Dois pequenos pensamentos

(João Ubaldo Ribeiro)

Nessa semana em que se iniciou o nosso bem-elaboradíssimo racionamento, tive, coisa rara, dois pensamentos. O primeiro é uma sugestão; o segundo é uma reflexão. A sugestão vai ser levada na brincadeira, mas a estou fazendo a sério. Tenho a certeza de que não será aceita, por preconceito, vaidade e outros fatores. Mas alimento a esperança de que alguma comunidade a adote, porque traria inúmeros benefícios para o esforço nacional de poupar energia, além de punir com o frio todos nós, criminosos energéticos, que, há relativamente pouco tempo, éramos exortados a usar energia elétrica, "a nossa energia", como dizia o comercial de TV.

A sugestão é a seguinte: seguir o exemplo da moça que protestou em Brasília, desfilando sem roupa. É isso mesmo, todo mundo nu. A primeira vantagem é que tornaríamos o protesto fácil e dos poucos que, vista a nossa história recente, seríamos capazes de fazer, porque brigar mesmo nem pensar. E retornaríamos às nossa origens, eis que não só os índios andam nus como grande parte dos nativos de nações negras que foram trazidos à força para o Brasil, e hoje são ancestrais da maioria mestiça de nosso povo, também andava nua, ou quase nua. Não sei fazer as contas, mas a economia de energia gerada por isso seria enorme, pois não se gastaria mais com máquinas de lavar, nem com ferros de passar roupa. Bem verdade que a indústria de roupas sofreria um baque, mas baque todos nós já sofremos. O abominável movimento, denominado "Volta ao tanque!", solertemente dirigido às mulheres brasileiras e já circulando em botecos, perderia seu ímpeto. E a estranheza seria só no começo, depois todo mundo se acostumaria. Até os assaltos seriam dificultados, porque o assaltante não iria ter como esconder seu revólver.

E já pensaram, nestes tempos em que o dólar dobrou de valor e, conseqüentemente o que ganhamos foi cortado pela metade (eu sei que o governo prova sempre que não há inflação, mas todo mundo sabe que o que o governo diz não se escreve e nem o que o Homem escreveu vale mais, segundo ele próprio), na receita turística que isso ia gerar? Praticamente o mundo todo baixaria aqui, para visitar o país de gente nua. Os hotéis iam ter cem por cento de ocupação o ano todo e o setor de serviços certamente se ampliaria, em áreas de que mal ouso suspeitar, mas imagino, por exemplo, que pintadores de corpo apareceriam em todas as cidades, oferecendo seus serviços a quem quisesse ornamentar suas formas, até mesmo para disfarçar uma imperfeiçãozinha aqui, outra acolá. Sim, a indústria de roupas sofreria um baque, mas seria a quota de sacrifício que estaria pagando, como todos nós.

Fico pensando, por exemplo, em quem faz refeições congeladas, que depois são descongeladas em fornos de microondas. Não havendo mais como usar freezers sem sofrer cortes depois de um mês, nem sendo aconselhável o emprego do microondas, pelo seu alto consumo de energia, essas pessoas já passaram a não ter como sobreviver.

E as incontáveis empresas de fundo de quintal, de doceiras e quituteiras a pequenas oficinas? E as padarias de forno elétrico? E o desemprego geral nas indústrias eletroeletrônicas? Ontem mesmo me contaram que fábricas de chuveiros elétricos já botaram multidões de funcionários no olho da rua, pois só maluco compraria um chuveiro elétrico neste momento. Não concebo quem possa não estar sendo prejudicado com o racionamento, a começar, como já falei aqui outro dia, por mim mesmo, que vou ter, provavelmente, de racionar o uso do computador, ou fazer visitas traiçoeiras a casas de amigos, para sorrateiramente carregar a bateria de meu surrado laptop. Todo mundo nu, todo mundo nu para protestar, até porque vivemos sob uma ditadura branda, que usa medidas provisórias como quem faz pipoca, o que equivale aos decretos-leis da época do Estado Novo.

E o outro pensamento? Sim, este tem pouco a ver com andarmos nus, embora, se viéssemos a fazê-lo, talvez a imagem que me vem à mente se tornasse mais eloqüente. A imagem é particularmente vívida na cidade do Rio de Janeiro, que é cercada de morros, na maioria habitado por favelados. É fato conhecido que muitos favelados usam "gatos" para a obtenção de energia elétrica (embora alguns ricos também apelem para esse recurso e ninguém saiba ao certo qual o consumo de energia através de "gatos"). Eu quero ver quem é que vai subir os morros para desligar os "gatos". Em certos morros, até as autoridades mais altas pedem licença para subir, aos detentores do poder local. A Light teria de organizar esquadrões suicidas para fazer o serviço e não creio que fosse encontrar muitos voluntários entre seus técnicos. Quem é que vai fazer o serviço? Ninguém, a não ser um general louco, obedecendo a ordens de um governo também louco, que mandasse primeiro a Força Aérea bombardear os morros, depois atacá-los com artilharia pesada e mísseis, para ir fazer a ocupação na base da metralha — e não há, graças a Deus, esses loucos. Portanto, os morros e a chamada periferia vão continuar iluminados.

O resultado é que, cada vez mais, a cidade dos não-favelados fica às escuras, com letreiros, vitrinas e janelas sem luz, com a conseqüência de que, no caso do Rio, teremos um verdadeiro buraco negro, rodeado pela feérica iluminação das favelas. Embaixo, encurralados no escuro (e nus, protestando com a eficácia que essa atitude teria, em lugar de outras, que não coincidem com a nossa tradição de povo cordial), os ricos e a classe média, com medo de tudo. Em cima, os excluídos, desfrutando de algo que sempre lhes foi negado pela situação econômica. Fomos nós, coletivamente, que construímos esse cenário de tão pouca gente com muito e tanta gente com pouco. É o resultado de séculos de negligência, arrogância, corrupção, incompetência e imprevidência. Agora, quem pode pagar não tem, quem não pode tem. Se eu fosse místico, diria que, no racionamento orlado de luz, de cidades como o Rio e São Paulo, há uma metáfora das nossas condições sociais e talvez Deus esteja querendo nos dizer alguma coisa.