Vicissitudes

(João Ubaldo Ribeiro)

Hoje, entre outros veneráveis santos, se homenageia Santo Inácio de Antióquia. Mentira sua, você não só não sabia disso, como tampouco sabe dizer coisa alguma sobre o bom Santo Inácio de Antióquia. Mentira minha também, me dando a ares eruditos e devotos, porque a verdade é que não fazia idéia de que hoje é o dia de Santo Inácio de Antióquia.

Informou-me aqui uma agenda que prenuncia os domingos, não me deixando perder assuntos momentosos para o dia da semana em que sai esta crônica. Se não fosse pela agenda, eu jamais escreveria sobre o Dia dos Pais, das Mães e outros que caem em domingos e de que nunca me lembro.

Sim, Santo Inácio de Antióquia. Dou uma espiada no dicionário de santos que reside aqui por perto, numa sólida mesinha da Tok e Stok que a cada três semanas despenca automaticamente e me esborracha um dedão do pé, e descubro que Santo Inácio de Antióquia não só foi dado de comer a leões como despersuadiu os que queriam ajudá-lo a escapar desse destino.

Devia estar de saco cheio, o já coroa Santo Inácio, e ser comido por leões foi de bom tom entre cristãos durante certo tempo, como nos ensinavam no ginásio.

Mas não será por isso que estou melancólico, conquanto não atinja o ponto de aspirar a ser comido por leões, ou até leoas, nesta terça-feira em que escrevo, pois já me encontrava de beiço pendurado debaixo do chuveiro, às 5 e meia da manhã. Para começar, não acordara lá muito bem, depois de olhar pela vidraça ao deixar a cama e de novo constatar que o Rio decidira estacar de vez em sua nova condição berlinense. Aliás, justiça seja feita, em Berlim faz mais um solzinho do que tem feito no Rio nas últimas semanas, que já parecem décadas. Todo dia, se bem me lembro, os meteorologistas da televisão se postam diante de um mapa do Brasil sobre o qual perpassam nuvens e pairam sinaizinhos afrescalhados e anunciam qualquer coisa sobre uma frente fria. Acostumamo-nos a achar que o tempo está explicado, através da utilização, comparativamente recente, da expressão "frente fria". Tem certamente uma aura científica, embora não queira dizer nada além de tempo frio mesmo. Ou seja, podia-se perfeitamente dizer que amanhã vai chover ou não vai chover, mas se prefere a menção a uma frente fria e então nos sentimos ilustrados. É uma frente fria, repetimos gravemente, tão ignorantes sobre o tempo quanto sempre fomos e tão enganados pelos meteorologistas quanto de hábito, pois, se não me engano, eles dizem que a frente fria vai acabar e ela não acaba nunca.

O que talvez acabe seja o mundo mesmo, como sustentam e querem diversos. Este Rio berlinense só pode ser prenúncio de fim de mundo.

Sim, um novo dia de friagem, umidade, ventos insolentes e plásticos lúgubres, tapando os restaurantes que dão para as calçadas, deve contribuir sobremaneira para a melancolia. Mas ela é mais funda. Ou se afunda mais, a cada coisa que aparece, como a própria perspectiva de escrever. Tenho de escrever, vivo disto e o jornal não pode aparecer com um espaço em branco e o comunicado "estimado leitor, este espaço hoje está vazio porque o escritor não estava com vontade de escrever".

E tenho de escrever conforme o esperado, empresa cada dia mais laboriosa, porque se avolumam as declarações de que sou uma "figura pública" e às figuras públicas cabe obedecer a normas de conduta rigorosas. Embora nunca tenha pedido voto a ninguém nem receba dinheiro do governo, acho que já tinha até me acostumado a esse negócio de ser figura pública; afinal, não fazia grande diferença. Mas agora faz.

Agora todo dia aparece uma novidade sobre o que nós, figuras públicas, podemos ou não podemos fazer.

Existem coisas genéricas que as figuras públicas não podem fazer e cuja variedade é tão vasta quanto o número de observadores das figuras públicas, e há também coisas específicas para cada figura pública em particular. As genéricas já me deixam resignadamente cínico, pois sei que, como tudo entre nós, serão, mais cedo ou mais tarde, objeto de legislação. Imagino que nos proibirão de fumar, beber, usar linguagem profana, não gostar de filme nacional, abominar feijoada, odiar pagode, não acompanhar pelo menos uma novela de tevê, assoar o nariz (assoar o nariz — esqueci de comentar esta nova descoberta médica que, como sempre, vocês não viram nas gazetas — agora faz mal, dá sinusite e é um péssimo exemplo para a juventude), andar com a barba por fazer (saiu uma carta de leitor reclamando disso nos jogadores de futebol), coçar o traseiro, circular sem cueca e o que mais ocorrer ao furor legiferante que ora nos empesteia.

As proibições a figuras públicas específicas são igualmente relevantes. No meu caso particular, não posso jamais ficar melancólico ou mesmo de mau humor. Aliás, sou engraçadíssimo, como comprovam as risadas com que me recebem até ao me queixar de algum revés. Imagino que, se fosse assaltado, o assaltante não só acharia hilariante meu jeito de tomar o tiro como, caso sobrevivesse com uma bala no crânio, as visitas iam morrer de rir de meus gemidos. Outro dia mesmo, num tamborete eletrônico das vizinhanças, a máquina engoliu meu cartão e, quanto mais eu reclamava, mais os circunstantes comentavam como eu era o fino da bossa gaiata. No fundo, talvez eu deva até ser grato por isso, porque, mesmo quando estou sendo melancólico, todo mundo acha que é gozação.

Servir-me-á até mesmo daqui a pouco, no boteco. Vou me encher de guaraná, como tenho extravagantemente feito nos últimos meses e não vou reagir bem ao milionésimo comentário de um companheiro qualquer, segundo o qual beber guaraná faz bem, por ser altamente diurético. Até hoje me escapa o motivo pelo qual as pessoas se referem tão reverentemente a algo ser altamente diurético, como se fosse edificante ou conducente à beatitude fazer xixi de dois em dois minutos. Grunhirei essa resposta ao companheiro e estou seguro de que ele rirá, eu sou engraçadíssimo. E talvez até altamente diurético, quem sabe?