Bruma pirada

(João Ubaldo Ribeiro)

Uma leitora me escreveu, dizendo que ando brumoso. Já me chamaram de muita coisa antes, mas "brumoso" é a primeira vez. Fui conferir no espelho, lá se estampa a mesma cara amarfanhada, até quando faço as posições especiais que aprendi, para não observar tão flagrantemente as pelancas do pescoço. Não, nenhuma novidade, olheiras em dia, pés-de-galinha em forma, papada comparável à de Charles Laughton, sorriso alvar de quem não sabe nada, tudo em cima. Não, não estou brumoso, estou muito bem. Quem se apresenta cada dia mais brumoso é o outrora ensolarado Rio de Janeiro, o qual, com certeza por culpa do governo, que este ano adiantou o horário de verão, agora vem fazendo força para assumir uma atmosfera moscovita, pois Berlim já foi superada pela Guanabara.

Brumoso nada, querida leitora, antes muito pelo contrário. De vez em quando, sofro umas crisezinhas de estado de espírito, mas são, suspeito cada vez mais, visitas da saúde, como as que dizem que ocorre às vésperas da morte de alguém muito doente. Não, não acho que vou morrer em breve. Li, não lembro quando e cito de memória, que H.L. Mencken afirmou que, quanto mais envelhecia, mais desconfiava da velha máxima de que a idade traz sabedoria. É isso. Vou ficar — e na verdade sempre previ e até planejei esse acontecimento — um velho leléu. Já estou ficando, embora os sintomas ainda não sejam, acho eu, perceptíveis além do círculo familiar. Por que motivo, por exemplo, agora mesmo, antes de sentar ao teclado deste computador que me detesta e faz tudo para sabotar-me, dei uma dançadinha, uma espécie de jig irlandesa que só detive porque as juntas e o fôlego reclamaram? Falta de juízo, ou, como diz um médico amigo meu, síndrome de Up, oposto provecto da síndrome de Down. Uns nascem com a última, outros envelhecem com a primeira.

Claro, não pretendo tornar-me um velho desses insuportáveis, de dentes cintilantes, que posam em trajes de banho, correm maratonas, casam com mulheres 40 anos mais jovens e explicam desfaçadamente que a vida começa aos 70. Sempre detestei, como, aliás, toda a minha longeva família, qualquer forma de exercício físico, com exceção de jogar futebol, se é que se pode denominar assim desferir chutões desarvorados e ir com aplicação às canelas do ponta-esquerda adversário. Atravesso fases, às vezes comparativamente longas, em que ando no calçadão, mas, se isso libera serotonina, devo ter alguma alergia a ela, pois, por mais que me empenhe, jamais senti as alegrias dos que voltam de lá suando em bicas e tomando água de coco, como se tivessem acabado de excursionar ao Paraíso. Sei que estou, como todo articulista contemporâneo já escreveu (esta é minha primeira vez, não escapei) na contramão da história e que, como figura pública (vou ter de repetir isto muito para me acostumar, porque figura pública para mim continua sendo a vovozinha), receberei reprimendas, censuras e quiçá processos, por aderir a práticas tão malsãs e politicamente incorretas.

Não, serei um velho velho mesmo, dos bons. Tenho grandes exemplos e neles pretendo louvar-me. O bom velho não nega que é velho e, em lugar de ficar tentando enganar a si mesmo, aos outros e ao tempo, faz pleno uso das escassas — e por isso mesmo preciosíssimas — prerrogativas da velhice. A principal delas é a liberdade, que a juventude não pode ter, de dizer e fazer não o que lhe é conveniente, mas o que quer. "Never explain, never apologize" — nunca explique, nunca peça desculpas, como era o lema de um dos membros da ilustre família Ford, a dos automóveis, cujo nome agora esqueci. (Isto, aliás, é uma outra regalia ótima: esquecer; velho cheio de lembranças é muito chato e dizer que esqueceu, até quando não se esqueceu nada, quebra grandes galhos e ninguém repara, porque atribui a desmemória à esclerose.) Meu grande avô materno, o incriticável coronel Ubaldo (não coronel do Exército ou da Polícia, mas coronel do interior, mais importante do que qualquer marechal), foi um mestre da velhice livre e criativa.

Inclusive para morrer, de que teve um medo danado até sentir, aí pelos 90, que estava chegando a hora. Entristeceu-se um bocadinho no começo, mas depois, com um sorriso altamente safado (e sem dentes), declarou que ia morrer e, de certa forma, deitou e morreu numa boa, como quem estava prestes a desfrutar de uma experiência fora do alcance dos bobalhões que vivem arrecadando gloríolas e tentando ter e ser o que não podem ou não adianta nada. Antes disso, passou uma fase longa de senescência feliz, em que fazia praticamente tudo o que lhe dava na veneta, escandalizando a todos (o único remédio que ele usava era leite de magnésia, que assim mesmo nunca ingeria, somente olhava para a garrafinha durante uma meia hora, dizia que depois tomava e ficava bom), ao engolir açúcar puro em quantidades industriais e amassar com farinha cada toreba de toucinho de feijoada deste tamanho, para comer com tudo o que faz mal. Compareceu aos funerais de dezenas de médicos ("ele tomava o que receitava para os outros", comentava consternado) e amigos de hábitos saudáveis ("eu sempre disse a ele que esse negócio de fazer ginástica só desenvolve a capacidade de fazer mais ginástica").

Pois é, querida leitora, não estou brumoso nada, estou é fazendo vestibular para uma velhice livre e galharda. Vou indo bem, principalmente nas áreas em que já vislumbrava vocação, como a da vaidade pessoal. Outro dia mesmo, comentaram que minha barriga está cada vez maior. Com o testemunho corroborante de calças e bermudas, assenti. Mas o coronel baixou em mim e, sem murchar a barriga, indaguei se, fazendo todo o hercúleo esforço necessário para diminuí-la, eu ficaria um coroa parecido com Paul Newman ou Sean Connery. Não, disse a pessoa. E alguém que não gosta de mim com barriga vai passar a gostar?

Também não. E então, disse eu, então vá se catar.