Minha vida de ricaço

(João Ubaldo Ribeiro)

Não só no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo, a grande maioria dos escritores, quando não é pobre, é remediada. Quase todos se viram como professores, pesquisadores, bibliotecários ou jornalistas, isso quando não são forçados a exercer atividades que não têm nada a ver com sua condição de escritor, como, por exemplo, a de dentista, para pagar o aluguel. As exceções existem, em mercados fortes e no caso de uns poucos autores, que viram best sellers em economias dominantes, vendem livros por milhões de dólares a Hollywood e são traduzidos com êxito (porque a verdade, como todos sabemos, é que os Estados Unidos, reações francesas ou não, colonizam todo o mundo e todo mundo), em toda parte.

Mas acho que somente as exceções chamam a atenção, porque é do convencimento geral que qualquer escritor de algum êxito comercial, como acontece modestissimamente comigo, é milionário. Jorge Amado, por exemplo, é tido como arquimilionário, quando, na verdade, enfrentou todo tipo de dificuldade durante muito tempo, foi obrigado a viver no exílio e somente depois de uns 50 anos, começou a ter uma vida menos dura. Mas não é milionário nenhum e cansei de ouvi-lo despedir-se de mim ao telefone, me contando que estava precisando de uma graninha e, por conseguinte, ia esconder-se em algum sítio ou fazenda de um amigo cujo nome ele não revelava nem a mim, que sou compadre e leal, para escrever um livro e garantir o supermercado.

Eu pensava que todo mundo sabia disso que vou contar, mas, a todo instante, numa conversa em que o assunto aparece, vejo que as pessoas não fazem a menor idéia de como os escritores são remunerados. Quando um livro meu, recentemente, ficou praticamente um ano na lista dos mais vendidos, recebi até cartas, comentando como eu estava mais ou menos na situação de quem acertara na mega-sena sozinho. Pensa-se, sem refletir muito, que todo o dinheiro do livro, com uma pequena comissão paga à editora e ao livreiro, vai para o bolso do escritor. Mas não é assim. Quem já sabe, me perdoe por explicar coisa que devia ser conhecida, mas não é.

Num contrato mais ou menos típico de edição, a editora fica com uns 50%, o livreiro com uns 40% e o autor com 10%. É isso mesmo, 10%, quando não é menos e quando a editora paga, o que ocorre pingadinho, de três em três meses, ou de seis em seis — ou, em certos casos, nunca ocorre. Aí o "milionário" recebe um chequinho mixuruca, que já vem com uma bela mordida do Leão, de quase 30%. Mas ninguém, a não ser os envolvidos e os que já conversaram sobre o assunto com um escritor sabe disso e o sujeito que vende 100 mil exemplares, para receber tudo com 30% de desconto e de três em três ou seis em seis meses, fica roendo as unhas e não tem coragem de procurar sustentar a família (o que não daria mesmo) somente com o imprevisível resultado das vendas de seus livros, acrescentando-se que, no Brasil, quando um livro passa a casa dos 3 mil exemplares vendidos, a editora bota as mãos para o céu e a obra chega a entrar na lista dos mais vendidos — conheço vários casos.

Mas não adianta. Escritor não só não trabalha, como é rico. Já perdi a conta das pessoas que morrem de rir, ao ouvir que eu trabalho. Mas trabalho, e duro. E grande porção desse trabalho consiste em recusar escrever coisas de graça ("ah, só são 50 laudas, isso você faz com um pé nas costas, em dois dias") e recusar dar livros de graça, pois o escritor, além da cota habitual de 30 livros, que os amigos e a família levam logo, também compra, se bem que com abatimento, seus próprios livros na editora. Ela não cobra diretamente, mas faz o desconto nas contas dele. E, sendo romancista, é obrigado a ter opinião a respeito de tudo o que se passa no mundo, dos autores estreantes aos métodos de irrigação em Israel. Pouca gente compreende que, em muitos casos, se o escritor viaja por um dia, pode perder toda uma semana de trabalho, tal a desconcentração que às vezes lhe sobrevém. E ninguém compreende como é que um escritor não é capaz de bolar uma frase genial em cinco minutos, quando uma frase pedestre qualquer pode levar semanas para ser laboriosamente construída (e ser recebida de nariz torcido por parte do autor da encomenda, com a observação de que "ele não caprichou, má vontade"). E também ninguém compreende — mas não compreende mesmo — o que é responder, através da vida, às mesmas perguntas, a ponto de eu, que me considero resistente, já ter tido alguns chiliques por causa delas.

Outro dia eu estava almoçando na ilustre companhia do Rubem Fonseca, que, apesar dos comentários desairosos sobre meu computador que lhe são habituais, é meu dileto amigo e ele me disse, de repente, que eu morava num tríplex de alto luxo no Leblon, com piscina e tudo.

— Zé Rubem, você está maluco? Você conhece minha casa, eu não moro em tríplex nenhum, muito menos de alto luxo. E ainda mais com piscina, você está curtindo com minha cara.

— Mora, sim. Já tentei desmentir diversas vezes, mas não adianta, é convicção generalizada. Aí eu desisti de corrigir, já estava fazendo inimigos.

— Mas eu moro naquela coberturazinha mixuruca que você conhece, você...

— O que eu conheço não quer dizer nada. Você mora num tríplex de alto luxo, só fuma charutos cubanos importados e só bebe uísque de 25 anos para cima, já me garantiram diversas vezes.

— Mas eu nem charuto fumo e, quando bebo uísque, gosto de uísque novo e não bebo em casa e...

— Console-se comigo — disse ele. — Eu tenho um iate de uns 80 pés ancorado em Mônaco. Vox populi, vox Dei.