesmo?

(João Ubaldo Ribeiro)

Acho que pouca gente reclama de ler jornais e assistir a noticiários mais do que eu. Aqui mesmo, correndo o grave risco de me integrar no ingrato rol dos que cospem no prato em que comem, já me queixei de ficar deprimido ou alarmado com tanta desgraceira a que somos expostos ou que nos impõem, a ponto de fazer promessas de nunca mais olhar para um jornal ou a assistir a um noticiário de tevê. Claro que nunca vou cumprir essas promessas, não só porque me viciaram em jornal desde pequeno, como porque, para escrever, preciso ler. E ler sobre o que está se passando e interessa às pessoas, pois não creio, por exemplo, que haja muitos entre vocês que nutram grande curiosidade sobre o que venho pensando de Tersites e Odisseus, no comecinho da Ilíada, que estou lendo outra vez. E o que está se passando é quase sempre de horripilante a intimidador — desde corrupção e todo o tipo de crime e trambicagem a anúncios de que não se pode comer mais nada sem ter câncer, chegou nova doença incurável e todo mundo que já enfiou o dedo no nariz mais de cinco vezes vai morrer de esclerose múltipla nos próximos dois meses.

Tem gente que acha que é culpa de imprensa. Ou da mídia, como se diz agora. A mídia não gostaria de dar notícias boas, nem de dizer que coisa alguma vai bem. Além disso, assumiu desde cedo o papel de proporcionar à coletividade voz e oportunidade de manifestação. E, ainda além disso, como se sabe, todo mundo que é pilhado pela imprensa na comissão de algum ato reprovável atribui a responsabilidade a quem deu a notícia. É muito complicado discutir isto. O Alberto Dines é quem entende dessas coisas e eu, apesar de lê-lo bastante, aprendo com dificuldade. O fato é que, se me lastimo tanto de que só leio matérias pesadelares, eu devia procurar um assuntozinho mais ameno. Mas eis que, cada vez mais, me surpreendo sem achar lá muita graça em coisa nenhuma, por muito que me esforce.

Quis achar alguma graça, no sentido mais lato da palavra, na cessação dos bombardeios contra a Iugoslávia. Tudo arrasado, milhares de mortos e desaparecidos, centenas de milhares de refugiados, famílias e comunidades destruídas, tragédia sobre tragédia. Mas cessaram as bombas, chegou a paz. E a guerra, conforme milenar e venerada tradição, serviu a seus propósitos habituais. Foi excelente para o mercado, que hoje, como não ignoramos, é a medida de todas as coisas. Não se podem calcular os benefícios para a pesquisa da indústria bélica, não só em faturamento direto como em subsídios para aperfeiçoamentos que, no futuro, nos legarão armas cada vez mais eficazes. E, enquanto dedilho este teclado, empresas de todo o mundo desenvolvido se aprestam para o boom da que se seguirá, com a reconstrução das áreas devastadas.

Ganharão os banqueiros, que darão financiamentos a juros generosos (e, se duvidar, quem acaba pagando parte da conta, por vias tortas, somos nós, via FMIs, bolsas de valores, alterações de câmbio e outros fenômenos arcanos que não entendo, mas sei que são importantes para o mercado e que metem a mão no bolso da gente, como tudo o mais no mercado), ganharão as empreiteiras e construtoras e até ganharão os trabalhadores empregados nas obras, por seu turno elevando o consumo e fazendo com que ganhem também a indústria e o comércio, o mercado opera maravilhas. Sempre funcionou desse jeito e, mesmo na 2ª Guerra Mundial, banqueiros dos países aliados cooperavam e ganhavam dinheiro com os nazistas. Eu não acho tanta graça assim, sinceramente, até agora não consegui.

Pode ser porque, se os bombardeios pararam, o ódio continua e vai continuar durante muito tempo ainda. Na verdade, não se resolveu nada e temo até que os ressentimentos e o rancor se hajam açulado ainda mais, desenvolvendo novas razões de ser, por cima das tantas outras que há séculos se acumulam. Nós sempre aprendemos que os europeus são civilizadíssimos e sempre quisemos ser europeus (agora queremos ser americanos, mas no fundo é a mesma coisa), embora, volta e meia, as tribos deles joguem o mundo numa guerra ou façam o possível para que isso aconteça. Nada mudou, vão continuar a querer matar uns aos outros e não raro por motivos que não enobrecem muito a humanidade, tais como o fato de um comer carne de porco e o outro não.

E também porque, não importa quanto queiram que nos esqueçamos disso, o mundo dos povos hoje suportando tanto sofrimento não é só constituído de criancinhas louras e com boa estampa para comerciais de talquinho para o bebê. O mesmo canal de tevê que mostra as criancinhas de Kosovo às vezes mostra criancinhas africanas, cujas facezinhas escaveiradas e bracinhos mais finos que gravetos nos fazem desviar os olhos. E pensar em outro assunto, mudar de canal. Violência é só bomba? O meio será realmente a mensagem? Haverá algo na forma com que são realizadas as reportagens sobre as crianças africanas, que faz com que a maior parte das pessoas não pareça se solidarizar tanto com elas quanto com as crianças da Europa Oriental? Alguma coisa há de ser, porque, se não vemos coligações de potências bombardeando países pobres africanos, sabemos que muitos deles estão em miséria que cresce assombrosamente e desafia qualquer imaginação. Não são só as guerras, são a fome, a doença, a morte, em números espantosos.

Se a imprensa não falar nessas coisas, quem falará? Se um sujeito como eu, igual a vocês, com a diferença de que disponho de espaço num jornal para tentar traduzir um pouco do que pensamos, sentimos e sofremos, deixar de escrever sobre essas coisas, quem escreverá? Está certo, poderão responder vocês, mas deixe isso para outros, volte para as suas amenidades inofensivas. Eu volto, podem deixar que eu volto. E, afinal, isto é facilitado pela circunstância de que, apesar de todos os problemas, nós, brasileiros, ainda vivemos em paz, não temos guerra. É, não temos, estamos em paz. Foi exatamente o que pensei, quando cheguei em casa na segunda passada, às 9 da noite, depois de, na companhia de outros fregueses, ter sido aterrorizado por dois pivetões numa padaria e, em seguida, com medo de outro que me havia ameaçado na rua, mudei de itinerário, para não cruzar com ele na volta. Fiquei um tiquinho sobressaltado, mas cheguei em casa incólume, acreditem. A gente vive em paz.