A volta ao calçadão

(João Ubaldo Ribeiro)

A vontade que dá mesmo é continuar descendo o malho nas classes dirigentes, que tanto fizeram desde o começo de nossa história que condenaram o país ao atraso, a ponto de pouca gente acreditar que mesmo os nossos bisnetos venham a ter melhores perspectivas — Deus queira que estejamos enganados. Mas não adianta falar. Todo mundo fala e não acontece nada. Todo mundo escreve e não acontece nada.

Quando eu era jovem, acreditava que poderia ajudar o mundo, escrevendo livros engajados, cheios de denúncias e acusações. Hoje sei que era besteira de menino e que não vou resolver problema nenhum escrevendo, a não ser em alguma cartinha ao Procon. A questão é que agora já é tarde e, como não sei fazer mais nada, se me candidatasse a alguma coisa e fosse eleito, seria um péssimo governante.

Daí, mudei de idéia e resolvi hoje abordar minha recente volta ao calçadão. Quem me lê há mais tempo sabe que já tive uma fase prolongada de calçadão, durante a qual enfrentei dificuldades surpreendentes e nunca, jamais, senti o famoso bem-estar que todos dizem que uma boa caminhada nos traz. Minha maior emoção era negativa. Era corporificada num capenguinha, com uma perna bem mais curta do que a outra, que me perseguia sempre. Quando eu menos esperava, ele passava por mim em alta velocidade e acho que, mesmo correndo, não conseguiria alcançá-lo. Aliás, esse capenguinha devia ser procurado pelo Comitê Olímpico para competir na caminhada — seria caso, no mínimo, de medalha de bronze.

Bem-estar mesmo nunca senti. Pelo contrário, chegava em casa com as pernas bambas e todo trêmulo, exatamente da forma em que me encontro neste momento, depois de 30 minutos de caminhada para mim acelerada e que encaro como uma tortura, não importam quantas moças bonitas de biquíni veja na praia, ou quão bela seja a paisagem. Em matéria de endorfinas, como em quase tudo mais, sou um fracasso integral, embora persista em caminhar, nesta nova fase, porque todos os médicos me garantem que, se eu não andar, serei um farrapo humano daqui a uns cinco anos e aí tento reduzir minha farrapilidade em pelo menos algum tempinho; ainda não cheguei à idade certa para virar farrapo humano.

Mas é duro. Uma das razões principais por que compareço pouco à Academia Brasileira de Letras (e academias de ginástica também) é que anos de Itaparica me geraram horror a sapatos, inclusive tênis, qualquer sapato. Aí, quando penso em me fatiotar e enfiar sapatos, adio meu comparecimento à ABL por mais uma semana, pois não creio que meus queridos confrades, do mais severo ao mais tolerante, encarassem com boa vontade ver-me por lá de paletó, gravata e sandálias de dedo.

Para o calçadão, contudo, cedo ao código e vou de tênis, o que, por si mesmo, configura façanhuda ginástica. Todo dia, antes de pôr os tênis, penso em tirar folga, mas o sentimento de culpa, junto com o temor da farrapização, me faz mudar de idéia e lá vou eu.

Para sofrer uma humilhação atrás da outra. Quiçá os médicos, sob a liderança de meu psiquiatra, não tenham como fito me condicionar fisicamente, mas, de alguma maneira, livrar-me da soberba que talvez enxerguem em mim. Meu caso é muito sério. Faz três semanas que venho andando religiosamente, todos os dias de manhã. E faz três semanas que reitero a acabrunhante constatação de que todo mundo me passa e eu não passo ninguém, só mesmo os caquéticos e os que estão simplesmente flanando. Estabeleço metas. Não é possível que eu não ultrapasse aquela velhinha à frente, que, aparentemente, tem idade para ser minha mãe e vai numa marcha que considero moderada. Que nada. O que vejo é a velhinha se afastar cada vez mais e cada vez mais passar gente por mim. Não pego absolutamente ninguém, nem o casal que vai devagar e de mãos dadas, parando de vez em quando para um beijinho.

O capenguinha deve ter mudado de calçadão ou de horário, porque nunca mais o vi. Mas apareceram substitutos notáveis, nas figuras de gordinhos e gordinhas. Eu não sou magricela e até estou um pouco acima do peso normal, mas não é possível que todos os gordinhos, ao que me indica a paranóia, tomem a poção mágica do Asterix e se tornem verdadeiros bólidos no calçadão. Ontem mesmo, uma gordinha de malha apertada (e sandálias de dedo, sandálias de dedo!) passou por mim como um azougue e eu resolvi que não ia engolir o desaforo. Estuguei o passo com decisão, imbuí-me do senso de dignidade de meus ancestrais nordestinos e parti para cima dela. Num esforço sobre-humano, fui me aproximando dela, a mais ou menos um metro a cada dois minutos e já a via a pouco mais de três metros, quando a miserável agitou os braços e deu uma carreirinha. Ela alterna caminhadas com corridinhas, a miserável! E repito: de sandálias de dedo!

Recolhi-me à minha insignificância. Como vario pouco de horário, já conheço de vista todos os gordinhos, gordinhas e velhotas que me ultrapassam. Dizem-me que, com mais algum condicionamento, eu consigo passar pelo menos o pessoal dos 80 para cima. Aconselharam-me também a contratar um personal trainer , mas as cenas de terror que tenho presenciado na condução dos tais treinamentos me apavoram. É, pode ser até verdade que as pessoas se sintam muito bem com a caminhada, mas as caras que muitos exibem, melhor dizendo as caretas e esgares medonhos, para mim desmentem o bem-estar. É, imagino eu, como ficar batendo com um martelo no dedão do pé, para depois parar e sentir o alívio da dor. Mas não desistirei do calçadão desta vez. Já me aconselharam a mudar para bicicleta, mas eu sou o único caso do mundo de quem sabia andar de bicicleta e desaprendeu, assim como não sei mais dirigir um carro. Pensando bem, sou um injustiçado. Já devia constar do Guinness em diversas categorias de incompetência. E, quando resolverem criar troféus para caminhadores de calçadão, acho que mereço reivindicar meu nome para o troféu de último colocado. Também tenho direito a meus 15 minutos de fama.