Esculhambação

(João Ubaldo Ribeiro)

Sei que o Aurélio ainda registra "esculhambação" como termo chulo e peço desculpas aos leitores mais sensíveis. Não sou de escrever palavrão em jornal e hesitei um pouco, antes de escolher esse título. Mas não conheço outra palavra tão adequada à situação em que vivemos, por todos os lados. A sensação que tenho — e sei que ela é partilhada por muita gente, talvez a maioria dos brasileiros — é de que o País está como uma bicicleta sem ninguém a controlá-la ladeira abaixo, inteiramente desgovernado, a começar pela Presidência da República, porque, quando o presidente fala sobre o País, parece que nada do que acontece aqui tem a ver com ele. É o único caso que conheço de um presidente espinafrar sua própria administração.

A culpa da crise de energia, ao que tudo indica é dos ex-presidentes Fernando Collor e Itamar Franco. Não sou técnico no assunto e posso estar dizendo besteira, mas seis anos me parecem mais do que suficientes para que agora estejamos culpando São Pedro pela incúria em relação a um problema que já vinha sendo incubado há décadas. Todos os leitores de jornais nos últimos anos já devem ter passado os olhos em pelo menos um artigo ou reportagem advertindo contra o perigo de racionamento ou apagões, que poderiam ser evitados com investimentos governamentais. Não é novidade nenhuma, a não ser para o presidente, que não tinha, segundo depreendo do que ele falou, conhecimento da gravidade da situação.

Pode ser que, neste domingo, já tenhamos chegado a uma conclusão sobre o que fazer. Claro que o ônus pesará todo sobre nós, os governados (ou desgovernados). O Judiciário já deu ganho de causa a vários prejudicados e certamente continuará a dar. E já começa a receber acusações de impatriotismo e incompreensão da crise, mas Judiciário existe para interpretar e fazer cumprir a lei — e a lei está ao lado do consumidor. Como é que vamos sair dessa é uma questão seriíssima, que pode levar ainda mais insegurança a nossa já polpuda insegurança. O Estado existe para quê? Até para Hobbes, que é tido por muitos como um advogado do absolutismo ou dos governos chamados fortes, o Estado tinha obrigações. Não era legítimo, se não oferecesse segurança aos cidadãos. E que segurança temos? Onde se encontra o Estado, no momento em que traficantes decretam feriados e fornecem serviços públicos, em troca do apoio das populações onde mantêm seus feudos? Onde se encontra o Estado, que deriva cerca de um terço do PIB nacional do pagamento de impostos? Que recebemos nós, em troco de nossos impostos? Recebemos a notícia de que, enquanto o assalariado desconta na fonte e às vezes ainda paga mais, centenas de bancos não pagam um tostão e milionários chegam a receber restituição, num sistema fiscal tão iníquo que os próprios funcionários e auditores da Receita Federal protestam pública e abertamente.

Não recebemos nada, ou quase nada. Se cairmos doentes e procurarmos um hospital público, não acharemos vagas, como se lê todo dia nos jornais. E até os que podem pagar planos privados sofrem, porque estes também prevaricam, embora não todos. Se precisarmos da polícia, nossas chances de atendimento eficaz são exíguas, como é do conhecimento geral. A educação pública, que já foi, em muitos casos, modelar, hoje, com pouquíssimas exceções, é a calamidade de que temos notícia ou sofremos na pele, em todo o País. Nem quem pode fazer poupança está seguro, num país em que, com uma canetada, como já aconteceu, um presidente pode bloquer o dinheiro de todo mundo.

Hoje as delegacias são invadidas, indefesas diante do crescente poder da bandidagem. Ou seja, não se está seguro nem na companhia da polícia. Aliás, não se está seguro em lugar algum, porque assaltam apartamentos, restaurantes, farmácias ou o que der na veneta do assaltantes profissionais.

Sair à noite (sair de dia também, embora um pouquinho menos) já é coisa esquecida por muita gente e agora quarteirões e edifícios se cotizam para pagar por segurança privada, na tênue esperança de que isto represente um pouco de tranqüilidade. Os policiais identificados por bandidos são liquidados na hora. Os próprios policiais aconselham a se sair sem cartão de banco ou crédito e com cópias xerox de outros documentos. E até presídios e hospitais são invadidos, para a libertação de detentos, com o Estado fazendo papel de palhaço. Não é difícil concluir que não temos mais um Estado, mas algumas ilhas onde ele ainda funciona e uma poliarquia nos grandes centros, onde quem manda são os fora-da-lei.

Ler o jornal do dia é cada vez mais um motivo de angústia e sentimento de impotência, diante de uma realidade que só faz piorar e de notícias que estressam qualquer um. Não sei se a idéia ainda perdura, mas quem vai conseguir, pelo menos numa família de classe média com dois filhos adolescentes, os tais 20% de redução no consumo? Não se lava mais roupa? Não se usa mais ferro elétrico (chuveiro elétrico, nem pensar)? Não se assiste a mais de uma hora de tevê por dia? Não se quebra o galho do jantar de uma família ocupada com um forno de microondas? Não se pode ter mais telefone sem fio em casa e tem de haver uma inspeção geral nos aparelhos que estão em "stand by", ou seja com aquela luzinha acesa, indicando que estão carregando ou prontos a obedecer a um controle remoto, porque eles gastam muito mais energia do que imaginamos. Até mesmo aquele decodificador inocente das tevês a cabo. Se, mesmo desligados, continuam com a luzinha acesa, isso pode significar consumo extra.

E como ficará o País, agora que ninguém pode mais investir, a não ser, talvez, na fabricação de velas? Vem desemprego por aí? Claro que vem, se São Pedro não acudir, como tudo indica que não acudirá. Fico vendo o caos à nossa frente, sugiro orações aos que acreditam em Deus e reitero o título desta crônica: somos, mais do que nunca, uma descomunal esculhambação.