Segunda-feirite aguda

(João Ubaldo Ribeiro)

Trabalho desde os 17 anos — já lá se vão 41 do que começou como primaveras, chegou a verões, já está em outonos e, logo, logo, se transmuta em invernos. Podia estar aposentado, mas não só levantar a papelada me infunde pânico, como também não quero ser chamado de vagabundo, especialmente por um ex-colega de magistério, se bem que ele próprio aposentado. Além disso, como não está a meu alcance aspirar ao marajanato (sei que esta palavra não existe, mas posso perfeitamente inventá-la, é necessária na atual conjuntura; e, se o ex-ministro Magri, dos saudosos 30 mil dólares, pôde, eu também posso), aposentar-me provavelmente me levaria a ter de estabelecer uma banca de camelô ou a pleitear uma vaguinha no Retiro dos Artistas, com base em minha memorável participação nas peças do jardim de infância em Aracaju, onde certa feita interpretei Tatu Subiu no Pau, sem muito sucesso, mas com inquestionável empenho. E manda a ética que me recuse a recorrer a pretensas vantagens derivadas de relacionamentos pessoais, eis que, se não me engabelam outra vez os neurônios carunchados, o ministro Ornelas ou foi meu aluno ou quase foi — é o segundo ou terceiro ministro que foi meu aluno, fico um pouco melancólico. E o dr. Antônio Carlos, eu também podia recorrer ao dr. Antônio Carlos, que me conhece desde rapazinho (eu, não ele), sempre é afável comigo, morre de rir quando o critico e, pondo a mão no meu ombro, me chama de "ilustre representante da esquerda democrática".

Não, não, nada disso. Nada de aposentadoria, nem de tentar facilitar a vida, procurando pistolões. Ao trabalho. Não tenho queixa, mas a verdade é que, já depois de muito tempo trabalhando em casa, com meus próprios horários e sem chefe ou patrão por perto, também padeço da segunda-feirite que acomete todos os trabalhadores. Alguns, como sabemos, começam a ficar macambúzios na hora em que ouvem a musiquinha de encerramento do Fantástico. Eu, apesar de não sofrer as mesmas pressões que um trabalhador sujeito a horários e normas rígidas, começo na manhã da própria segunda. Lá vêm outra semana, outra crônica, outros compromissos, outras chateações, lá vem a segunda-feira, enfim. Quis muitas vezes descondicionar-me, argumentando comigo mesmo que desfruto certa liberdade, mas não adianta, a síndrome ataca de igual maneira.

Ler os jornais, é claro, o que só agrava a situação. Que acontece de novidade? Nenhuma novidade. Sim, vamos de "Avança Brasil", não é isso mesmo? Eu sei que muitos de vocês acham que tenho má vontade — e talvez tenha, embora faça força para não ter e apesar de existirem razões em minha defesa, vocês hão de admitir —, mas alguém aí se entusiasmou com o "Avança Brasil"? Alguém, aliás, sabe direito o que é o "Avança Brasil"? Talvez seja a mesma coisa que os cinco dedos da primeira campanha presidencial, talvez não seja, o fato é que o País se encontra de crista baixa e acho que nenhum de vocês se empolgou, ou conhece alguém que se haja empolgado.

Prometo que não vou ficar repisando restrições ao governo, até porque, para isso, basta vocês se dirigirem à seção de cartas dos leitores. Mas, durante todo este tempo, vocês não sentiram falta de pelo menos algo que nos inspirasse, uma visão, mesmo um pouco fantasiosa, de que o futuro seria melhor, de que estaríamos recebendo de nossas lideranças e elites o que temos o direito de esperar? Nem um sloganzinho (como "New Deal", "New Frontier", "50 anos em 5") apareceu.

Agora acho que apareceu, mas tão chocho e em nação, com perdão da má palavra, hoje tão broxa, que ninguém ligou. Não tem ocorrido recentemente, mas quantas vezes a gente viu o presidente falando como se se referisse a outro país que não o que ele administra? Volta e meia, até soava como um opositor moderado, desancando polidamente um governo que aparentemente não era o seu.

E a oposição, que oferece a oposição? Sei que há mais complexidade na questão do que isto, mas o que passou para nós, em geral, foi o "Fora, Fernando Henrique". Como todo mundo que me lê sabe, não porto carteira do fã-clube dele e sou, conseqüentemente, insuspeito para falar: qual é essa de "Fora, Fernando Henrique"? É brincando de botar presidente para fora que se vão resolver os problemas do País, tem apenas tanta importância quanto a substituição de um jogador de futebol no decorrer da partida? Verdade que as pesquisas de opinião parecem indicar que muitos dos milhões de eleitores que o levaram ao posto estão arrependidos, mas o Governo não se constitui ou legitima com pesquisas de opinião e, sim, com o voto e o exercício responsável da cidadania.

Sai o presidente e se resolve o quê? O primarismo dessa proposta é de tal ordem que não mereceria discussão, a não ser pelo fato de haver gente que a leva a sério. Escolhe-se o caminho mais simplório, mais rudimentar e mais atrasado, volta-se, quer se queira quer não e se disfarce ou não, ao golpismo mesmo. Preferia não ter de concordar nisso, mas de fato pairou no ar um certo bodum de golpismo. Proposta madura e elaborada para enfrentar a situação de forma institucionalmente respeitável é que não há.

Mas tudo indica que o golpismo não tem terreno onde medrar. "Avança Brasil" é a nossa segunda-feira, não vai acontecer nada de novo, as coisas podem até piorar, mas a piora tampouco é novidade. Suspiros. Terça-feira as coisas melhoram, na quarta já se vislumbra a sexta e aí chegam o sábado e o domingo, sucedidos, Deus é grande, por talvez uma segunda enforcada, devido à comemoração da nossa independência (sic).

Eu tinha até achado na Internet umas coisas importantíssimas para contar a vocês (vocês sabiam que o Pato Donald foi proibido na Finlândia por não usar calças e que mais gente é morta por jegues e mulas no mundo todo do que por acidentes de avião?), mas deixo para depois. Vamos aproveitar o domingo, porque amanhã é segunda-feira e o Brasil vai avançar.